Fabricantes de esqui sofrem com crise na cadeia de abastecimento
O ingrediente secreto que ajudou a firma suíça Stöckli a conquistar sua reputação como uma das melhores marcas de esqui do mundo é uma cola especial feita de matérias primas importadas da Inglaterra e do Japão.
O pó japonês é tão crucial para o processo de produção que a premiada empresa sempre garantiu de antemão estoque suficiente para resistir a praticamente qualquer crise. Assim estava preparada quando chegou a pandemia e acirrou a crise global da cadeia de fornecimento.
O que a Stöckli não previu, no entanto, foi ter que se virar para conseguir todas as outras matérias-primas necessárias para a fabricação de um par de esquis: desde os núcleos de madeira até o aço usado nas pontas.
“Pensávamos que seria um sprint, mas foi uma maratona”, diz Christoph Fuchs, diretor na empresa que fabrica esquis desde 1935 e conta como clientes estrelas do esporte como o suíço Marco Odermatt. “Cada vez que resolvemos um desafio, veio o próximo e depois o mais outro”.
Problemas no fornecimento
A Stöckli é uma das centenas de fabricantes suíços afetados pela interrupção da cadeia de fornecimento global desencadeada pela pandemia e o bloqueio do Canal de Suez pelo navio de contêineres Ever Given em março.
O impacto sobre a economia ficou claro em 9 de dezembro, quando o governo suíço reduziu sua previsão de crescimento em 2022 de 3,4% para 3%. A Secretaria de Estado para Assuntos Econômicos (SECO) atribuiu a redução no prognóstico à incerteza em torno da pandemia de Covid-19 e a “problemas internacionais de abastecimento e capacidade” que estão pressionando a indústria e causando aumentos acentuados de preços em todo o mundo.
O governo também elevou sua previsão de inflação para o consumidor no próximo ano de 0,8% para 1,1% devido ao aumento dos preços de energia e materiais. “Uma desaceleração na recuperação econômica também seria provável se os problemas de capacidade global durassem mais do que o esperado e os aumentos da inflação levassem a uma pressão sustentada sobre os preços com taxas de juros significativamente mais altas”, publicou a SECO.
Empresas devem investir
Com os especialistas prevendo que os problemas da cadeia de abastecimento persistirão até 2022 e, possivelmente, 2023, as empresas agora têm que se concentrar na mitigação de riscos, para identificar e gerenciar suas vulnerabilidades.
“O Covid não só fez com que os políticos falassem sobre cadeias de abastecimento, como também mostrou às empresas que elas precisam levar a gestão da cadeia de abastecimento a sério”, diz Stephan Wagner, especialista em cadeias de abastecimento da Escola Politécnica Federal em Zurique (ETH). “As empresas têm que estar dispostas a investir em algo que é improvável que aconteça”.
Para Stöckli, os problemas de abastecimento começaram na primavera com um atraso de três semanas nas entregas de plástico em sua fábrica no cantão central de Lucerna, cerca de 60 quilômetros a sudoeste de Zurique.
Os atrasos logo se estenderam a outros materiais. Madeiras como Paulownia, uma madeira leve, resistente à dobradura e cultivada principalmente no leste da Ásia, chegaram no final do verão com atraso de várias semanas porque os fornecedores na Áustria foram afetados por dificuldades com transporte na China. Adesivos, borracha e metais também demoraram de duas a três vezes mais para chegar.
A empresa foi forçada a mudar seu cronograma de produção para quase 30 modelos de esquis e substituir materiais, e até mesmo a mudar de fornecedores em alguns casos. “O objetivo era manter a produção funcionando”, diz Fuchs.
Contato estreito com fornecedores
Isso exigia planejamento constante e comunicação com 25 fornecedores, bem como ajustes nos processos de produção para que os esquis pudessem ser montados assim que todas os componentes estivessem disponíveis. O prazo de entrega dos pedidos de madeira aumentou de cinco para oito ou dez semanas, ele observa.
A maior dor de cabeça no outono provou ser o alumínio, um metal leve que é adicionado como uma camada em reforço ao núcleo de madeira do esqui. Agora são necessárias 24 semanas para o alumínio ser entregue da Áustria, ao invés de oito.
Stöckli teve a sorte de ter o suficiente em estoque para cobrir a produção até que novos suprimentos chegassem. Mesmo assim, os atrasos obrigaram os funcionários a trabalhar em turnos noturnos e fins de semana para garantir que a empresa estivesse pronta para o início da estação de esqui de inverno em dezembro.
A obtenção de matéria-prima não tem sido o único desafio. Os preços das matérias-primas utilizadas nos esquis Stöckli aumentaram em média 10% este ano, de acordo com a Fuchs. O maior aumento, de 20%, foi o do adesivo especial em seus esquis. “Nós somos um pequeno ator na indústria do esqui e se quisermos obter os materiais a tempo, só podemos dizer sim aos preços mais altos”, diz Fuchs.
Este é um custo que a empresa, e não os consumidores, terá que absorver nesta estação de inverno, porque os aumentos não tinham entrado em vigor quando os preços com varejistas e distribuidores foram fixados no primeiro trimestre de 2021.
Gargalos globais
Afinal, o que está causando os problemas da cadeia de abastecimento que afligem o mundo? Christoph Wolleb, diretor de gerenciamento e operações da cadeia de suprimentos da KPMG Suíça, identifica três fatores principais: escassez de matérias-primas-chave, problemas logísticos, incluindo a falta de navios e contêineres, e o fechamento de fábricas na Ásia causado pelas restrições relacionadas ao Covid.
“O fechamento de uma fábrica por uma semana não significa apenas que as empresas têm que esperar mais uma semana pelos produtos”, diz ele. “Toda a cadeia de abastecimento é colocada em desordem e a recuperação leva 10 vezes mais tempo do que a interrupção”.
Como a maior parte da Europa, a Suíça ainda se recupera dos efeitos do fechamento de portos relacionados à pandemia em todo o mundo, à medida que os países impuseram bloqueios para impedir a propagação do vírus. Os portos na região da Ásia-Pacífico e nos EUA continuam a lidar com atrasos e congestionamentos, o que levou a uma escassez global de contêineres marítimos e tornou mais difícil e caro o transporte marítimo de mercadorias da Ásia para a Europa.
“Mesmo antes da Covid, a demanda por recursos logísticos era alta, mas a pandemia levou a um superaquecimento global da indústria de logística”, diz Wolleb. “Agora é 10-20 vezes mais caro enviar um contêiner de Xangai para Basiléia”. De acordo com a empresa de logística Freightos, pode-se esperar um pagamento de 14.381 dólares para enviar um contêiner da Ásia para o norte da Europa, um aumento de 538% em comparação com a mesma época do ano passado.
As consequências estão reverberando em toda a economia suíça, não apenas em fabricantes como Stöckli, mas também no setor de varejo. Uma pesquisa no site Bike World na primeira semana de dezembro ilustra o problema. Um modelo masculino de bicicleta de montanha (Ghost Kato Essential, 599 francos) está disponível para encomenda online, mas um modelo de bicicleta de corrida (Liv Avail Advanced 1, 3.199 francos) tem apenas duas unidades restantes. Um modelo de bicicleta feminina (Diamond Topaz Villiger, 1.099 francos) só pode ser entregue em quatro semanas e um modelo de bicicleta infantil (Scott Scale 24, 499 francos) em 15 semanas.
Nem todas as faltas de produtos estão relacionadas à pandemia, diz Wolleb, referindo-se à madeira, que é usada na construção civil. “A demanda era alta mesmo antes do Covid e quando a pandemia surgiu, houve pânico na compra, semelhante ao que aconteceu com o papel higiênico”, diz ele. “Os parasitas de madeira na Europa oriental e central e o pico nas encomendas dos EUA pioraram a situação”.
Grande desafio
A ruptura da cadeia de fornecimento é agora o maior desafio enfrentado pelas pequenas empresas na Suíça, segundo a publicação Economic Barometer da Swissmechanic, uma associação setorial para pequenas e médias empresas das indústrias de máquinas, eletrônicos e metalúrgicos.
Em uma pesquisa publicada no terceiro trimestre do ano, cerca de 54% dos entrevistados de 174 empresas listaram as questões relacionadas à cadeia de suprimentos como o maior desafio que estavam enfrentando, bem à frente de outras preocupações, tais como escassez de mão de obra e queda nos pedidos.
Os fornecedores suíços de componentes para a indústria automotiva mundial estão sendo afetados pelas interrupções na produção de veículos causadas pela escassez de semicondutores e outros estrangulamentos na cadeia de fornecimento. A Autoneum Holding AG fabrica peças para sistemas acústicos e de proteção térmica e possui fábricas em 55 localidades ao redor do mundo, incluindo a China e a Coréia do Sul.
“A Autoneum foi indiretamente afetada pelo atual desenvolvimento do mercado como resultado da escassez de chips e outros gargalos na cadeia de fornecimento dos fabricantes de veículos”, disse Claudia Güntert, chefe de comunicações corporativas do fabricante baseado em Winterthur.
Suas fábricas tiveram que ajustar a produção para lidar com as mudanças nos horários de produção de seus clientes e, como resultado, a empresa demitiu pessoal temporário e implementou o trabalho em horário reduzido, disse Güntert. Mas a empresa espera que a situação comece a melhorar em 2022, com base na forte demanda dos consumidores, e vê a produção retornar aos níveis pré-covid em 2023, à medida que a demanda reprimida dos clientes, reprimida pela falta de semicondutores, é liberada, disse Güntert.
Escassez do aço
A Feintool International Holding AG, fabricante suíça de componentes de motores e transmissões para a indústria automotiva, cortou a produção de peças de alto volume como resultado de gargalos na cadeia de abastecimento de seus clientes, disse Karin Labhart, porta-voz da empresa, em um e-mail.
“Cancelamentos de pedidos dos clientes tornaram-se extremamente de curto prazo devido à falta de chip e aço”, disse Labhart. “Tentamos reagir de forma flexível às exigências dos clientes, o que torna a previsibilidade muito difícil em comparação com a primeira metade de 2021”.
A escassez de aço, bem como de semicondutores, está causando problemas na própria cadeia de fornecimento da Feintool e tem exigido que a empresa mude a forma como o negócio é administrado, incluindo o planejamento com clientes e fornecedores, tanto semanal como diário, disse Labhart. A produção, a logística e o horário de trabalho tiveram que se tornar mais flexíveis para atender às exigências dos clientes, disse ela.
Até mesmo a ABB, uma das maiores empresas suíças que fabrica equipamentos de energia elétrica para serviços pesados, foi afetada. Falando em sua teleconferência sobre os lucros do terceiro trimestre em outubro, o CEO Björn Rosengren disse que o maior ponto mais doloroso para a empresa tem sido a aquisição de semicondutores. “Os gargalos da cadeia de fornecimento estarão conosco por mais alguns trimestres”, disse Rosengren, conforme relatado pela agência AWP.
Novas estratégias
Diante da perspectiva de escassez contínua durante meses, se não anos, as empresas precisam repensar como elas gerenciam suas cadeias de abastecimento, diz Wagner, o especialista em cadeias de abastecimento da ETH. Elas poderiam começar investindo em dupla fonte, utilizando mais de um fornecedor para uma determinada matéria-prima ou componente, para garantir que um nível mínimo de inventários possa ser mantido. As empresas também precisam identificar seus fornecedores indiretos e eliminar fatores de risco, por exemplo, ao evitar lidar com empresas de uma mesma localidade, disse ele.
A última vez que as empresas reavaliaram seriamente os riscos da cadeia de abastecimento foi após os ataques terroristas de 11 de setembro nos EUA, diz Wagner. Elas passaram dois a três anos aumentando sua resiliência e identificando elos fracos para se protegerem no caso de novos incidentes, mas deixaram esses planos caducar quando os ataques não se concretizarem. “O gerenciamento de risco da cadeia de abastecimento envolve custos e não faz dinheiro se nada de ruim acontecer”, diz ele.
A relutância em investir em tornar as cadeias de abastecimento mais resistentes foi agravada pela crise financeira global de 2008. Muitos fornecedores faliram após o cancelamento dos pedidos e a experiência fez com que aqueles que sobreviveram tivessem receio de investir em capacidade ociosa, diz Wolleb da KPMG. As empresas escolheram a terceirização e o offshoring em vez de investir em fornecedores alternativos e darem a si mesmas mais tempo para atender aos pedidos.
“Como na fabricação, as cadeias de fornecimento foram otimizadas e tornadas enxutas nas últimas décadas para oferecer entrega just-in-time e cortar custos”, diz ele. “A cadeia de fornecimento global está superaquecida e nós a tornamos ainda pior ao introduzir pontos de pressão adicionais como as promoções tipo Black Friday”.
Repatriar a produção?
Wolleb diz que chegou a hora de falar seriamente sobre trazer a fabricação de volta à Europa. Ele aponta as tendências recentes na indústria têxtil, uma das primeiras a deslocar a produção para a Ásia. Muitas empresas estão agora trazendo a produção para mais perto de suas sedes, para a Europa Oriental e até mesmo para a Europa Ocidental.
Esta opção tornou-se cada vez mais viável à medida que o maior uso da automação reduziu a necessidade de mão-de-obra e que o aumento dos salários na Ásia enfraqueceu sua vantagem competitiva. O desenvolvimento da centralidade do cliente, como a personalização dos produtos, também será mais fácil de alcançar com a reformulação, diz Wolleb.
Wagner concorda que há uma mudança no sentido de produzir itens críticos mais próximos aos mercados finais e diz que as empresas serão mais seletivas quanto à produção em outros continentes em setores que podem ser automatizados e não precisam de mão-de-obra barata. No entanto, ele não está totalmente convencido.
“Não podemos reverter a globalização”, diz ele. Dependemos de certas competências em certas partes do mundo. No final das contas, os consumidores estariam dispostos a pagar o dobro por um carro?”.
Incertezas devido à pandemia
Apesar dos desafios lançados pela pandemia e pelas rupturas na cadeia de abastecimento, os fãs da Stöckli, incluindo Odermatt, que estará presente nos Jogos Olímpicos de Inverno em Pequim em fevereiro, ainda poderão colocar as mãos em um par de esquis.
Fuchs está confiante de que a empresa fez o bastante para mitigar os riscos de sua cadeia de abastecimento. As encomendas estão sendo feitas aos fornecedores com bastante antecedência, as prateleiras do estoque da Stöckli estão munidas e as máquinas zumbem enquanto os trabalhadores lixam e dão o acabamento nos esquis. Na melhor das hipóteses, a produção poderia subir dos cerca de 40.000 esquis a níveis pré-covid com cerca de 60.000 pares de esquis produzidos neste ano.
Mas com os casos de Covid crescendo novamente em todo o mundo e a nova variante Omicron ameaçando desencadear novas quarentenas, a pandemia é, mais uma vez, a maior ameaça. “Teríamos que pensar muito bem sobre como vamos sobreviver a isso”, diz Fuchs.
Adaptação: DvSperling
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