Quando as Universidades suíças buscam equidade de gênero
No final do século 19, moças de todo o mundo iam para a Suíça a fim de estudar. Elas contribuíram para o desenvolvimento da medicina, do direito, da filosofia e de outras ciências, tanto na Suíça como nos seus países de origem.
No coração de Berna, perto dos trilhos e do antigo prédio da universidade, há uma pequena rua chamada “Tumarkinweg”. Ela ganhou este nome em 2000, em homenagem à filósofa russa Anna TumarkinLink externo (1875-1951). Nascida em Dubrowna (hoje Bielorrússia, outrora parte do Império Russo), Anna foi para Berna em 1892, aos 17 anos de idade, para estudar filosofia. Ela estava seguindo os passos de seu irmão, que estudava matemática na capital suíça. Mais tarde, Tumarkin conquistou seu lugar na história como a primeira professora da Europa a ter autoridade para orientar e avaliar alunos de doutorado.
A palavra alemã “Weg”, que significa “caminho”, pode ser vista aqui não apenas como um nome geográfico, mas também como um símbolo: o de uma mulher ambiciosa abrindo o caminho para que outras como ela tivessem acesso ao ensino superior. Tumarkin esteve entre as primeiras das várias mulheres, muitas delas da Europa Oriental e da Rússia, que foram estudar na Suíça na virada do século passado.
Ela foi seguida por outras mulheres, entre elas Ida HoffLink externo (1880-1952), também nascida no antigo Império Russo. Hoff estudou medicina e se tornou médica. Ela foi uma das primeiras pessoas em Berna a comprar um carro, que ela mesma dirigia, numa época em que a maioria automóveis era conduzida por um chofer.
Quando Hoff abriu sua própria clínica, em 1911, havia 132 clínicos gerais em Berna, e apenas quatro deles eram mulheres. Ela e Tumarkin foram morar juntas. A natureza da sua relação tem sido descrita como uma “amizade e parceria duradoura”.
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Desigualdades de gênero permanecem no equilíbrio trabalho e vida familiar
Outras mulheres pioneiras na academia incluem a suíça Emile Kempin-Spyri, a primeira mulher a obter um diploma de direito na Suíça, em 1887 – posteriormente ela fundou uma faculdade de direito em Nova York –, e Marie Heim-Vögtlin, outra suíça, do cantão Aargau, que foi uma das primeiras mulheres a estudar medicina no país. Mais tarde, ela foi cofundadora do primeiro hospital ginecológico suíço.
Exceção suíça
A partir de meados do século 19, enquanto a maioria dos países europeus estava expandindo suas instituições de ensino superior, a Suíça se destacou por permitir que estudantes do sexo feminino se sentassem lado a lado com estudantes do sexo masculino.
Na Suíça, já existiam três universidades de língua alemã. A mais antiga, a Universidade de Basileia, foi fundada em 1460; a Universidade de Zurique, em 1833 e a Universidade de Berna, em 1834. A parte francófona do país também consolidou uma forte rede de instituições, com Genebra, Lausanne, Neuchâtel e Friburgo seguindo o mesmo caminho e abrindo suas próprias universidades ao longo do século 19.
Enquanto o Reino Unido preferiu segregar homens e mulheres, criando faculdades para pessoas do mesmo sexo – tais como Lady Margaret Hall em Oxford e Girton College em Cambridge, que eram apenas para mulheres –, a Universidade de Zurique recebeu estudantes do sexo feminino ainda em 1868. Berna e Genebra o fizeram em 1872. As universidades suíças logo atraíram jovens ambiciosas vindas de famílias ricas de outros países europeus. Elas iam estudar matemática, medicina, ciências, psicologia e direito.
Em 1900, quase todas as estudantes das universidades suíças eram estrangeiras e quase 80% vinham do antigo Império Russo, onde muitos intelectuais, incluindo o escritor Fiódor Dostoiévski, estavam pressionando para que as mulheres tivessem igualdade de acesso à educação. “Ao permitir, honesta e completamente, que as mulheres acessem a educação superior, com todos os direitos que ela dá, a Rússia daria mais uma vez um grande e único passo diante de toda a Europa na grande causa da renovação da humanidade…”, escreveu ele na Vremya, uma revista russa sobre política e literatura.
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O destino incomum das primeiras estudantes
Em 1906, um quarto das mulheres com nível superior em todo o mundo vinha da Suíça. Elas chegaram num país com uma rede de ensino superior bem desenvolvida, que oferecia raras oportunidades de aprendizagem para as mulheres da época.
A decisão vanguardista destas mulheres não era fácil. As mulheres europeias, na maioria dos casos, não eram autorizadas a viajar sem a permissão de seu pai ou marido. Isso levou a muitos casamentos apressados ou fraudulentos. Elas também precisavam enfrentar um forte estigma social, numa época em que ainda era esperado que as mulheres se casassem e tivessem filhos.
E quanto às mulheres suíças?
Mas, enquanto as mulheres estrangeiras viram na Suíça uma porta de entrada para o ensino superior, as universidades helvéticas permaneceram surpreendentemente desprovidas de mulheres do seu próprio país. “Apesar de algumas universidades terem uma política de admissão bastante liberal, as mulheres suíças que desejavam entrar no ensino superior enfrentavam um caminho difícil”, escreveu a pesquisadora Manda Beck num artigo publicado pelo blog do Museu Nacional Suíço.
As universidades, embora declarassem a igualdade de gênero formalmente, matriculavam apenas os rapazes locais. Uma das exigências para a matrícula era ter frequentado o ginásio (ensino médio), que permanecia inacessível para as mulheres. As escolas femininas na Suíça não ofereciam o mesmo programa. Para contornarem tais restrições e serem aceitas na universidade, as moças precisavam fazer cursos particulares caros e prestar os exames de admissão.
“Em 1868, Marie Vögtlin se tornou a primeira mulher suíça a cursar medicina. Esta mulher ambiciosa conseguiu passar no exame de admissão, para o qual ela mesma havia se preparado. Com o consentimento de seu pai, ela obteve o direito de se matricular na Universidade de Zurique. Ainda assim, durante muito tempo, a presença de universitárias suíças nas salas de aula permaneceu baixa, sendo suas colegas estrangeiras a maioria até 1914”, explica Beck.
Além disso, algumas universidades mantiveram suas portas fechadas para as moças. A Universidade de Lausanne, por exemplo, se recusavaLink externo a matricular suíças de seu próprio cantão (Vaud) sob o pretexto de que sua educação era incompatível com a dos rapazes. Apesar disso, ela aceitava mulheres de outros cantões.
Estrada sinuosa para a igualdade
Em 1915, porém, o número de estudantes estrangeiras na Suíça era igual ao de suas colegas locais. No país, mulheres instruídas, embora permanecessem uma exceção, eram um tabu social menor. A verdadeira mudança de mentalidade ocorreu após a Primeira Guerra Mundial, quando esta forçou as mulheres a entrarem no mercado de trabalho. Uma a uma, as universidades helvéticas revogaram suas restrições de admissão. Ao mesmo tempo, a guerra interrompia o fluxo de estudantes russas para a Suíça.
Em 1922, Genebra abriu seus primeiros ginásios femininos que concediam diplomas de ensino médio e permitiam que as meninas se candidatassem às universidades.
Em 1924, a Associação Suíça das Mulheres Diplomadas nas Universidades (ASFDULink externo) foi fundada em Berna para defender os direitos das mulheres graduadas. Esta sociedade era dirigida por Nelly Schreiber-FavreLink externo, original de Genebra. Ela foi a primeira mulher a se formar na Faculdade de Direito da Universidade de Genebra e, depois, a primeira advogada da cidade. Durante seus estudos, seus professores riam dela, dizendo: “Ah! C’est une femme qui veut jouer à l’homme!”. (É uma mulher que quer brincar de ser homem).
Em forte competição com advogados homens, ela defendeu principalmente uma clientela feminina e jovem. Ela também trouxe várias inovações para o sistema judiciário, como a introdução de tribunais de delinquência juvenil (antes, as crianças eram julgadas como adultos). Em 1918, Schreiber-Favre iniciou a criação da Escola Social para as Mulheres, da qual nasceu o Instituto de Serviço Social de Genebra.
Dificuldades para trabalhar
Um diploma universitário nem sempre significava trabalho. Muitas das mulheres estrangeiras que foram para a Suíça ficaram no país para seguir sua carreira, como Hoff e Tumarkin. Em 1930, as estatísticas oficiais mostravam que a maioria das mulheres educadas no país tinha decidido trabalhar nas áreas de ensino ou saúde, fosse como médica, farmacêutica ou dentista. Nenhuma optou por trabalhar como engenheira e a área jurídica também permaneceu em grande parte fechada para elas.
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As mulheres que estão transformando a ciência na Suíça
Algumas delas abriram seus próprios consultórios, como fez Hoff. Mulheres com diplomas em humanidades e ciências ensinavam em escolas femininas – como Tumarkin. Mas elas tiveram sorte. A realidade para a maioria das mulheres formadas era muito mais desanimadora. Para elas, as oportunidades profissionais continuavam limitadas.
Clara WinnickiLink externo foi a primeira mulher a estudar farmácia em Berna, em 1900, e a primeira ser aprovada no exame federal para farmacêuticos. Isto lhe deu o direito de ter sua própria farmácia. Apesar disso, ela se esforçou para encontrar um estágio e depois um cargo de assistente numa farmácia. As duas farmácias que ela finalmente conseguiu abrir foram à falência.
Obstáculos
Após a crise financeira de 1929, apesar da maior abertura das universidades às mulheres, o mercado de trabalho se tornou ainda mais difícil para elas. As mulheres tiveram que enfrentar a preferência dos empregadores pelos homens e o ceticismo em relação às suas habilidades, bem como uma alta taxa de desemprego.
Naquele momento, a Suíça implementou certas medidas sociais progressistas, como o seguro-desemprego e um sistema nacional de pensão. Mas o país também aprovou leis para excluir mulheres casadas do mercado de trabalho, promovendo o lema “uma família – uma renda”. As famílias com dupla renda eram desencorajadas, especialmente se a mulher da casa fosse empregada como professora ou funcionária pública. Estes empregos muitas vezes eram vistos como um “luxo”.
“As campanhas contra a renda dupla nunca tinham como alvo os homens que estavam empregados… ou mulheres casadas que trabalhavam em fábricas, no artesanato ou em fazendas. Pois, se o salário de uma trabalhadora sem dúvida servia para sustentar sua família, o dinheiro ganho por uma professora ou funcionária pública casada simbolizava um luxo. Essas mulheres, portanto, deveriam deixar seus empregos públicos bem pagos para os homens com famílias para sustentar”, escreveu Erika HebeisenLink externo, historiadora e curadora do Museu Nacional Suíço, num texto do blog.
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Como a Suíça tenta remediar a lacuna de gênero na ciência
O cantão de Basileia, por exemplo, proibiu mulheres casadas de exercerem a profissão de professora em 1926.
Essas políticas excluíram as mulheres qualificadas da força de trabalho e tiveram efeitos duradouros na forma como as mulheres eram percebidas pela sociedade suíça. Quando a Segunda Guerra Mundial chegou, a primeira onda de mulheres progressistas tinha dado lugar a universitárias que frequentemente começavam seus estudos, mas não os terminavam. Aquelas que o faziam optavam por não trabalhar. Elas normalmente se casavam e se dedicavam às suas famílias. Desencorajadas pelas controvérsias contra as mulheres na força de trabalho, muitas delas reduziram suas ambições profissionais.
No início do século 20, na Suíça, pouco menos de 10% das mulheres tinham um diploma universitário. Mas, em 1935, as mulheres representavam 16% do corpo estudantil. Esta proporção permaneceu estável até os anos 1960, quando o ensino secundário misto e o acesso feminino ao ensino superior se tornaram amplamente difundidos. Hoje em dia, há até uma quantidade ligeiramente maior de mulheres do que de homens estudando: no ano acadêmico 2021/2022Link externo, elas representavam quase 52% dos estudantes nas universidades suíças.
Adaptação: Clarice Dominguez
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