Quando o manual de instruções começa a falar
Na incubadora da ETH em Zurique, a startup Rimon desenvolve o manual do futuro. Através de óculos de realidade aumentada (AR), o usuário aprende sem dificuldade a operar máquinas complexas. Seria o fim dos livretos de 100 páginas em letras miúdas?
O aspirador de pó quebrou. Como consertá-lo? Abro o manual de instruções e tento descobrir o defeito. Parece fácil, mas são 50 páginas a estudar e a máquina deve ter provavelmente mais de 500 diferentes peças, incluindo parafusos minúsculos. Desisto e penso: e se o próprio fabricante estivesse ao lado me explicando onde aparafusar ou que peça substituir?
O que parece utopia já existe. Funciona através de um óculo de realidade aumentada (AR), a tecnologia que permite sobrepor elementos virtuais à nossa visão da realidade. Dois estudantes da Escola Politécnica Federal de Zurique (ETHLink externo), David Shapira e Kordian Caplazi, tiveram a ideia de aplicar esta tecnologia à prática e fundaram a startup “Rimon TechnologiesLink externo” durante o lockdown em 2020.
Sua visão: “capacitar as pessoas, repensando o manual”, como descrevem em seu site, permitindo-as de compreender de forma rápida e intuitiva a lidar com máquinas complexas. Para isso, aproveitaram a estrutura da universidade que é considerada uma das melhores do mundo. Nela, as ideias de negócios são apoiadas por consultores e infraestruturas, que são disponibilizadas aos estudantes.
Trabalho na incubadora
O autor visitou os jovens empreendedores em uma dessas infraestruturas, a “Student Project HouseLink externo” (SPH). Esse grande prédio localizado ao lado da ETH abriga inúmeras oficinas e escritórios, onde estudantes podem colocar em práticas suas ideias de empreendimento. O ambiente lembra os laboratórios das gigantes da informática como a Google.
Nas diversas salas, estudantes trabalham nos seus computadores, se reúnem ou discutem com outras pessoas à distância, via internet. Em um grande pavilhão com várias mesas, ao lado de uma estante repleta de impressoras 3-D, jovens testam aparelhos futuristas, soldam cabos ou até plantam legumes em hidroponia. “Neste espaço, diversas startups se encontram, desenvolvem seus produtos e trocam ideias”, explica Lukas Roder, 28 anos, responsável de vendas na Rimon.
Em cima de uma das mesas do pavilhão, o jovem, que se formou em tecnologia da alimentação, mas que já acumula experiências em outras startups, aponta para os óculos “HoloLensLink externo” da Microsoft, um aparelho sofisticado que custa entre 3.500 a 4.000 dólares. Ao lado está uma caixa de metal com uma maçaneta vermelha e um código QR pendurado nela: trata-se de uma caixa de controle de subestação da SwissgridLink externo.
A gestionária da rede elétrica de transmissão de energia da Suíça solicitou à Rimon desenvolver um projeto-piloto de manual em AR para melhorar seus sistemas internos de controle e inspeção. A empresa necessita garantir que suas redes de alta-tensão transportem eletricidade de forma confiável 24 horas por dia. Os óculos AR poderiam facilitar o trabalho de inspeção das subestações, explicando aos técnicos o que fazer e como documentar os problemas.
“Esse sistema pode aumentar a qualidade das inspeçõesLink externo e simplificar nossos processos. Também seria uma vantagem aos novos funcionários que não estão familiarizados com as instalações, garantindo assim a transferência de conhecimento dentro da empresa”, explica o gerente de manutenção da subestação de Mettlen, no siteLink externo da Swissgrid.
Qual a diferença entre VR e AR?
A realidade virtual (“virtual reality”, VR, em inglês) e a realidade aumentada (“augmented reality”, AR) possuem características e objetivos diferentes: enquanto a primeira leva o usuário a um novo ambiente criado por computador, a segunda projeta conteúdos e informações complementares no mundo real. Ambas necessitam de um intermediário para serem acessadas, que pode ser um aplicativo ou um acessório como um HoloLensLink externo (Microsoft) ou o MREALLink externo (Canon).
Testando os óculos
No primeiro passo, Swissgrid forneceu à Rimon todas as informações contidas nos manuais comuns como instruções, imagens, modelos em 3-D e vídeos. “Então desenhamos a interface do sistema para ser visualizado no momento de usar os óculos”, explica Romina Schöni, 25 anos, responsável na Rimon pelo design de experiência do usuário (“UX designer”, em inglês).
Então faço o primeiro teste. Coloco os óculos e Romina pede que direcione meus olhos para o código QR pendurado na caixa de controle. O sistema é ativado e já escuto os primeiros comandos, transmitidos pelos microfones embutidos. Na frente aos olhos surge um display virtual, que me acompanha no ar a cada movimento do corpo.
“Você é agora um técnico da Swissgrid e tem de fazer uma inspeção”, instrui Lukas ao meu lado. “Certifique-se que a lâmpada está disponível no local indicado”, fala a voz através dos microfones integrados aos óculos. O visor projeta então um quadro amarelo sobre a caixa, que destaca a posição do botão liga-desliga e lâmpadas de controles. Então estendo a mão e toco com o dedo no ar, apertando o botão virtual “confirmo”.
O sistema continua a me acompanhar, dando os passos a seguir. “Verifique se o disjuntor na fase 3 está danificado”, fala a voz feminina. Olho o disjuntor na caixa e vejo que está tudo em ordem. “Verifique agora a conexão do cabo para detectar danos em todas as 3 fases, incluindo as fundações. Se tudo estiver OK, confirme com ‘continuar’, caso contrário clique em ‘erro'”. E no final, a voz pede que tire uma foto da parte controlada. Então finalizo o controle e retiro os óculos.
E se cometi um erro? Ou esqueci de algo? “A vantagem do uso de um manual AR é que ele te acompanha passo a passo e pode indicar as falhas ou até avisar se há algum risco”, explica Lukas Roder, o que me tranquiliza ao saber que posso estar lidando com cabos com alta tensão. Quando estiver completamente desenvolvido, o sistema utilizado através de óculos AR poderia permitir ao funcionário da Swissgrid inspecionar até 300 pontos de controle de uma subestação.
Começo com café
Rimon Technologies, que hoje já conta com seis colaboradores, começou em 2019 com um projeto de curso de um dos fundadores. O estudante de engenharia na ETH havia proposto o desenvolvimento do manual virtual de uma máquina automática de caféLink externo. Ele mostraria como desmontar e montar o aparelho, explicando também o funcionamento de cada peça. Junto com seu colega de curso e cofundador, Kordian Caplazi, os dois se aprofundaram na tecnologia de realidade aumentada (AR) e começaram a imaginar soluções práticas para a indústria.
O primeiro projeto surgiu através de um encontro nos laboratórios da ETH com o representante de um fabricante de cofres e sistemas de segurança. Ao se convencer da praticabilidade da tecnologia de AR, o diretor da Dormakaba encomendou um manual para ensinar aos técnicos como montar um bloqueio de segurança para edifícios comerciais. “Esse primeiro projeto foi ideal, pois durante a pandemia não era possível fazer esse trabalho. E assim era difícil fazer o treinamento dos técnicos”, explica Caplazi. O objetivo era comparar um treinamento clássico com o treinamento através da tecnologia AR.
Apesar de fundada em 2020, a startup ainda trabalha nas dependências da SPH em Zurique. No momento, oito projetos de manuais em AR estão sendo desenvolvidos para clientes, em sua totalidade, do setor industrial.
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