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Revertendo a fuga de cérebros da saúde na África

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Existe uma consternação compreensível sobre o plano de Uganda para enviar quase 300 trabalhadores de saúde para Trinidad e Tobago. O plano supostamente inclui quatro dos 11 psiquiatras registrados de Uganda, 20 dos seus 28 radiologistas e 15 dos seus 92 pediatras. Em troca, o país caribenho (que tem uma taxa de médico para paciente 12 vezes superior à de Uganda) vai ajudar Uganda a explorar seus campos de petróleo recém-descobertos.

A reviravolta aconteceu antes. Na virada do século, as negociações internacionais sobre o desenvolvimento econômico também ficaram paralisadas. A reunião ministerial de Seattle da Organização Mundial do Comércio acabou sem decisão, e após duas décadas do Consenso de Washington, os países em desenvolvimento se frustraram com as instituições financeiras internacionais lideradas pelos EUA. As negociações para a conferência inaugural da Conferência Mundial sobre Financiamento para o Desenvolvimento das Nações Unidas (FfD) em Monterrey no México, pareciam estar caminhando para lugar nenhum.

Serufusa Sekidde

Consultor de gestão de políticas da Oxford, trabalhou no principal hospital de referência de Uganda antes de dirigir a maior instalação médica privada no Sudão do Sul. Ele é fellow de 2015 do Aspen Institute New Voices.

O ministro dos negócios estrangeiros de Uganda diz que o acordo faz parte da sua missão de promover os interesses do país no exterior, através da transferência de competências e tecnologia, bem como uma oportunidade de ganhar divisas pela oferta de emprego aos seus cidadãos. Mas os doadores internacionais de Uganda não estão convencidos; os Estados Unidos manifestaram uma enorme preocupação e a Bélgica suspendeu a ajuda ao desenvolvimento para o setor de saúde de Uganda.

Dois amigos meus, um ginecologista e um pediatra, se candidataram para ir. Eu ainda trabalhava com eles em Uganda e poderia ter sido tentado a juntar-me ao êxodo. Profissionais de saúde de Uganda são talentosos e altamente qualificados, mas muitas vezes trabalham em condições terríveis e com grande sacrifício pessoal. Então não é de se surpreender que eles fiquem desanimados e busquem oportunidades profissionais em outro lugar. Eles sabem que o status quo está falhando e que algo tem de mudar.

Eu também já sabia disso.  Em 2009, estava prestes a me tornar o sexto neurocirurgião em Uganda, trabalhando no Hospital Mulago, uma referência nacional e principal instituição de ensino superior do país. Às vezes, tínhamos de cancelar as principais cirurgias, quando o sistema de esgoto com defeito em nossa sala trazia de volta resíduos no que era para ser supostamente um ambiente estéril. Tínhamos uma com falta enorme de pessoal. Uma vez, durante uma sequência de plantões noturnos consecutivos, eu estava tão cansado que acidentalmente me furei sozinho com uma agulha enquanto tirava sangue de um paciente com HIV positivo. Tomei o tratamento antirretroviral chamado Pós-Exposição (PEP) por um mês e tive que tirar uma licença do trabalho devido aos efeitos colaterais da droga. Enquanto isso, o governo aumentando minha angústia, atrasou o pagamento dos nossos salários – e não foi a primeira vez.

O acordo entre Uganda e Trinidad e Tobago viola o código global da Organização Mundial de Saúde para recrutamento internacional de pessoal de saúde, que visa desencorajar a contratação de pessoal de países que possuem escassez de trabalhadores de saúde. Um grupo de reflexão ugandense, o Instituto de Pesquisa de Políticas Públicas, chamou o plano de “fuga de cérebros sancionada pelo estado.” Isso levou o governo a julgamento na tentativa de forçá-lo a reverter sua decisão.

Mas a verdade é que Uganda pode ter tropeçado sem querer em uma política inovadora. Se o plano for executado corretamente, isso poderia beneficiar tanto o setor de saúde e o país, levantando financiamentos adicionais, fortalecendo competências e motivação dos trabalhadores da área médica e criando um modelo para se envolver com a diáspora. Outros países em desenvolvimento que enfrentam desafios similares com retenção de trabalhadores de saúde poderiam aprender com a experiência de Uganda.

Obviamente, este tipo de recrutamento em massa poderia ter um sério impacto negativo sobre os sistemas de saúde dos países em desenvolvimento. Mas também se deve reconhecer que não é sensato para trabalhadores da cadeia de saúde um sistema defeituoso. Tem que haver uma forma de incentivar os médicos a contribuir para o sistema de saúde do país, oferecendo-lhes uma oportunidade de alcançar seus objetivos pessoais e profissionais.

A fim de fazer funcionar, o país destinatário teria que concordar em recrutar profissionais de saúde unicamente através do governo. O país poderia então cobrar impostos sobre a renda externa de seus trabalhadores e usar as receitas para desenvolver o seu sistema de saúde.

Além disso, qualquer acordo deve exigir explicitamente a oferta de oportunidades de educação e desenvolvimento profissional para os trabalhadores de saúde recrutados. O país destinatário pode abrir suas faculdades de medicina e centros de treinamento de saúde aos novos candidatos, ou ajudar a pagar pela educação de saúde e um financiamento de bolsas de estudo de volta ao país de origem. Dessa forma, os países em desenvolvimento como Uganda poderiam não só treinar mais profissionais de saúde, mas também tem fundos para enviar trabalhadores ao exterior para treinamento.

O impacto de tais programas pode ser profundo, porque o déficit de profissionais da área médica não está limitado a África Subsaariana. Com tantos médicos qualificados emigrando para o Reino Unido e para os EUA, o resto do mundo, incluindo países desenvolvidos, também está enfrentando uma enorme fuga de cérebros. Aproximadamente 35.000 médicos gregos emigraram para a Alemanha, enquanto a Bulgária está experimentando uma “sangria de médicos”, perdendo até 600 anualmente (igual ao número anual de graduados da faculdade de medicina no país).

Mas os países em desenvolvimento enfrentam o maior desafio. Oitenta por cento dos países onde a densidade de trabalhadores qualificados é menos de 22,8 a cada 10 mil pessoas estão na África, e outros 13% são no sudeste da Ásia. Os efeitos de tal escassez ficaram claros durante a recente crise de Ebola na África Ocidental.

O problema é que assim chamada fuga de cérebros em Uganda e em outros lugares não é a causa da presente escassez de trabalhadores de saúde. É apenas um sintoma de sistemas de saúde que já estão em crise. A solução final não é desencorajar profissionais de trabalhar no exterior e sim garantir uma melhor formação e condições de trabalho mais favoráveis. Dessa forma, nós, profissionais de saúde podemos nos concentrar na tarefa que temos nas mãos: cuidar da saúde do nosso povo.

Ponto de vista

A nova série da swissinfo.ch acolhe doravante contribuições exteriores escolhidas. Tratam-se de textos de especialistas, observadores privilegiados, a fim de apresentar pontos de vista originais sobre a Suíça ou sobre uma problemática que interessa à Suíça. A intenção é enriquecer o debate de ideias.

As opiniões expressas nesses artigos são da exclusiva responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião de swissinfo.ch.

Tradução: Roseli Honório

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