Grupo suíço de atores com problemas psíquicos encena Machado de Assis no Brasil
Esta não será a primeira vez que um grupo de teatro suíço realiza apresentações no Brasil, mas certamente será uma das mais originais e marcantes. Formado por pacientes com problemas psíquicos, o grupo "Les Anti-dépresseurs", de Genebra, chega ao Rio de Janeiro no fim de abril para uma série de apresentações de uma peça baseada na célebre novela “O Alienista”, obra do escritor brasileiro Machado de Assis lançada em 1881.
Sátira política e social sobre a natureza humana e os conceitos de loucura e normalidade, “O Alienista” levanta temas familiares aos integrantes do grupo. Além de propiciar uma importante experiência artística, serve também como terapia: “O grupo pôde se identificar com as questões colocadas pela peça, que efetivamente traz coisas que lhes são familiares, inclusive a relação com o psiquiatra. Os atores se inseriram bem naquilo que Machado de Assis queria propor e por certo puderam acertar algumas contas com o mundo da psiquiatria, além de analisar a questão com recuo”, diz Noëlle Fabre, que coordena os trabalhos do grupo há doze anos.
Os atores utilizam bonecos em tamanho natural para representar os personagens. A história da peça gira em torno do questionamento sobre o que é a loucura e o que determina que uma pessoa seja qualificada como louca: “Nós nos engajamos com o autor em uma reflexão sobre o que consideramos como normal, sobre onde se situa o limite entre a loucura e a razão e sobre quem situa este limite”, diz a animadora.
A peça será apresentada no dia 5 de maio na Escola Manuel Francisco da Silveira, no município de Magé, como parte da Semana Machado de Assis organizada por professores e alunos. Em 13 de maio, outra apresentação acontecerá no teatro da universidade Unirio, na capital fluminense, durante o Congresso Nacional de Enfermagem. Na Unirio foi inaugurado o primeiro curso de enfermagem do Brasil, tendo como objetivo justamente formar profissionais para trabalhar no maior hospício da época, que era vizinho à universidade. Haverá debates ao fim de ambas as apresentações.
Ainda sem data definida, a peça deverá ser apresentada também na sede do Teatro da Laje, grupo de teatro da favela Vila Cruzeiro, localizada no Complexo do Alemão, zona norte do Rio. Após a apresentação, haverá uma atividade de intercâmbio entre os dois grupos teatrais: “O objetivo é fazer com que as pessoas se encontrem. Foram escolhidos lugares diversos, e será interessante ver como o público reagirá, como acolherá esse grupo peculiar formado por pessoas que são tocadas pela doença e que vem de tão longe. Será muito interessante a observar como essas culturas irão se encontrar, como os atores poderão se integrar e ser aceitos”, diz Noëlle.
Making-off e filme
Um making-off da visita dos “Anti-dépresseurs” ao Rio de Janeiro será realizado por Gregory Ferretti, que também é residente do Centre-Espoir e participa do ateliê de cinema e vídeo promovido pelo Exército da Salvação. Além disso, a produtora suíça Mur4 acompanhará o grupo e terá Ferretti como fio condutor de um filme para a tevê que pretende mostrar a turnê sob um ângulo especial: “O filme falará sobre a loucura que cada um leva dentro de si e sobre os diferentes e subjetivos parâmetros para se julgar o que é normal”, diz Wolgrand Ribeiro, sócio da Mur4 e responsável pelo ateliê de vídeo da organização de assistência social.
Brasileiro que reside há 25 anos na Suíça, Ribeiro é o principal articulador da visita do grupo de teatro suíço ao Rio: “Ao viajar com um grupo de ‘loucos’ levantaremos essa questão. Quem são realmente os ‘loucos’¿ Aqueles que são designados pela sociedade como tal ou o sistema dentro do qual eles vivem¿ Encenar esta peça se trata de mudar o olhar sobre a loucura e a normalidade e de trocar com culturas diferentes experiências sobre como são abordados os problemas psíquicos”, diz.
Fim das atividades
A turnê brasileira dos “Anti-dépresseurs” tem outro aspecto especial, já que poderá ser a última apresentação do grupo. Na volta à Suíça, Noëlle Fabre pretende se aposentar e, ao menos por enquanto, não há ninguém para substituí-la. Por ora, o momento é de segurar a emoção e fazer um balanço positivo do trabalho artístico e terapêutico realizado: “Ao cabo de doze anos, o grupo se transformou bastante. Nós começamos com coisas mais simples e depois fomos progredindo em nível do texto e da atuação dos atores. Para mim, o balanço é extraordinário, nós vivemos coisas muito diferentes em função dos espetáculos que fizemos”, diz Noëlle.
A animadora ressalta que, ao longo dos anos, foram montados espetáculos de diferentes gêneros, com textos baseados nos Evangelhos, textos escritos pelos pensionistas sobre sua história de vida, obras da Comedia dell’Arte e clássicos da literatura universal como “O Pequeno Príncipe”, entre outras fontes de inspiração.
Para Noëlle, o balanço também é positivo no que diz respeito aos objetivos terapêuticos do grupo de teatro: “Foi realmente um acompanhamento rico do ser humano. Eu, como animadora, pude acompanhar as pessoas através desta experiência teatral em domínios extremamente íntimos de suas personalidades e capacidades. A viagem ao Brasil é uma coisa extraordinária que vai coroar o conjunto do processo. É uma chance para mim de fazer com que tudo termine de uma maneira inesquecível”, diz.
Ensaios
A encenação de “O Alienista” é fruto de um trabalho de cerca de 60 horas de ensaio comandado pelo ator e diretor Douglas Fowley Jr com o elenco da peça, formado pelos atores Charles Ormond, Federica Castagnola, Joëlle Beauron, Samuel Zenobi e Viviane Ducrey, além da animadora Noëlle Fabre. A apresentação de estreia aconteceu em 5 de fevereiro na Maison des Associations, em Genebra: “A abordagem teatral como modo de expressão pode se tornar libertadora para aqueles que a encenam e reveladora para os espectadores. A peça ressalta com leveza um problema que é pouco abordado, mas que pode tocar qualquer um”, diz Wolgrand Ribeiro.
Segundo os integrantes do grupo suíço, a novela de Machado de Assis cumpre esse papel de colocar público e atores para pensar: “É uma reflexão comum sobre a doença psíquica, os efeitos secundários dos medicamentos, a abordagem psiquiátrica escolhida ou submetida. Nós queremos contribuir para mudar o olhar das pessoas ditas normais sobre a doença, assim como o olhar dos atores sobre eles mesmos. O exercício permitiu aos participantes se exteriorizar, desenvolver sua solidariedade e a aceitação do outro”.
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