“Tornou-se muito difícil financiar ou negociar com a Rússia”
Muito bem implantado na Suíça, o setor de comércio de matérias-primas (commodities) tem sido fortemente impactado pela guerra na Ucrânia. Muitas empresas estão tentando pôr fim à sua dependência da Rússia", salienta Florence Schurch, secretária-geral da Associação Suíça de Comércio e Navegação (STSA, na sigla em inglês).
Embora pouco conhecido do público em geral, o comércio de commodities é uma atividade chave na economia suíça, particularmente para a região do Lago de Genebra, o cantão de Zug e a região de Lugano. De acordo com a STSA, este polo de atividades representa 35 mil empregos e 4% do produto interno bruto.
Apesar de sua tradicional discrição, esse setor está regularmente sob holofotes porque é alvo – direta ou indiretamente – de iniciativas populares no âmbito federal. Atualmente, a guerra na Ucrânia é a principal razão para que o comércio esteja em destaque no noticiário. Segundo um artigo publicado no jornal francófono “Le Temps”Link externo, três quartos do comércio de petróleo e cereais russos e ucranianos seriam geridos a partir da Suíça. Um encontro em Genebra com Florence Schurch, secretária-geral da STSA.
Biografia
Florence Schurch nasceu e cresceu em Genebra. Obteve um mestrado em ciência política pela Universidade de Genebra e um mestrado em segurança internacional pela Universidade de Georgetown em Washington. Após vários cargos na polícia federal, na Embaixada da Suíça em Washington e no Consulado-Geral da Suíça em Frankfurt, atuou durante onze anos como lobista do cantão de Genebra; como tal, foi responsável pela defesa dos interesses deste cantão em grandes questões federais. Florence Schurch foi nomeada secretária-geral da STSA em fevereiro de 2020.
swissinfo.ch: Com a guerra na Ucrânia, quais são os desafios que os membros da STSA confrontam?
Florence Schurch: Em primeira instância, nossos membros presentes na Ucrânia estão empenhados em garantir a segurança de suas equipes e ativos no local. No entanto, alguns barcos continuam retidos em Mariupol, mas, felizmente, todo o pessoal foi resgatado.
Em seguida, devido às sanções contra a Rússia, alguns de nossos membros estão diante de grandes dificuldades. Tornou-se muito difícil financiar ou negociar com a Rússia, em particular para honrar os contratos existentes. Por consequência, muitas empresas estão mudando seu modelo de negócios e procurando não mais depender da Rússia.
swissinfo.ch: Algum banco sediado na Suíça ainda financia transações com a Rússia?
F.S.: Cada banco é livre de adotar a sua própria estratégia, desde que, evidentemente, não infrinja as sanções em vigor. Contudo, na grande maioria dos casos, os bancos sediados na Suíça vão muito além do que é exigido pelas sanções. Há mesmo casos em que empresas comerciais – completamente suíças e respeitadoras das sanções – tiveram as suas contas bancárias encerradas. Isso tem obviamente consequências para o emprego na Suíça.
“A grande maioria dos bancos com sede na Suíça vai muito além do que é exigido pelas sanções contra a Rússia”
swissinfo.ch: Quais são as vantagens da Suíça para o seu setor?
F.S.: Entre os muitos pontos fortes da Suíça, eu destacaria a densidade dos bancos especializados em financiamento do comércio. Mas um elemento ainda mais importante é a abundância de uma mão de obra altamente qualificada, graças principalmente ao nosso sistema educacional especializado. Penso, por exemplo, no mestrado em comércio de matérias-primas da Universidade de GenebrLink externoa ou nos cursos sobre financiamento do comércio no Instituto Superior de Formação BancáriaLink externo. Sem essas vantagens, muitas empresas do nosso setor já se teriam mudado para o exterior, a fim de reduzir seus custos operacionais e se beneficiar de uma tributação mais branda.
swissinfo.ch: No seu setor, quais grandes empresas chegaram ou deixaram a Suíça recentemente? E quem são seus principais concorrentes? Amsterdam, Londres, Singapura?
F.S.: A situação na Suíça é estável. Não temos visto grandes movimentos nos últimos tempos. Ademais, é natural que várias cidades busquem atrair empresas comerciais atualmente sediadas na Suíça; porém, não é meu papel destacar nossos concorrentes.
swissinfo.ch: Um certo número de empresas comerciais suíças está terceirizando funções não essenciais para países de baixo custo. Qual é a amplitude de tal fenômeno?
F.S.: Este fenômeno de deslocamento para países de baixo custo é muito difundido e não é de todo específico da Suíça e do nosso campo de atuação. No entanto, observei recentemente um abrandamento dessa tendência em nosso setor, sem dúvida como resultado da pandemia e da guerra na Ucrânia.
swissinfo.ch: Seu setor é frequentemente alvo de iniciativas populares. A mais recente, a iniciativa sobre as multinacionais responsáveis, foi rejeitada por pouco em novembro de 2020. Quais são os impactos desses ataques?
F.S.: Semelhantes ataques recorrentes visam principalmente a economia como um todo. Penso, obviamente, na votação sobre as multinacionais responsáveis, mas também naquelas sobre os gêneros alimentícios ou sobre a fiscalidade das empresas. Mesmo infrutíferos, esses ataques desestabilizam a economia e isso não é nada bom para a Suíça. Nunca esqueçamos que são as empresas que criam empregos e permitem o financiamento de programas sociais e educacionais.
swissinfo.ch: Seu setor é bastante oligopólico. Por exemplo, quatro gigantes mundiais dominam o comércio de produtos agrícolas: ADM, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus.
F.S.: Não creio que o nosso setor seja fundamentalmente oligopólico, embora os meios de comunicação destaquem algumas grandes empresas. No entanto, a miríade de pequenos atores – considerados em conjunto – tem mais peso do que uma grande empresa. Este é também o caso dentro da nossa associação.
swissinfo.ch: Em 2019, o presidente da STSA expressou o desejo de que a população suíça sentisse orgulho tanto de seus traders (comerciantes de matérias-primas) quanto de seus fabricantes de queijo. Que progressos foram feitos até agora?
F.S.: Eles são enormes. No passado, os comerciantes não viam necessidade de se comunicar com o público em geral por uma série de razões, incluindo as muitas auditorias a que os seus empregadores deviam submeter-se e o fato de as suas infraestruturas (minas, silos, navios etc.) estarem localizadas no exterior. E as empresas comerciais são muito menos conhecidas do público em geral do que empresas como a Nespresso, Starbucks, BP ou Shell.
Felizmente, no ano passado, o conselho administrativo de nossa associação optou por uma estratégia de comunicação ativa. O nosso objetivo é evitar suspeitas devido à ausência de comunicação. Ademais, não queremos deixar o campo aberto aos nossos detratores. Esta comunicação muito mais intensiva é, em grande medida, assegurada pela STSA.
swissinfo.ch: No que respeita aos critérios ambientais, sociais e de governança (ESG, na abreviação em francês), diria que a atitude da Suíça é de vanguarda ou, melhor, de “esperar para ver”?
F.S.: As sociedades comerciais suíças são completamente vanguardistas neste aspecto, mesmo que isso não seja suficientemente reconhecido. Tomemos o exemplo da Rainforest Alliance, uma iniciativa que visa notadamente a proteção das florestas e da biodiversidade. As empresas de comércio ativas no negócio do café estão fortemente envolvidas nesta organização: no entanto, são sobretudo outras empresas muito mais conhecidas que comunicam os resultados da Rainforest Alliance.
swissinfo.ch: A sua associação organiza com frequência coquetéis em Berna para parlamentares federais. A classe política suíça tem uma boa compreensão do seu setor?
Absolutamente! Reunimo-nos regularmente com parlamentares federais e mesmo com membros do Conselho Federal. Contudo, o fato é que um esforço substancial deve ser feito na Suíça germanófona, tanto em termos de comunicação quanto de contatos com políticos.
“Para o setor de comércio, o principal trunfo da Suíça é a abundância de uma mão-de-obra altamente qualificada”.
swissinfo.ch: A STSA conta com 180 membros de mais de 500 empresas ativas em seu setor na Suíça. Demais disso, alguns atores chave como a Trafigura, MSC ou Glencore não são – ou já não são – membros de sua associação. Ela não tem um problema de legitimidade?
F.S.: Uma associação como a STSA é como um partido político. Há membros que partem e outros que vêm. Em geral, somos bastante estáveis e eu não estou muito preocupada com isso.
swissinfo.ch: Tal como o mundo bancário, o setor de comércio e negócios é um ambiente extremamente masculino. Por quais motivos?
F.S.: Infelizmente, você tem razão. Para mitigar o problema, faço tudo o que posso para pôr em destaque líderes femininas e tento incentivar a emulação. Felizmente, 25% dos estudantes do mestrado em comércio de matérias-primas na Universidade de Genebra são mulheres. Esta é ainda uma percentagem muito baixa, mas já percorremos um longo caminho.
Por vezes as mulheres são também suas próprias inimigas: enquanto as empresas de comércio estão prontas para contratá-las, o número de candidatas continua a ser muito baixo. Em termos mais gerais, quanto à promoção das mulheres no ambiente de trabalho, a Suíça está muito atrasada. Penso, por exemplo, no elevado custo do acolhimento de crianças e na falta de creches.
Adaptação: Karleno Bocarro
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