Casas para viver como no tempo dos avós
Quem nunca sonhou em saber como viviam os antepassados? O jornalista Dale Bechtel fez a experiência ao passar uma noite numa casa de fazenda construída há 250 anos, no Emmental.
A oferta é inspirada num programa da televisão suíça, onde uma família troca os confortos da modernidade pelo estilo de vida do século XIX.
Eu não queria perder essa chance. A oferta estava anunciada num folheto distribuído pela agência de turismo do Emmental, uma bonita região do cantão de Berna: estadias em casas de fazendas centenárias.
Por isso escolhi ficar num antigo e rangente casarão de madeira, nas imediações de um vilarejo chamado Schangnau. Lá não haveria água corrente ou eletricidade. Assim eu informei minha esposa, mas decidi não contar nada aos nossos dois filhos.
Revelar tantos segredos iria acabar com a surpresa e as crianças estão numa idade – dez e oito anos – onde surpresas são como presentes de aniversário. Em último caso, eu pensei, eles não iriam protestar contra o desconhecido.
Dezenas de famílias da região rural do Emmental se inscreveram para ter suas casas participando do programa “Passe uma noite como nos tempos de Gotthelf”.
Jeremias Gotthelf é o nome de um dos mais conhecidos escritores da Suíça. No século XIX, ele trocou a profissão de pastor evangélico pela de escrever livros. Sua marca registrada são os perfis realistas da vida rural no Emmental.
Nos últimos anos o autor viveu uma inesperada popularidade através de um programa da televisão suíça intitulado “Vivendo como nos tempos de Gotthelf”. Nele, famílias são obrigadas a abandonar os confortos da modernidade para viver como a população rural do passado.
Um dos critérios utilizados na seleção das casas de fazenda é que ela tenha obras de Gotthelf nas prateleiras. Isso foi, como me explicou a funcionária Ruth Zemp, da agência de turismo de Emmental, a parte mais fácil.
Negligenciado
Como me contou Zemp, as instalações nas casas tinham de se restringir a um jarro ou tigela de água para o banho. No caso emergências noturnas, o hóspede só tem o penico. Os móveis teriam de ser autênticos, além de assoalhos irregulares e lâmpadas de petróleo. Apenas três das quarenta casas oferecidas foram realmente descuidadas por tanto tempo para chegar a ter essas características.
Foi engraçado, mas ela se esqueceu de nos contar que seríamos recebidos por cachorros latindo e o forte cheiro do adubo utilizado nesse época do ano. A realidade é que havíamos feito uma reserva para dormir numa verdadeira fazenda e não num museu.
Os animais acabaram sendo a surpresa mais agradável do passeio, sobretudo para as crianças: vacas, cabras, coelhos e gatinhos recém-nascidos.
A casa escura que seria a nossa moradia por uma noite foi construída em 1768. Foi nessa época que os meus ancestrais abandonaram da Suíça. Será que eles também batiam a cabeça na base da porta? Ela é incrivelmente baixa…
A suíça Rosmarie Stettler administra a fazenda junto com seu marido e um filho. Ela nos explica que nossa casa foi construída originalmente ao lado da casa principal para funcionar como depósito de queijo. Posteriormente ela foi expandida em dois quartos para acomodar trabalhadores rurais, a mão-de-obra extra, necessária nos períodos de colheita.
Nas últimas décadas ela ficou desocupada, servindo mais de depósito para móveis e outros objetos que a família não precisava mais.
Impressões
Num dos quartos haviam duas camas bem curtas. Os pregos de madeira que as uniam revelavam o ano de fabricação delas: “1839”, gravado com esmero por um talhador. O linho da roupa de cama era autêntico e os colchões não passavam de retângulos recheados de palha de milho. Eu estava seguro que esse ambiente nos deixaria a noite toda sonhando no Emmental vivido por Gotthelf.
Mais confortável do que o ambiente estilo século XIX foi a refeição que recebemos no restaurante vizinho, o Kemmeriboden Bad. Quando o ex-pastor estava escrevendo suas crônicas, o local costumava receber turistas à procura de cura nas suas fontes naturais.
O complexo hoteleiro mantém até hoje sua fachada rústica e salas de jantar tradicionais. Para comer, eu pedi ao garçom um “Gotthelf”. O prato é composto de bisteca de porco num molho de queijo emmental com pedaços de presunto da fazenda. Batatas gratinadas à francesa são servidas à parte.
“Nossos cozinheiros conhecem as receitas do tempo de Gotthelf. Eles adoram elaborar esses pratos”, conta Heiner Invernizzi, cuja família administra o estabelecimento há 150 anos.
“As pessoas comiam muito porco, preferindo vender a carne de boi devido aos preços vantajosos. Nessa época, o fazendeiro, sua esposa e os servos estariam sentados juntos na mesa e comendo do mesmo prato ou travessa”.
Na hora de voltar à nossa casa, não encontramos nenhum interruptor para ligar as luzes. Por isso começamos a procurar desesperadamente fósforos para acender as lâmpadas de petróleo. Stettler tinha preparado pesadas bolsas de água quente, já prontas para utilizarmos se a noite estivesse muito fria.
Na cama, a palha de milho se moldava segundo o contorno dos nossos corpos. Era como se estivéssemos em cima de areia. Por nossa surpresa, o sono foi agradável e tranqüilo. Só fomos acordados quando a luz do dia entrou no quarto. Estava chovendo e uma brisa fresca atravessava a fresta da porta.
O café da manhã era pão feito em casa, salsicha, queijo, presunto e café. As crianças perguntaram por que não haviam cereais ou suco de laranjas, produtos que não existiam na dieta suíça do século XIX. De qualquer maneira, talvez o tamanho reduzido das camas seja um testemunho sobre a constituição das pessoas nessa época.
swissinfo, Dale Bechtel
Jeremias Gotthelf era o pseudônimo do escritor suíço Albert Bitzius (1797-1854).
Bitzius, que trabalhou como pastor evangélico na região do Emmental, tinha um interesse ativo na educação e desenvolvimento econômico da população rural.
Uma grande parte dos 38 livros da sua obra foi escrito em dialeto suíço-alemão.
Os livros mais conhecidos são:
“Uli, der Knecht / Uli, der Pächter” (“Uli, o servo” e “Uli, o arrendatário). 1846 – 1849. romance duplo.
“Die schwarze Spinne” (A aranha negra). 1843 – novela.
A organização de marketing turístico “Pro Emmental” identificou três casas de fazenda construídas no século XIX, onde turistas podem se hospedar. Elas estão localizadas nas proximidades dos vilarejos de Schangnau, Landiswil e Fankhaus.
A oferta especial foi criada para capitalizar o sucesso do programa suíço de televisão “Vivendo como nos tempos de Gotthelf”, que mostram cidadãos normais se adaptando às condições no campo como no tempo em que viveu o famoso escritor suíço.
Segundo representantes do Pro Emmental, a oferta tem encontrado grande aceitação, sobretudo por pessoas ansiosas de escapar dos (des)confortos da vida moderna.
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