“Sigilo bancário é a nossa mentalidade”
O sigilo bancário suíço é atacado por todos os lados, sobretudo no exterior. Mas o lobby de defesa é forte. Um dos seus mais articulados representantes é Michel Y. Dérobert, secretário-geral da associação que reúne os mais refinados bancos privados da Suíça. Entrevista swissinfo.
O início da primavera é agradável no bairro dos banqueiros em Genebra. As árvores florescem nos seus bulevares e os executivos sentam na parte externa dos cafés para ler tranquilamente o “Financial Times”. O expresso é tirado com maestria das máquinas italianas. Não muito distante, o Grande Teatro de Genebra, a famosa sinagoga de Beht Yaacov e o Museu Internacional da Reforma.
Nesse quadrilátero paradisíaco estão algumas das mais tradicionais e prestigiosas instituições financeiras helvéticas, bancos privados. Há séculos elas administram com sucesso a fortuna de discretos clientes. São nomes como Bordier (banco privado fundado em 1844), Lombard Odier Darier Hentsch (1796), Mirabaud (1819) e Pictet (1805).
Elas estão agrupadas na Associação de Banqueiros Privados Suíços (ABPS, na sigla em francês), um clube exclusivo que compreende apenas 14 membros. Calcula-se que esses bancos administrem a metade dos cinco trilhões de francos depositados na Suíça como revela o jornal alemão Handelsblatt.
A ABPS se autodefine como um lobby voltado para a “defesa dos interesses profissionais dos banqueiros privados e pela manutenção de contexto econômico e político favorável ao exercício de atividades de gestão de fortuna na Suíça”.
Essa associação é dirigida por Michel Y. Dérobert, um ex-banqueiro, com longos anos de experiência no setor financeiro em Genebra e Londres. Ele também dirige a Associação dos Banqueiros Privados Genebrinos. Jornais como o alemão Handelsblatt o descrevem como um “grande articulador dos banqueiros suíços: ele conhece todos e todos o conhecem. E eles confiam nele”.
Desde que a União Européia começou a atacar o sigilo bancário na Suíça, Dérobert tem organizado a sua defesa. E ele o faz de uma forma bem suíça: cordial, impassível e irrevogável.
Por que o sigilo bancário costuma ser associado a algo suspeito, como vemos nos filmes de James Bond?
Michel Dérobert: Penso que existe uma mitologia criada e que sempre reaparece quando há um caso de corrupção ou de dinheiro sujo. Mas a questão é que a Suíça é o país melhor armado do mundo para descobri-lo. Eu ainda diria: graças ao sigilo bancário. Ao querer mantê-lo, a política suíça percebeu que a única forma era prestar bastante atenção ao que estava sendo guardado dentro desse sigilo. Por isso existe uma diligência extremamente elaborada no domínio da luta contra o dinheiro sujo e a corrupção – veja a história da Nigéria (n.r.: a Suíça devolveu recentemente à Nigéria todo o dinheiro que o falecido ditador nigeriano Sani Abacha havia escondido em contas no país, 700 milhões de dólares). Essa diligência foi lentamente copiada por outros países. Dizemos sempre que se a gente não conhece o cliente, não seria necessário o sigilo bancário. Na Suíça temos uma prática que garante o sigilo, mas em troca há bastante transparência dentro do sistema.
O sigilo bancário ainda é um dos grandes mitos da Suíça?
A Suíça sempre quis manter um sigilo bancário, pois faz parte da sua tradição financeira e também da mentalidade do seu povo. Uma mentalidade em que as pessoas são reservadas sobre o que têm e o que mostram. Isso também diz respeito à relação que existe entre o cidadão e o Estado. Afinal, na Suíça os cidadãos confiam neste, mas porque, em primeiro lugar, o controlam largamente graças às votações (n.r.: os plebiscitos e referendos), mas desconfiam muitas vezes dos funcionários. Nós, suíços, gostamos de restringir o poder do Estado para mantê-lo sob controle.
E essa desconfiança justifica então a existência do sigilo?
O sigilo bancário é essencialmente a proteção do indivíduo frente ao Estado. Em seguida, a questão é saber o que ele está cobrindo? O fato é que o sigilo é definido por seus limites. Os limites são atos que podem ser considerados como delitos e penalmente puníveis. E quais são os atos que não são considerados penalmente puníveis? Nesse ponto é que tivemos – no contexto das relações com um certo número de países – diferentes concepções no domínio da fiscalidade. Existem diferentes visões das relações entre o Estado e seus cidadãos, entre a coletividade e o indivíduo.
Como explicar no exterior a diferenciação feita pelos suíços de evasão e fraude fiscal?
Temos na Suíça um sistema bem eficaz do ponto de vista fiscal. Ele permite recolher os impostos, preservando ao mesmo tempo a confidencialidade dos dados fiscais do cidadão. Esse sistema é baseado no imposto retido na fonte – quando você recebe dividendo ou juros, o devedor, ou seja, o banco ou a sociedade que verte os dividendos, vai enviar 35% ao Estado e 65% ao investidor. E depois cabe a você, como investidor, recuperar o dinheiro que foi pago em demasia ao Estado. O imposto na fonte não é liberatório: se você não declarar esse dinheiro, é como se ele não existisse. Isso significa estar cometendo evasão fiscal. Mas você o declara, a alíquota de 35% é bastante.
Até aí não existem muitas diferenças…
Mas a questão é que o Estado na Suíça não vai, e não tem, a possibilidade de acesso aos dados pessoais dos contribuintes. Eles próprios devem entregá-los, pois senão isso pode custar dinheiro. Nosso sistema fiscal consegue preservar, de um lado, o interesse do Estado – que quer dinheiro – e o interesse do cidadão – que não quer ficar nu frente ao Estado.
Mas por que é tão difícil convencer outros países a aceitar essa diferença?
O problema é que outros países não têm o mesmo sistema. Eles preferem outros. Por exemplo, toda a “City” londrina, o maior parque financeiro da Europa, desenvolveu seu modelo de negócios dizendo: aqui não temos o imposto na fonte. Dessa forma eles atraíram uma grande parte do business americano através do mercado de eurobônus. Isso é muito mais simples. Mas a questão que surge é que esses dois sistemas são incompatíveis. E eu recuso que digam para mim que meu sistema moralmente é pior do que o outro. A moral diz que devemos pagar impostos, mas como fazer as pessoas pagarem é mais uma questão técnica e cultural.
Sou contribuinte na Suíça e preciso declarar não apenas as contas, incluindo os valores, mas também o que tenho no exterior. Cadê o sigilo?
Mas o imposto não é algo voluntário. Nós devemos pagá-lo! Porém o sistema suíço foi desenvolvido de tal maneira, que não se considera a evasão fiscal um crime. É suficiente punir as pessoas que a cometem por meio de multas, ou seja, punir um erro de dinheiro com dinheiro. Não iremos colocar essas pessoas forçosamente na prisão por isso. O fato é que, globalmente, o sistema fiscal suíço é um sistema onde as pessoas são bastante honestas.
Concordo: as estatísticas mostram que o contribuinte suíço é um dos mais honestos na Europa…
Existem várias razões para isso. Uma delas é que o imposto indireto (n.r.: TVA, o imposto sobre o consumo na Suíça) é bastante baixo. Assim as pessoas não têm um grande interesse de trabalhar sem nota fiscal e fraudar o sistema. A segunda razão é que nós, eleitores, votamos os impostos. Assim sabemos que existe uma base democrática no que pagamos. Os meios para fazer reinar a ordem são de outra natureza.
Mas o senhor não concorda que muitos se aproveitam da Suíça para fugir do fisco nos seus países?
Você então irá me dizer que o problema é que outros países têm sistemas distintos e que, então, o objetivo é mover-se entre os sistemas para pagar menos imposto. Para mim, ao concentrar toda essa questão na disputa fiscal, estaremos deturpando o problema. A Suíça sempre concordou em colaborar no plano fiscal, mas respeitando suas leis. É por isso que fizemos o acordo com a União Européia sobre o sistema de retenção de impostos. E agora, com a decisão do governo federal de ir além ao aceitar os critérios da OCDE, estaremos fazendo um grande desvio: continuaremos aplicar o mesmo sistema para os suíços e um sistema diferente para os estrangeiros, mas dentro dos limites fixados.
O governo suíço anunciou em 13 de março que iria aceitar as regras da OCDE relativas à assistência administrativa em matéria fiscal. O fim do sigilo bancário?
Não acho que esse anúncio signifique o fim do sigilo bancário. Penso sim, que seu princípio continua sendo válido. Como já fizemos em outros casos, iremos agora defini-lo de uma forma mais restrita. Eu tenho uma certa idade e por isso visão: em 1984, o “Wall Street Journal” já havia anunciado o fim do sigilo bancário suíço quando o país disse que aceitaria criminalizar as operações de iniciados (em inglês: “insider trading”). Então colocamos um artigo no código penal que descrevia como delito penal, não um crime, o fato de fazer operações de iniciados na bolsa. Assim essa ação já não estava mais coberta pelo sigilo bancário. O juiz podia pedir informações e por aí vai. O jornal americano disse então que era o fim do sigilo bancário, como se todos os clientes de bancos suíços fossem “insiders”. Não foi esse o caso. As novas regras permitiram melhor colaborar nas investigações dessas operações, que são em todo caso muito raras.
Mas agora a Suíça não está se prontificando a colaborar com autoridades estrangeiras também nos casos de evasão fiscal e não só de fraude?
A Suíça fez o mesmo com a questão fiscal: temos alguns delitos que são de fato delitos e outros que não, pois são infrações que não são de natureza penal. E agora chegamos à conclusão que, possivelmente, essa sutil diferença (delito e evasão fiscal) e que é muito importante para os suíços – e que será conservada internamente – era difícil de explicar às administrações estrangeiras. Então iremos agora aceitar, em uma dimensão maior do que no passado, colaborar nos casos de evasão fiscal onde há uma suspeita fundamentada, com dados da pessoa, do número de conta, do seu ato etc. Agora iremos colaborar, mesmo sem exigir a intervenção de um juiz.
O acordo concluído entre o UBS e a justiça americana em 18 de fevereiro obrigou o maior banco suíço a ceder dados de 300 clientes. Os EUA querem agora dados de mais 52 mil. O sigilo ainda protege seus clientes?
O UBS é um caso especial e muito diferente. Em primeiro lugar, posso dizer francamente que o banco fez coisas que eles próprios se arrependeram posteriormente, no contexto de suas operações nos EUA. Então os americanos fizeram tal pressão que a FINMA (n.r.: Autoridade suíça Federal de Supervisão dos Mercados Financeiros) considerou que era a sobrevivência do banco que estava em jogo. Não tenho todos os elementos para dizer que o órgão agiu incorretamente, mas também não os tenho para dizer que foi correto. Tenho a impressão que havia uma partida de pôquer. Mas não acho que os americanos queriam tirar o emprego dos 30 mil funcionários do UBS no país.
Jogo ou não, o fato é que recentemente dois desses ex-clientes do UBS, cujos dados foram entregues pelos suíços, acabam de ser processados nos EUA.
A justiça americana obteve esses dados à força. O próprio UBS identificou aqueles que o banco estimava que haviam cometido infrações que iam além do que era tolerado pelas nossas regras. Então o banco os entregou às autoridades suíças. Penso que nesse caso chegamos a um ponto onde os limites do sistema foram alcançados. Acho que nenhum outro país no mundo, como os EUA, teria colocado um banco dessas dimensões e o sistema suíço sob tal pressão. Lamento bastante o que aconteceu. Lamento o comportamento do UBS. Lamento as decisões das autoridades de supervisão. Porém acho que não podemos fazer uma generalização a partir deste caso, mas concordo que foi muito desagradável para o UBS e para a Suíça.
Os clientes dos 14 bancos privados que estão na sua associação não temem o precedente?
Nossos clientes não estão forçosamente na mesma situação desses que estão sendo inculpados nos EUA. Acho que eles estão dizendo: esse banco cometeu atos ilícitos e se colocou em uma posição de poder sofrer pressão, ou seja, é um caso especial. Se você tem um pequeno banco privado, o país não faria ações parecidas para salvar essa instituição. Os riscos em jogo de todas as partes são muito menores. Não podemos comparar o que aconteceu com o UBS com os bancos privados.
Na segunda parte da entrevista, Michel Y. Dérobert fala de temas como a lista “cinza”, o dinheiro “negro” depositado na Suíça e a disputa com a Alemanha. Clique AQUI para ler.
swissinfo, Alexander Thoele
Michel Y. Dérobert se formou em administração de empresa na Universidade de St. Gallen. Ele trabalhou em diversas posições no setor bancário e financeiro em Genebra e Londres antes de ser chamado para trabalhar na Economiesuisse, a federação das empresas suíças, em 1981.
Desde 1990, ele é secretário-geral da Associação de Banqueiros Privados Suíços.
Dérobert também é secretário-geral do Grupo de Banqueiros Privados Genebrinos.
A ABPS foi fundada em 1934 e compreende atualmente 14 membros, que empregam cerca de seis mil funcionários na Suíça e em outros países do mundo.
Através do secretariado permanente sediado em Genebra, a associação tem por missão essencial defender os interesses profissionais e o estatuto de banqueiros privados. Ela também tem um papel fundamental na manutenção de um contexto econômico e político favorável ao exercício de atividades de gestão de fortuna na Suíça.
Bancos privados associados à ABPS:
-Baumann & Cie
-Bordier & Cie
-E. Gutzwiller & Cie
-Gonet & Cie
-Hottinger & Cie
-Landolt & Cie
-La Roche & Co Banquiers
-Lombard Odier Darier Hentsch & Cie
-Mirabaud & Cie
-Mourgue d’Algue & Cie
-Pictet & Cie
-Rahn & Bodmer
-Reichmuth & Co
-Wegelin & Co
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