O que significa a decisão do parlamento israelense de proibir a atuação da UNRWA?
A decisão histórica do parlamento israelense de impedir que Agência da ONU para Refugiados Palestinos (UNRWA) trabalhe em Gaza, na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental provocou fortes reações e muitos questionamentos. Apresentamos aqui algumas explicações.
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Em 28 de outubro, o parlamento israelense (Knesset) aprovou por ampla maioria – 92 a favor e 10 contra – duas leis que proíbem a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA) de operar em Israel. A nova legislação também proíbe que funcionários israelenses tenham contato com a organização, impedindo efetivamente seu trabalho em Gaza, na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental. Essa legislação deve entrar em vigor dentro de três meses.
Grande parte da comunidade internacional – incluindo a Suíça, organizações humanitárias e a Organização das Nações Unidas (ONU) – denunciou a decisão, lembrando o papel fundamental exercido pela agência no fornecimento de ajuda aos refugiados palestinos, especialmente na Faixa de Gaza, devastada pela guerra.
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Por que Israel baniu a UNRWA?
Historicamente contra a UNRWA, Israel argumenta que a organização humanitária, que foi criada em 1949 e continua auxiliando descendentes de palestinos deslocados pela guerra de 1948, perpetua o conflito israelo-palestino ao permitir que o status de refugiado seja passado de uma geração para outra.
Desde o início do ano, o governo israelense tem acusado a UNRWA de estar infiltrada pelo Hamas, alegando que vários funcionários da agência teriam participado dos ataques do Hamas a Israel em 7 de outubro de 2023. Essas alegações foram mencionadas pelos parlamentares que redigiram a nova legislação.
Uma investigação internaLink externo da ONU levou à demissão de nove membros da equipe devido ao seu possível envolvimento nos ataques. Uma outra investigação externa não encontrou grandes falhas na neutralidade da organização.
Quais são as consequências para a UNRWA e para a ajuda humanitária?
O secretário-geral da ONU, António Guterres, disse na plataforma XLink externo que “se implementadas, as leis […] provavelmente impediriam a UNRWA de continuar seu trabalho fundamental no Território Palestino Ocupado”. O suíço Philippe Lazzarini, comissário-geral da UNRWA, compartilhaLink externo a mesma opinião: “essas leis só vão aumentar o sofrimento dos palestinos, especialmente em Gaza, onde as pessoas estão vivendo um inferno há mais de um ano”.
A proibição de operar em território israelense ameaça diretamente as atividades da UNRWA no campo de refugiados de Shuafat e a sede da organização em Jerusalém Oriental, uma parte da cidade que está ocupada por Israel desde sua anexação em 1967.
A interdição da comunicação entre funcionários israelenses e a agência da ONU, por sua vez, coloca em risco suas operações na Cisjordânia e em Gaza, onde a UNRWA precisa colaborar com o exército e as autoridades israelenses para transportar e distribuir ajuda, inclusive para garantir a segurança de seus funcionários. De acordo com a nova legislação, Israel não fornecerá mais aos funcionários da UNRWA as permissões de trabalho ou os vistos necessários.
Ao ser entrevistado pela televisão pública suíça RTSLink externo, o porta-voz da UNRWA, Jonathan Fowler, disse estar “preocupado” com o futuro, mesmo que ainda seja difícil prever as consequências concretas da nova legislação.
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“Mas é um fato que, se essa legislação for implementada, ela poderá interromper nossas operações na Cisjordânia, em Jerusalém Oriental e em Gaza, onde somos a espinha dorsal da ajuda humanitária internacional”, acrescentou.
Na Faixa de Gaza, onde 9 em cada 10 palestinosLink externo foram deslocados após mais de um ano de guerra devastadora, a UNRWA continua sendo a principal fornecedora de ajuda humanitária, da qual as outras organizações dependem. A agência emprega cerca de 13.000 pessoas. Ela também administra muitas escolas e centros de saúde na Cisjordânia, na Jordânia, no Líbano e na Síria.
É possível substituir a UNRWA?
O primeiro-ministro israelense, Benyamin Netanyahu, disseLink externo em 28 de outubro que estava “pronto para trabalhar com [seus] parceiros internacionais para garantir que Israel continue viabilizando a ajuda humanitária aos civis em Gaza de uma forma que não ameace a segurança de Israel” – ou seja, por meio de outras organizações.
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António Guterres e Philippe Lazzarini insistem que a agência é “insubstituível”. Essa mensagem foi compartilhada por outros atores humanitários, inclusive aqueles frequentemente mencionados como possíveis substitutos da agência, como a Organização Internacional para as Migrações (OIM)Link externo. Em abril, o diretor do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), Pierre Krähenbühl, também disse ao jornal Le TempsLink externo que a Cruz Vermelha “não assumiria o mandato da UNRWA”.
Em entrevista à RTSLink externo, Jean-Daniel Ruch, ex-embaixador da Suíça em Israel (2016-2021), disse que “não é realista por enquanto” substituir a UNRWA por outra organização, seja privada ou da ONU. “Isso me parece extremamente difícil. Porque, para fornecer essa assistência humanitária, você precisa de redes de fornecedores para comprar materiais, redes de entrega para fronteira de Gaza, caminhões e uma rede de distribuição dentro de Gaza, com pessoas que conheçam o terreno”.
O que diz o direito internacional?
Os diretores da ONU e da UNRWA, bem como vários países, afirmaram que a legislação viola o direito internacional.
Fuad Zarbiyev, professor de Direito Internacional no Instituto de Pós-Graduação em Estudos Internacionais (IHEID) em Genebra, afirma que essa é “mais uma violação escandalosa” da Carta das Nações Unidas e do direito internacional por parte de Israel.
Ao se tornarem membros das Nações Unidas, os Estados se comprometem a fornecer as condições necessárias em seu território para que a ONU realize suas atividades. Essas condições são definidas na Carta da ONU e na Convenção sobre os Privilégios e Imunidades da ONU, dois tratados que Israel se comprometeu a respeitar. “A decisão do parlamento israelense é uma violação grave e injustificável desses acordos”, acrescenta o professor.
A UNRWA opera sob mandato da Assembleia Geral, um órgão da ONU no qual todos os Estados membros têm assento. De acordo com o professor Zarbiyev, Israel não pode, portanto, proibir unilateralmente as atividades da agência em seu território ou proibir os contatos necessários entre suas autoridades e a organização.
“A ONU não deve depender da boa vontade das autoridades israelenses. Estamos falando de compromissos assumidos sob o direito internacional. A menos que Israel deixe as Nações Unidas, será difícil alegar que essa decisão é juridicamente fundamentada”, acrescenta.
O que a ONU e a comunidade internacional podem fazer?
Em 29 de outubro, Guterres enviou uma cartaLink externo ao presidente da Assembleia Geral da ONU, na qual menciona que “pode haver uma situação na qual tenha surgido uma divergência entre a ONU e Israel com relação, entre outras coisas, à interpretação ou aplicação da Convenção sobre os Privilégios e Imunidades da ONU”.
De acordo com Fuad Zarbiyev, isso significa, nas entrelinhas, que Guterres está incentivando os membros da Assembleia Geral a pedirem à Corte Internacional de Justiça (CIJ), o principal órgão judicial da ONU, que produza um “parecer consultivo” sobre essa possível disputa entre Israel e a ONU.
“De acordo com os termos da Convenção, esse parecer consultivo deve ser reconhecido como vinculante pelas partes”, explica Zarbiyev. Se a Corte Internacional de Justiça (CIJ) considerar que Israel não está cumprindo a lei, “isso enfraquecerá ainda mais a sua legitimidade”. “Uma coisa é a Assembleia Geral ou o secretário-geral declarar que isso é uma violação do direito internacional. Mas é outra coisa se essa opinião vier do principal órgão judicial da ONU”, acrescenta o professor.
Se a CIJ decidir que o direito internacional não permite que Israel proíba a atuação da UNRWA, então o Conselho de Segurança ou a Assembleia Geral poderiam agir com base nisso. Sua ação pode incluir desde uma resolução forte condenando Israel até a decisão de retirar certos direitos ou mesmo impor sanções ou expulsar Israel da ONU, embora essa não seja uma possibilidade realista. A pressão internacional poderia influenciar a forma como Israel implementa essas leis.
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Quais são as consequências para a ONU?
Philippe Lazzarini, comissário-geral da UNRWA, acredita que a decisão do parlamento israelense estabelece um “precedente perigoso” e ameaça “enfraquecer nosso mecanismo multilateral comum”.
Richard Gowan, responsável pelas Nações Unidas no think tank Crisis Group, de Nova York, questiona essa avaliação. “A ideia de que essa é uma situação sem precedentes e que ela abre um precedente perigoso para as Nações Unidas é exagerada”, afirma.
Essa não é a primeira vez que um Estado se opõe às atividades da ONU em seu território. O governo do Mali, que chegou ao poder por meio de um golpe em 2021, criticou a missão de manutenção da paz da ONU no país, impondo restrições operacionais antes de garantir, no Conselho de Segurança, a sua retirada oficial.
“Mas é verdade que é incomum ver um país realmente proibir dessa forma as operações de uma agência específica da ONU”, acrescenta Gowan.
Se Israel ignorar as decisões dos órgãos da ONU, “isso enviará um sinal muito forte de que a ONU pode ser retirada dos países arbitrariamente”, acrescenta. “E, se Israel fizer isso, outros pensarão que podem fazer o mesmo”, conclui.
Edição: Imogen Foulkes/fh
Adaptação: Clarice Dominguez
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