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Os direitos das mulheres no Afeganistão são negociáveis?

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Mulheres afegãs vestidas com burca caminham por uma rua nos arredores de Mazar-i-Sharif em 13 de outubro de 2024. Afp Or Licensors

O regime do Talibã não é reconhecido internacionalmente, o que faz com que países e entidades tenham dificuldades para lidar com seus líderes. Em um momento em que a ONU busca ampliar o diálogo com o grupo, ONGs acusam a organização de fazer concessões ao regime que controla o Afeganistão às custas das mulheres.

Pouco antes do dia marcado para nossa entrevista, a ativista afegã de direitos humanos, Nazifa Jalali, disse que precisaria adiar a conversa. “Tenho que lidar com um caso de apedrejamento”, explicou. Poucos dias depois explicou: se tratava do caso de uma garota de 17 anos que havia sido estuprada pelo irmão, que era um comandante do Talibã. O Talibã naquela província no centro do Afeganistão havia decidido apedrejar a menina e não o irmão.

Jalali então precisava dar conta de mobilizar figuras locais, incluindo anciãos tribais, para tentar negociar com o Talibã uma autorização para que a menina pudesse ser levada para outro lugar para sua proteção.

A ativista integra a rede Human Rights Defender HRD-Plus e documenta violações de direitos humanos no Afeganistão rotineiramente de onde vive, na Noruega. Por conta de seu trabalho, Jalali também participou da sessão de outono do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas em Genebra.

Nesses últimos três anos, desde que o Talibã assumiu o poder, ela tem criticado a comunidade internacional apontando que as organizações e governos têm apenas escrito relatórios, em vez de agir proativamente para responsabilizar o Talibã. Essa postura internacional, ela diz, enfraqueceu as mulheres no Afeganistão.

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Um porta-voz do Talibã fala em uma coletiva de imprensa em Cabul, em 29 de junho de 2024. As autoridades talibãs do Afeganistão se reuniram com enviados internacionais em 30 de junho, no Qatar, para conversações apresentadas pelas Nações Unidas como uma etapa fundamental em um processo de engajamento, mas condenadas por grupos de direitos humanos por deixarem de lado as mulheres afegãs. Afp Or Licensors

De 2021 para cá, o Talibã emitiu mais de 80 decretos restringindo os direitos de mulheres e meninas. Por exemplo, meninas foram proibidas de frequentar a escola secundária e mulheres praticamente não têm permissão para trabalhar; elas também não podem ficar em parques e, mais recentemente, falar em público.

O Talibã não é reconhecido internacionalmente, sobretudo porque nega a meninas e mulheres direitos básicos e educacionais. Isso torna o contato político entre a ONU e o governo de fato mais difícil.

Nenhuma mulher na mesa de negociações

No final de junho, representantes do governo do Talibã participaram pela primeira vez de uma reunião organizada pela ONU em Doha com diplomatas de 25 países e organizações internacionais. Eles esperavam por reconhecimento internacional.

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No entanto, as mulheres foram excluídas desta terceira reunião do chamado Processo de Doha, que visa abordar os desafios no Afeganistão. Os funcionários da ONU disseram que aceitaram as condições do Talibã de uma conferência sem mulheres afegãs para não prejudicar o diálogo.

O Talibã não foi convidado para a primeira reunião convocada pela ONU em maio de 2023. Embora tenham sido convidados para a segunda reunião em fevereiro passado, eles a boicotaram porque representantes da sociedade civil afegã, incluindo mulheres, também participaram.

As reuniões devem lembrar o Talibã de suas obrigações sob a lei internacional. Em dezembro de 2023, o Conselho de Segurança da ONU adotou uma resolução (embora sem o apoio da Rússia e da China) estipulando que o reconhecimento internacional do Talibã dependeria de o regime honrar direitos fundamentais, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), da qual o Afeganistão é parte.

“Não há concessões sem reformas”

Rosemary DiCarlo, a Subsecretária-Geral da ONU para Assuntos Políticos e de Construção da Paz, presidiu a terceira reunião em Doha. Ela disse à mídia depois que, embora os direitos das mulheres não estivessem na agenda oficial, os participantes levantaram a questão várias vezes e enfatizaram a necessidade de um governo inclusivo durante os dois dias de negociações.

As discussões se concentraram no desenvolvimento de um setor econômico privado e no apoio ao Talibã na manutenção de seu sucesso na luta contra as drogas. Desde que o Talibã assumiu o poder, o cultivo de ópio foi reduzido em cerca de 90%.

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Meninos afegãos passam por um mural desfigurado que diz “A paz para mim é o direito de votar”, em uma rua de Cabul, em 16 de outubro de 2024. Afp Or Licensors

No entanto, DiCarlo descartou reconhecer o regime de fato em Cabul até que o Talibã levante as restrições à educação e à participação das mulheres na vida pública.

Ela acrescentou que reconhecer o governo do Talibã não era responsabilidade da ONU, mas decisão dos países individuais. Até agora, nenhum país reconheceu o governo do Talibã, mas 16 países têm uma embaixada no Afeganistão, incluindo Japão, China e Índia.

A terceira rodada de negociações em Doha terminou sem que o Talibã fizesse nenhuma promessa de reforma ou recebesse nenhuma concessão da comunidade internacional. Os países participantes concordaram provisoriamente em criar grupos de trabalho sobre os tópicos de desenvolvimento econômico, combate às drogas e terrorismo.

‘Um preço muito alto’

Richard Bennett, o Relator Especial da ONU sobre o Afeganistão para o Conselho de Direitos Humanos em Genebra, descreveu a exclusão de mulheres como “um preço muito alto a pagar”. Organizações de mulheres afegãs e exiladas, bem como organizações internacionais de direitos humanos, também criticaram a ONU.

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Grupo de pessoas reunidos na frente de uma porta

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“Os direitos das mulheres e meninas no Afeganistão não são negociáveis”, disse a Secretária Geral da Anistia Internacional, Agnès Callamard, em uma declaração antes da conferência.

“Fico triste ao falar sobre a terceira conferência de Doha sabendo que as mulheres foram excluídas”, diz a ativista afegã de direitos humanos Fereshta Abbasi, que trabalha para a Human Rights Watch no Reino Unido.

Ela está se referindo à Resolução 1325 do Conselho de Segurança da ONU, que obriga a ONU a garantir a participação de mulheres na mesa de negociações. Esta resolução do ano 2000 obriga os estados-membros da ONU a proteger os direitos das mulheres e a incluir mulheres em pé de igualdade nas negociações de paz, resolução de conflitos e reconstrução.

Nazifa Jalali afirma que após a terceira conferência em Doha, sem mulheres na mesa de negociação, o povo do Afeganistão perdeu completamente a esperança na comunidade internacional. “A consequência desta reunião é que o Talibã pode continuar a cometer seus crimes sabendo que não sofrerá consequências”, disse ela.

Apartheid de gênero

O relator da ONU Bennett e outros órgãos da ONU descreveram a situação dos direitos humanos de mulheres e meninas no Afeganistão como apartheid de gênero institucionalizado. A perseguição baseada em gênero é atualmente reconhecida como um crime contra a humanidade.

Organizações afegãs e internacionais de direitos humanos estão pedindo que o termo apartheid de gênero seja incluído nas negociações em andamento da Assembleia Geral da ONU sobre uma nova convenção que aborda prevenção e punição de crimes contra a humanidade. Alguns diplomatas ocidentais estão relutantes em usar o termo porque ele lembra a antiga segregação racial na África do Sul e por causa das sanções rigorosas impostas ao regime do apartheid.

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Mulheres afegãs esperam para receber ajuda financeira da Sociedade do Crescente Vermelho Afegão no distrito de Kohsan, província de Herat, em 25 de setembro de 2024. Afp Or Licensors

Ex-embaixadores da ONU

Como o governo do Talibã ainda não é reconhecido internacionalmente, o Afeganistão ainda é representado por seu embaixador pré-Talibã na ONU em Genebra, Nasir Ahmad Andisha. Ele representou seu país este ano na Revisão Periódica Universal (UPR) sobre a situação dos direitos humanos do Afeganistão, durante a qual o Afeganistão recebeu 243 recomendações dos estados da ONU para melhorar sua situação no que toca aos direitos humanos.

O Afeganistão, ou melhor, a delegação afegã do embaixador Andisha, aceitou 215 delas, incluindo o fim de castigos corporais como açoites e o levantamento de restrições à educação e emprego para meninas e mulheres. A Missão da ONU no Afeganistão (UNAMA) é responsável por acompanhar a implementação das recomendações da UPR pelas autoridades do Talibã.

Em outubro, o Conselho de Direitos Humanos da ONU em Genebra estendeu o mandato do relator Bennett por um ano. No entanto, a demanda da ONG por um órgão suplementar para reunir evidências de violações de direitos humanos com o objetivo de levar os perpetradores à justiça não foi incluída na resolução do Conselho.

Enquanto isso, na região central do país, a menina de 17 anos que sofreu o estupro continua presa e sob a ameaça de apedrejamento.

Edição: Imogen Foulkes/fh
(Adaptação: Clarissa Levy)

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