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“Os museus podem permitir a reconciliação”

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Geopolitics/ RTS

Os museus devem devolver obras de arte provenientes da espoliação colonial? Embora essa não seja uma pergunta nova, foi apenas recentemente que alguns países e museus passaram a se preocupar mais com a questão. Este é um convite para que os museus repensem seu papel.

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O debate sobre a repatriação de bens culturais saqueados ou pilhados – geralmente durante as conquistas coloniais do século 19 e início do século 20 – não é novo. O movimento surgiu com as independências dos países africanos na década de 1960 e na esteira das espoliações nazistas que ocorreram durante a Segunda Guerra Mundial. Mas foi apenas recentemente que alguns países e museus começaram a realmente abordar a questão.

“A partir da década de 2010, vimos um grande aumento no interesse da opinião pública pelo tema, especialmente no contexto da luta contra a discriminação e contra o racismo”, disse Jacques Ayer, professor de museologia da Universidade de Neuchâtel e diretor da agência Museolis, no programa GéopolitisLink externo.

Regras rígidas

Enquanto alguns museus relutam em devolver obras reivindicadas por seus países ou comunidades de origem, outros se mostram mais proativos. O Museu de Etnografia de Genebra, por exemplo, tem devolvido vários objetos desde a década de 1990, incluindo uma máscara sagrada e um chocalho cerimonial para a nação Haudenosaunee em 2023.

No entanto, devolver uma obra de arte pode ser uma tarefa difícil, pois os procedimentos legais são muito rigorosos e complexos e podem variar de um país para outro. “Todo museu europeu é obrigado a respeitar o princípio da inalienabilidade. Ele não permite que um objeto seja retirado de coleções públicas europeias para ser destruído, vendido ou devolvido”, ressalta Jacques Ayer. Além disso, há todo o trabalho de investigação envolvido na identificação da procedência dessas obras e das condições – legais ou não – sob as quais elas foram adquiridas.

Alavancagem diplomática

Antigas potências coloniais, como o Reino Unido e a França, estão particularmente envolvidas na questão. Em 2017, o presidente francês Emmanuel Macron encomendou um relatório sobre o patrimônio africanoLink externo. O relatório afirma que quase 90% do patrimônio cultural da África se encontra em museus estrangeiros, com cerca de 70.000 itens no Quai Branly, 69.000 no Museu Britânico, 75.000 no Fórum Humboldt em Berlim e 180.000 no AfricaMuseum na Bélgica.

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Cerca de 90% do patrimônio cultural da África está em museus estrangeiros, principalmente na Europa. Géopolitis/RTS

Embora o relatório defenda a devolução imediata e definitiva das obras que foram adquiridas ilegalmente, o processo às vezes enfrenta a relutância dos governos. Ao mesmo tempo, a devolução também pode acabar servindo aos interesses econômicos e diplomáticos de alguns países. “Em certos países, as obras raramente são devolvidas gratuitamente. Podemos ver que muitas vezes há uma contrapartida em mente”, observa Jacques Ayer. Ele cita o exemplo de um manuscrito coreano devolvido pelo presidente francês François Mitterrand em 1993, no contexto das negociações comerciais com a Coreia do Sul referentes à compra de trens de alta velocidade e da tecnologia TGV.

Ossos humanos

Além de obras de arte e objetos culturais, alguns museus ocidentais também mantêm restos humanos em suas coleções. Em 2002, a África do Sul conseguiu a devolução dos restos mortais de Sarah Baartman, uma jovem nascida por volta de 1789 no país, que era então uma colônia holandesa. Levada para a Europa, Sarah Baartman foi exibida como uma aberração na Inglaterra e depois na França, onde foi apelidada de “Vênus Hotentote”. Após sua morte, seu corpo foi dissecado e exibido no Museu do Homem, com o objetivo de comprovar as teorias que defendem a hierarquização dos seres humanos de acordo com suas características físicas.

O próprio Jacques Ayer lidou com a questão em 2014, quando uma cabeça decapitada, vinda do sul da África e banhada em álcool, apareceu no Museu de História Natural de Genebra, que ele dirigia na época. “A Universidade de Genebra havia emprestado a cabeça ao museu para um tratamento antibacteriano. Foram feitas tentativas de rastrear a origem dessa pessoa, infelizmente sem sucesso”, lembra o professor de museologia. No final, a cabeça foi enterrada no cemitério de Saint-Georges, em Genebra, no túmulo dos desconhecidos, para restaurar sua dignidade.

Museus de história natural

O debate sobre a restituição não se limita aos museus etnográficos. “Os museus de história natural abraçaram essa questão nos últimos anos, e com razão, porque perceberam que a própria base de suas coleções muitas vezes foi estabelecida em um contexto colonial”, observa Jacques Ayer. Esse é o caso, por exemplo, do esqueleto original do Tiranossauro Rex que está na entrada do Museu de História Natural de Berlim, que foi escavado no contexto do domínio colonial alemão na Tanzânia durante a década de 1910.

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“Em termos concretos, talvez não seja uma questão de devolver uma zebra ou uma coleção de borboletas”, explica o museólogo, “mas sim de entender sua origem e repensar o discurso da exposição”. Alguns museus, acrescenta ele, apresentavam a “diversidade humana” exibindo crânios humanos – que eram vistos na época como diferentes “raças” – até os anos 2000.

Esse debate sobre a restituição de obras está apenas começando. Ele enfraquece a noção de “museu universal”, nascida no século 18, segundo a qual os grandes museus, como o Louvre e o Museu Britânico, têm o papel reunir o patrimônio cultural do mundo em um único lugar. “O problema é que essa abordagem ainda é muito eurocêntrica e, às vezes, um pouco paternalista. É importante retomar essa questão do universalismo dos museus e imaginá-la de uma forma mais ampla, inclusive geograficamente, contemplando, por exemplo, a existência de grandes museus em países africanos e asiáticos”, comenta Ayer.

“Os museus têm uma oportunidade maravilhosa de repensar sua postura e sua identidade. Eles talvez se tornem lugares não apenas para conservação, estudo e exposição para o público em geral, mas também para encontros, diálogo e até mesmo reparação e reconciliação”, conclui o museólogo.

Este artigo foi produzido em colaboração com o programa Géopolitis.

Adaptação: Clarice Dominguez

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