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Primeira conferência europeia sobre bens comuns acontece em Genebra

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Os primeiros canais de irrigação “bisses” no cantão do Valais, no sul da Suíça, foram construídos no século XII em resposta à seca e a um boom demográfico. Eles levam água para as pastagens e são administrados por “consortages”, uma espécie de cooperativa cujos membros são usuários de um recurso comum. Keystone-SDA

Dos canais de irrigação do cantão de Valais aos rebanhos de renas no Ártico, os bens comuns – recursos compartilhados e administrados por comunidades locais – podem desempenhar um papel fundamental na preservação da biodiversidade e no alcance de metas de desenvolvimento sustentável. A primeira conferência europeia sobre o tema ocorreu em Genebra em dezembro.

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Da Suíça à Finlândia, da Grã-Bretanha à Espanha e Montenegro, o continente europeu tem muitos recursos naturais gerenciados coletivamente.

“Acredita-se que 35% das florestas na Suíça, 60% das pastagens alpinas na Áustria e quase 90% daquelas na Eslovênia são administradas por comunidades locais”, aponta Gretchen Walters, professora associada do Instituto de Geografia e Sustentabilidade da Universidade de Lausanne. Ela esteve envolvida na organização da primeira conferência europeia sobre bens comuns, realizada em Genebra em dezembro.

O que são bens comuns?

Bens comuns são recursos compartilhados e autogeridos por uma comunidade, garantindo seu uso sustentável.

“É uma ideia muito antiga, ainda viva hoje”, explica Walters. “Três elementos reunidos resumem o conceito de bem comum: um recurso, um grupo comunitário e uma estrutura de regras”. Os recursos podem ser naturais ou culturais, como pastagens, florestas ou cursos d’água. A autogestão é o que os diferencia da jurisdição governamental usual.

Embora o conceito de bem comum exista há séculos, ele recebeu uma estrutura teórica moderna nos estudos da cientista política Elinor Ostrom, na década de 1990. Sua pesquisa se concentrou principalmente na gestão comunitária de pastagens em Törbel, na região do Alto Valais, na Suíça. Ela mostrou que as comunidades locais podem gerenciar recursos de forma eficaz sem privatização ou controle governamental. A pesquisadora recebeu o Prêmio Nobel de economia por seu trabalho em 2009.

Dos canais de irrigação no Valais à pesca no gelo

Os ‘bisses’ do cantão de Valais são um recurso comum. Os canais de irrigação, que começaram a ser construídos no século XII em resposta à seca e ao boom demográfico, trazem água para pastagens e são administrados por uma espécie de cooperativa cujos membros são usuários de um recurso comum.

Na França, na costa do Mediterrâneo, conselhos de pesca chamados “prud’homies de pêche” administram recursos marinhos estabelecendo regras locais para pesca sustentável. Eles fazem isso desde a Idade Média.

“Da pesca no gelo à criação de renas no extremo Norte, o uso coletivo da terra na Europa é variado e generalizado”, diz Tero Mustonen, geógrafo finlandês e pesquisador colaborador do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, que estava na conferência.

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Um pastor de renas em traje tradicional na estrada de Alta para Hammerfest, Noruega, em 18 de agosto de 2023. Keystone-SDA

Coorganizado pela Link externoAssociação Internacional para o Estudo dos Bens ComunsLink externo, o Link externoConsórcio ICCALink externo, a Link externoUnião Internacional para a Conservação da NaturezaLink externo e as universidades de Lausanne e Berna, o eventoLink externo reuniu especialistas, pesquisadores e povos indígenas, bem como figuras políticas locais e profissionais de vários países europeus.

“Queremos criar uma rede europeia de todos esses atores para trocar e aprender com as variadas práticas e desafios encontrados”, explica Walters. “Outro objetivo é tornar os tomadores de decisão mais conscientes desses sistemas, que são frequentemente subestimados e mal compreendidos.”

Uma mão amiga para a biodiversidade

Com base na gestão sustentável dos recursos, os bens comuns podem ser uma parte fundamental da resposta para os problemas atuais, como a perda de biodiversidade e o aquecimento global, acredita Walters. “Por toda a Europa, comunidades locais e povos nativos estão gerenciando uma variedade de recursos de forma sustentável, que respeita a biodiversidade”, ela diz. “Esses bens comuns podem desempenhar um papel crucial para alcançar os objetivos do desenvolvimento sustentável.”

Na Finlândia, Mustonen organizou a limpeza de mais de 100 antigos locais de mineração e operações de extração de madeira nas charnecas (terrenos áridos com vegetações rasteiras), trabalhando com comunidades locais. “Essas charnecas são preciosos sumidouros de carbono e preservadores da biodiversidade, como pássaros e insetos. Elas agem como filtros que controlam a poluição dos cursos d’água”, diz ele, que além de ser pescador, também é uma das lideranças da vila finlandesa de Selkie.

Em 2023 e no final de 2024, as conquistas da organização de Mustonen, chamada Snowchange – uma cooperativa independente de pessoas envolvidas em pastoreio e pesca, empreendedores e pesquisadores – renderam o Link externoprêmio ambiental GoldmanLink externo em e o Link externoClimate BreakthroughLink externo as suas iniciativas.

Não reconhecidos como entidades legais

No entanto, os bens comuns geralmente não são reconhecidos legalmente. “Esses esforços de conservação são frequentemente ignorados pelos governos. Eles tendem a ser invisíveis, especialmente na Europa”, de acordo com Walters.

Os bens comuns também estão sob pressão. “Vemos governos querendo assumir essas terras que são administradas coletivamente, particularmente na França”, ela diz. Mustonen concorda. Seu foco está no Círculo Polar Ártico, onde ele aponta que “vários territórios estão sob pressão, especialmente da mineração, de projetos de energia renovável e turismo”.

Essa tendência é fortalecida pela percepção de que tais terras — frequentemente usadas sazonalmente, como no caso de pastagens altas — são áreas selvagens desocupadas e intocadas. “O que muitas pessoas chamariam de ‘natureza selvagem’ ou ‘amplos espaços vazios’ estão, na verdade, sujeitos ao uso humano, intimamente ligados a economias sustentáveis de caça, coleta e pastoreio de renas que existem há séculos”, Mustonen aponta.

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Na Espanha, o movimento sazonal de milhares de animais ao longo de caminhos pastoris tradicionais tem status especial da Unesco. Copyright 2023 The Associated Press. All Rights Reserved.

Em Montenegro, por exemplo, o governo está propondo abrir um campo de treinamento militar patrocinado pela OTAN em uma das maiores áreas de pasto da Europa. Desde 2019, os pastores têm se mobilizado para preservar esse ecossistema moldado por práticas pastoris tradicionais, agricultura e coleta de plantas e frutas.

“Essas comunidades geralmente não têm as ferramentas para fazer valer seus direitos”, diz Mustonen. O pescador reivindica maior reconhecimento legal para os bens comuns e quer vê-los mapeados. No final da conferência, diz, um manifesto deveria ser publicado com esta mensagem.

Para Walters, valorizar mais esses recursos facilitaria a realização das metas da ONU em relação ao desenvolvimento sustentável.Até 2030, a ONU pretende proteger 30% das áreas terrestres e marinhas da Terra.

“Além da criação de parques e reservas nacionais, que frequentemente excluem comunidades locais, é hora de reconhecer e aproveitar ao máximo os esforços de conservação existentes, como acontece em áreas autogeridas”, ela diz. “No Canadá, por exemplo, alguns territórios indígenas são reconhecidos como OECMs [outras medidas de conservação efetivas baseadas em áreas] . A Europa é lenta para se mover nessas questões.” 

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Pastores conduzem centenas de ovelhas ao longo de uma rua no centro de Madri, Espanha, em 2016. Keystone-SDA

Ela ressalta, no entanto, que a Suíça é um dos poucos países que legalmente reconhece o papel dos bens comuns, com o sistema de “ burrghers” ou associações tradicionais de cidadãos.

Para Mustonen, a Europa está agora no momento certo para enviar uma mensagem ao cenário internacional ao reconhecer os bens comuns vivos em seu território.

“As crises de meio ambiente e biodiversidade pelas quais estamos passando agora são uma crise do nosso relacionamento com a natureza”, ele diz. “A abordagem usada pelos comuns oferece soluções, pois nos lembra que não somos inimigos da natureza, mas coexistimos com ela.”

Esses modelos de gestão comunitária de recursos muitas vezes duram séculos e atravessam muitas convulsões políticas. No entanto, novos bens comuns ainda estão aparecendo, notavelmente em centros urbanos, onde iniciativas como hortas comunitárias, reutilização de prédios abandonados ou limpezas de antigas zonas industriais se multiplicam. Em 2014, Bolonha foi pioneira ao ser a primeira cidade italiana a ter um estatuto sobre “bens comuns urbanos”. Desde então, mais de 300 municípiosLink externo do país aderiram ao movimento.

Edição: Samuel Jaberg/fh
(Adaptação: Clarissa Levy)

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