A revolta das túnicas vermelhas
Apesar da sangrenta repressão pela junta militar vinte anos atrás, Mianmar está novamente em ebulição. Lideradas pelos monges budistas, milhares de pessoas protestam nas ruas por uma vida mais digna.
O detonador foi o repentino aumento dos transportes e de alguns produtos de primeira necessidade tornando ainda mais difícil as precárias condições de vida da população. Jornalista de swissinfo conta suas impressões, ao regressar de Mianmar, ex-Birmânia.
O táxi pára na beira da estrada que leva a Mandalay, antiga capital ao norte de Yangon, ignorando o ambiente pesado e o risco de manter os faróis acesos em plena noite. Uma noite ainda mais escura do que de costume. Em Mianmar a corrente elétrica justifica seu nome: alternada. Ontem tinha, hoje não, amanhã … ninguém sabe.
“Só dois minutos para abastecer”, diz o motorista antes de partir no escuro com um garrafão de plástico na mão. Inútil tentar vislumbrar algum posto de gasolina: quem não é do exército ou do governo precisa recorrer ao mercado paralelo.
“Antes o galão custava 1.500 kyats (cerca de 1,5 francos suíços). Agora está entre 3.500 e 5.000, depende do dia e do lugar”, afirma o taxista, ao voltar pelo outro lado da estrada.
O luxo de trabalhar
Os primeiros a reagir ao aumento do preço dos combustíveis (o da gasolina quadriplicou e o do gás quintuplicou) foram os habitantes de alguns vilarejos. Se aviso prévio, a passagem dos ônibus que transportam os trabalhadoes para as fábricas ou para o campo passou de 400 para 1.100 kyats. Somente em transporte, os custos chegaram a 2.000 kyats por dia. Ou seja, trabalhar tornou-se um luxo inacessível para muita gente.
“As pessoas se reuniam nas ruas para protestar mas houve intervenção da polícia”, conta um condutor de riquixá à sombra de um tamarineiro, imitando o gesto de uma porretada.
Com cerca de sessenta anos e com uma barriga saliente – “cerveja, cerveja”, confessa – e as pernas fortalecidas por 40 anos de pedaladas, U Than pretende visivelmente aproveitar de um dos poucos viajantes desta época do ano para praticar seu inglês e desabafar suas frustrações.
“Ao governo não interessa o bem-estar do povo. Não me deixam abrir a boca …” Cala-se ao avistar o garçom de um restaurante próximo. Os informantes do governo estão por toda parte. Falar de política é arriscado e U Than precisa alimentar as bocas que o aguardam em casa. Continuamos a conversar até chegarmos ao pagode de Mandalay.
20 vasilhas de arroz a menos
A decisão da junta militar foi tomada no pior momento. A inflação é galopante (40 a 60% ao ano), 90% da população vive com menos de 30 francos suíços por mês e a segurança alimentar em diversas regiões rurais está seriamente comprometida. E o governo não move uma palha, segundo um relatório das Nações Unidas.
“Primeiro se podia comprar 35 a 40 medidas de arroz”, lembra U Than, quando voltou a falar da vida cotidiana. “Pelos preços atuais, compromamos no máximo 20”. É preciso viver sem arroz, triste destino para um país que ainda no século passado é o maior produtor mundial.
O trem que deixa Mondalay, entre sacolejos e ruídos metálicos, revela o que a televisão não mostra. No primeiro plano a pobreza de crianças que vivem na imundície; ao fundo os telhados das casas inteiramente inundadas. Cercas de bambú resistiram às águas que devastaram quase tudo, como ocorreu na Índia e em Bangladesh.
Nirvana negado aos militares
“Vem da Pakkoku?», me pergunta ancioso a gerente de uma pensão. “Soube que alguns monges se manifestaram publicamente. A polícia entrou em ação e parece que um foi morto”.
A crise dos preços não tardou a se manifestar na essência da cultura birmana: a religião. Até para os monges, deslocar-se em suas rezas públicas de um pagode a outro tornou-se mais caro.
“Se as pessoas ganham pouco – observa uma turista espanhola – as doações aos monastérios são menos generosas”. Isso perturba a paz interior de meio milhão de pessoas em Mianmar que decidiram passar a vida meditando e que contam exclusivamente com a generosidade dos fiéis.
Os monges saíram dos templos interrompendo a rotida religiosa para desafiar os governantes: vestidos com suas túnicas vermelhas tradicionais, desfilam comportadamente pelas ruas a recitar sermões budistas ao invés de lemas políticos.
“O recipiente que os monges carregam todas as manhãs para receber arroz está com o fundo para cima, ao contrário”, nota um carroceiro. Para os membros da junta militar, que não podem mais ter o mérito da dar donativos aos monges, o caminho que leva ao nirvana está obstruído.
Não violência
Yangon. Chove torrencialmente e muitos bairros estão inundados. A casa de um velho amigo está seca apesar das goteiras do telhado.
“Nem mesmo o dilúvio contêm os protestos. Agora as pessoas se uniram aos monges”, constata. Ele se lembra da resposta que me deu alguns anos atrás, quando de minha primeira viagem a Nianmar, quando havia sido maltratado: “Mas por que não reagistes?”.
Sorri e balançou a cabeça: “Porque Buda ensina a não violência”.
“O que dizer mais”, acrescenta: “Virá um dia em que a situação mudará”.
swissinfo, Luigi Jorio
Ex colônia britânica, a Birmânia (oficilalmente União de Mianmar desde 1989)
tornou-se independente em 1948. Um golpe de estado em 1962 interrompeu a jovem democracia.
Os partidos políticos foram proibidos e a repressão isolou o país do resto do mundo.
Em agosto de 1988, a junta militar sufoca pela força uma série de protestos estudandís. Houve milhares de mortos e feridos.
Por ocasião das eleições livres de 1990, as primeiras em 30 anos, a Liga Nacional pela Democracia (NLD, liderada pela Prêmio Nobel da Paz, Aung San Suu Kyi) obteve 80% dos votos. A junta militar recusa-se a ceder o poder e decreta a prisão domiciliar de Aung Suu Kyi e de outros líderes da NLD.
Antes da independência, Mianmar era das colônias britânicas mais ricas e hoje está entre os países mais pobres do mundo, submetido a um embargo internacional.
A situação se agravou depois do anúncio de 15 de agosto do aumento dos preços dos combustíveis. Com o tempo, às manifestações pacíficas dos monges budistas juntaram-se milhares de pessoas em várias cidades do país.
A comunidade internacional lançou um apelo à junta militar para que não intervenha pela força.
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