Barracões abandonados expõem a realidade dos trabalhadores sazonais
Durante décadas, a Suíça recebeu trabalhadores sazonais da Itália e de outros países europeus, muitos dos quais viviam em condições precárias. Em Bienne, barracões onde eles moravam ainda existem como testemunhos desse capítulo sombrio da história do país.
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Elas lembram um tempo entre 1950 a 1960. Hoje, essas construções estão vazias, desprovidas dos berços, guarda-roupas com espelhos pendurados nas portas e das malas dos viajantes. Desapareceram também os fogões a gás, os armários numerados onde se guardavam panelas, pratos e comida; os ganchos para pendurar os uniformes de trabalho; um lavatório de metal, utilizado para lavar-se, limpar a louça, escorrer o macarrão; e um banheiro com vaso sanitário no estilo turco. Restou apenas um fogão a lenha, o último vestígio de um capítulo triste da história, que pouco aquecia o ambiente e não conseguia afugentar a saudade de casa.
Capítulo sombrio
“Cerca de cem trabalhadores sazonais viveram nestes barracões: italianos, espanhóis, portugueses, turcos, iugoslavos e gregos”, relata Florian Eitel, historiador que nos conduz a esses alojamentos em um bairro de Bienne, entre os trilhos da ferrovia e o lago. Na década de 1990, o governo cantonal de Berna adquiriu a área para construir um desvio de autoestrada. Felizmente, o projeto nunca saiu do papel, e os edifícios sobreviveram intactos até hoje.
Esquecidos e protegidos atrás de uma cerca de metal, a poucos passos da estação ferroviária, esses barracões são as últimas testemunhas da era dos trabalhadores sazonais. Em outros locais, como nos canteiros de obras de represas, túneis e subúrbios, eles desapareceram e foram apagados da história.
“Estes alojamentos pertenciam à empresa de construção Bührer & Co”, continua Eitel. “De um lado, temos a luxuosa mansão do proprietário; do outro, o alojamento dos trabalhadores. É um contraste gritante entre dois mundos.”
Geralmente, os barracões eram construídos na periferia, longe de olhares curiosos, com o intuito de não chamar a atenção. Os trabalhadores levantavam-se ainda de madrugada, caminhavam até o local da construção, trabalhavam o dia inteiro e voltavam à noite, confinados naquele espaço cercado, onde o acesso de pessoas não autorizadas era proibido.
“Praticava-se uma forma de exclusão social, controlada pelo proprietário que morava na mesma área”, explica Eitel, curador do Novo Museu de BienneLink externo. Os trabalhadores sazonais ficavam à mercê do empregador, que podia decidir seu futuro na Suíça, negando-lhes um contrato para a próxima temporada.
– É obrigatório manter respeito, calma e ordem. Moradores que perturbarem seus vizinhos com barulho ou falta de limpeza perderão o direito de permanecer no alojamento.
– O uso de rádios é permitido, desde que o volume seja baixo e todos os colegas de quarto concordem.
– Os dormitórios devem ser deixados arrumados todas as manhãs para inspeção. Roupas e pertences pessoais devem ser guardados nos armários; roupas sujas não devem ser deixadas espalhadas.
– O lixo deve ser descartado nas lixeiras apropriadas.
– Não é permitido armazenar restos de comida nos dormitórios. Resíduos de cozinha devem ser descartados em baldes com tampa.
– Sapatos e roupas devem ser limpos ao ar livre. É proibido limpá-los dentro dos quartos.
– Não é permitido sentar-se nas camas com roupas ou sapatos de trabalho. Se a roupa de cama estiver excessivamente suja, os custos de limpeza serão cobrados do responsável.
– Recomenda-se limpeza e ordem ao usar os banheiros. Enxágue com água imediatamente após o uso e não jogue objetos sólidos nos ralos. Utilize cinzeiros para resíduos de cigarro.
– É proibido cobrir os fogões com roupas. Objetos deixados sobre eles serão recolhidos pelo lojista.
– Visitas de pessoas que não trabalham no local são estritamente proibidas.
– Em caso de violação dessas regras, uma multa de 20 ou 50 francos será aplicada aos moradores do quarto ou da cozinha.
(Regras retiradas do filme “Il rovescio della medaglia”, de Alvaro Bizzarri, 1974)
Frio e nostalgia
No andar térreo dos barracões, ficavam os armazéns, a garagem e a carpintaria da empresa de construção. No primeiro andar, encontravam-se três dormitórios para 10 a 15 pessoas cada, uma sala de estar e uma cozinha. Sob o telhado, havia um cômodo adicional sem janelas. Feitos de madeira, com correntes de ar e sem isolamento, os barracões se transformavam em uma geladeira no inverno e em um forno no verão.
“Quando havia 20 a 30 centímetros de neve lá fora e o termômetro estava bem abaixo de zero, os trabalhadores acordavam com muito frio e vestiam suas roupas geladas”, conta Mariano Franzin, sindicalista que, nas décadas de 1980 e 1990, ouvia as reclamações dos trabalhadores sazonais.
“Eles protestavam contra as condições em que viviam: o patrão que lhes negava o 13º salário e os descontos injustos em seus salários. E falavam sobre a saudade de casa, a falta de calor humano, seus filhos e esposas distantes. Mas nunca faziam isso na frente do chefe, nem queriam que o sindicato interviesse, com medo de não conseguir o contrato para a próxima temporada.”
O visto do trabalhador sazonal foi introduzido na Suíça em 1934, permitindo que as empresas contratassem trabalhadores estrangeiros por períodos limitados. Durante sua permanência, esses trabalhadores não podiam mudar de emprego, domicílio ou trazer suas famílias.
Esse visto fazia parte de uma política de imigração destinada a garantir flexibilidade econômica, ao mesmo tempo mantendo o controle sobre a imigração. Após o fim da II Guerra Mundial e o boom econômico subsequente, o número de trabalhadores sazonais cresceu significativamente.
Em 1949, o tempo máximo de permanência foi ampliado para nove meses. Inicialmente, italianos começaram a chegar em grande número, seguidos, nas décadas seguintes, por espanhóis, pessoas da ex-Iugoslávia, portugueses e turcos.
Durante a crise econômica dos anos 1970, cerca de 200 mil migrantes foram forçados a retornar aos seus países de origem, demonstrando que o visto sazonal cumpria parcialmente seu objetivo: garantir flexibilidade à economia suíça, inclusive “exportando desemprego”.
O visto foi abolido em 2002, com a entrada em vigor do Acordo de Livre circulação de pessoas com a União Europeia. Entre 1945 e 2002, Berna emitiu mais de seis milhões de vistos sazonais.
As imagens do documentário de Alvaro Bizzarri, “O Lado Ruim da MedalhaLink externo” (“Il rovescio della medaglia”), captam de forma poderosa esses momentos de suor e lágrimas. No início dos anos 1970, Bizzarri entrou clandestinamente na área da empresa Bührer e filmou rostos de trabalhadores sazonais que olhavam com medo para a câmera.
Poucos queriam falar enquanto os rolos de sua Super 8 giravam. Os que falavam estavam indignados com o chefe e os sindicatos. O documentário de 45 minutos é uma denúncia crua das condições vividas.
Alvaro Bizzarri chegou à Suíça em 1955, aos 20 anos. Trabalhava como soldador em uma empresa em Bienne e era militante comunista — um risco na época, já que a filiação ao PCI na Suíça podia resultar em expulsão. Apaixonou-se pelo cinema e fundou um cineclube nas Colônias Livres Italianas.
Depois de deixar a fábrica, foi contratado como balconista em uma loja de câmeras, onde aprendeu os fundamentos da produção de filmes com uma câmera emprestada por seu empregador.
Nos anos 1970, indignado com o racismo e a xenofobia crescentes, Bizzarri filmou dois documentários sobre a miséria dos trabalhadores sazonais e as consequências sociais de seu estatuto: “Lo stagionale” (1971) e “Il rovescio della medagliaLink externo” (1974).
Dois banheiros para 100 trabalhadores
Hoje é difícil imaginar a atmosfera que prevalecia nos barracões naquela época. Franzin, presidente do ItalUilLink externo, que iniciou sua luta como sindicalista na Suíça em 1983, descreve o cenário: “Eu costumava vir aqui às sete da noite, quando os homens voltavam do canteiro de obras. O ar era irrespirável. O cheiro de suor, com o qual as roupas penduradas nas paredes estavam encharcadas, misturava-se aos aromas de comida de diversos países. A cozinha estava sempre em grande agitação: uns cozinhavam, outros comiam e alguns esperavam a liberação do fogão a gás. Cada um preparava seu próprio jantar: macarrão com alho e pimenta, latas de atum ou sardinhas, ou algumas coxas de frango.”
Graças à intervenção sindical, no início dos anos 1990, os alojamentos receberam um chuveiro com água quente. Antes disso, os trabalhadores se lavavam no canteiro de obras, utilizando uma mangueira de água.
Os banheiros, no entanto, permaneceram os mesmos: dois sanitários estilo turco e um mictório para cem pessoas. “Uma noite chuvosa, ao subir as escadas, encontrei um trabalhador saindo”, recorda Franzin. “Perguntei para onde ele ia, e ele respondeu: ‘Vou ao banheiro, pois o outro está ocupado’.” Apesar das condições desumanas, o patrão descontava de 50 a 60 francos do pagamento mensal dos trabalhadores sazonais. Em tempos de alta demanda de mão de obra, os berços eram convertidos em beliches.
Futuro Incerto
Florian Eitel não sabe exatamente por quanto tempo os trabalhadores sazonais foram alojados nos barracões da empresa Bührer. “Dentro deles, encontramos vestígios de jornais, recibos e um calendário religioso do início da década de 1890, todos em espanhol”, diz o historiador. “O visto de trabalhador sazonal foi abolido em 2002, com o acordo de livre circulação de pessoas entre a Suíça e a União Europeia. A decisão de extinguir esse status foi imposta pela UE”. O último grande canteiro de obras para trabalhadores sazonais em Bienne foi a “Arteplage”, uma das plataformas construídas para a Expo.02, que permanece na memória coletiva dos suíços.
Esquecidos por décadas, os barracões voltaram à atenção do público no verão passado, quando foram ocupados por três semanas. Desde a primavera deste ano, o local voltou a ser habitado por um grupo de jovens, autorizado a usar os barracões, mas não a mansão, pelos próximos 15 anos. Após esse período, está prevista a construção de um novo prédio para a escola de ensino médio Strandboden.
Ao visitar a área, Florian Eitel olha ao redor com preocupação, temendo que esse último testemunho da era dos trabalhadores sazonais seja apagado. “Este lugar tem um significado histórico e cultural inestimável. Em outros locais, esse capítulo foi apagado, pois os trabalhadores sazonais não deixaram vestígios, embora sua contribuição para o desenvolvimento econômico da Suíça tenha sido enorme. Para manter viva a memória, a associação TesoroLink externo, que luta pela reconstituição do sofrimento das famílias dos trabalhadores migrantes, planeja oferecer visitas guiadas e organizar exposições e mostras no quartel de Bienne.”
Adaptação: Alexander Thoele
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