Há mil anos recebendo peregrinos em direção a Roma
Estresse no trabalho, preocupações com o futuro e bombardeio de informações: em um mundo cada vez mais frenético, é importante poder pisar no freio.
swissinfo.ch participa de uma peregrinação através da Via Francigena, trilha religiosa milenária que atravessa o hospício do Grande São Bernardo, nas altas montanhas do cantão do Valais.
O mundo inteiro conhece o Caminho de Santiago de Compostela. Muitos sonharam em percorrê-lo ou já o fizeram, como o escritor brasileiro Paulo Coelho em 1986. Hoje são mais de cem mil peregrinos a chegar anualmente aos restos mortais do apóstolo São Tiago nessa cidade espanhola, depois caminhar 700 quilômetros a partir do sul da França ou de ter feito apenas uma etapa.
Quem quer fugir das massas e ter uma verdadeira caminhada espiritual precisa procurar uma alternativa. Ao lado de Jerusalém, só existia na Idade Média um destino final para peregrinos com a mesma importância de Santiago de Compostela: Roma. E a trilha mais conhecida que levava a ela era a Via Francigena (leia a história na coluna da direita).
O início é Cantuária, cidade no sudeste da Inglaterra. Depois de atravessar a França, o peregrino chega à Suíça. No país dos Alpes existe um local que, pela importância e beleza, também é um ponto de partida tradicional para os que desejam percorrer apenas uma parte do trecho até a tumba do apóstolo São Pedro, em Roma: um hospício, o local de residência dos padres da congregação do Grande São Bernardo.
Nesse desfiladeiro a 2.469 metros acima do nível do mar, no cantão do Valais (sudoeste da Suíça), importante passagem histórica entre o sul e o norte da Europa, o santo São Bernardo criou em 1050 um abrigo para viajantes e peregrinos. Lá começa minha própria peregrinação.
Uma experiência
A Via Francigena existe há dois mil anos. Depois de ficar muito tempo esquecida, ela voltou a se tornar popular. Frente ao ritmo frenético da vida atual, muitas pessoas querem “lavar” sua alma através de marchas positivas ao seu espírito e à sua saúde.
Porém, não é necessário caminhar os 80 dias regulares entre Cantuária e Roma. Uma alternativa mais curta é oferecida pelos padres no hospício do Grande São Bernardo através de peregrinações de dois dias. Ao descobrir na internet essa oferta, fiz a inscrição apesar da minha confissão luterana. Ao telefone, uma voz simpática me tranquilizou: – “Aceitamos pessoas de todas as religiões. A única condição é participar das rezas e dos momentos de meditação no passeio.”
O ponto de encontro era a estação de trem de Orsières, um vilarejo nas montanhas do Valais, a 887 metros. Era sábado, oito e meia da manhã, e aproximadamente 80 pessoas já aguardavam os padres que seriam os guias do passeio. Quase todos os participantes eram suíços, o que significava que estariam perfeitamente equipados para caminhadas nas altas montanhas: botas alpinas, calças funcionais de secagem rápida, bengalas de alumínio, mochilas anatômicas e casacos gore-tex com várias camadas.
Os padres chegaram e, para meu espanto, não estavam de batinas, mas sim vestidos como verdadeiros guias de montanha. Afinal, a maioria deles passa o ano inteiro no hospício do Grande São Bernardo, o que significa estar muitos meses cercados de neve: de 15 de outubro ao início de junho, as estradas que levam ao passo estão bloqueadas. Os visitantes que chegam com esquis de marcha precisam tomar cuidado com as frequentes avalanches.
Antiga tradição
“Já são trinta anos que fazemos essa peregrinação entre o vilarejo de Ferret e o hospício do Grande São Bernardo”, explicou Jean-Marie Lovey, preboste (superior) da congregação. Apesar do caráter esportivo, o contexto do passeio é mais pietista. “Cada uma das nossas peregrinações têm um tema bíblico. Nela caminhamos em pequenos grupos e, segundo o ritmo, paramos para orar, refletir ou levantar questões relacionadas às nossas vidas.”
O ambiente inspira. A trilha é pouco mais do que uma faixa de terra batida que atravessa algumas fazendas dispersas, onde as famosas vacas lutadoras do Valais costumam pastar durante o verão. Quando se passar pela última delas, então os peregrinos chegam na área de altas montanhas. A trilha torna-se mais estreita e só aponta para uma direção: o alto.
De alguns pontos é possível ter vertigens. Lá no fundo pode ser visto o vale. Nesses momentos, a temperatura muda com grande rapidez. O sol desaparece levando o calor e, repentinamente, surge uma névoa branca que esconde o caminho. Para se orientar, apenas a trilha ladeada pela rala vegetação alpina e que, nessa época do ano, é repleta de pequenas flores coloridas. Quase todos estão em silêncio, não apenas para meditar, mas também pelo fato de a caminhada nas alturas obrigar o pulmão a trabalhar muito mais.
Então um dos guias decidiu fazer uma parada. “É grande a felicidade de dar. É muito maior do que a felicidade de receber”, cantava um dos participantes o refrão para ritmar a marcha. Minutos depois, a coluna retomou a caminhada, chegando a um impressionante lago alpino, com águas muito escuras. Lá todos sentaram e começaram a compartilhar os lanches guardados nas mochilas – como na partilha bíblica dos pães. As idades variavam entre 10 e 70 anos. As profissões eram também as mais diversas. O que existia em comum entre elas era a vontade de estar juntos e compartilhar os mesmos valores cristãos.
No hospício
Cinco horas depois do primeiro passo, o grupo chegou ao hospício do Grande São Bernardo, o lugar onde eram criados até bem pouco tempo os míticos cachorros que, ao contrário da lenda, nunca carregaram barricas de uísque para salvar os viajantes perdidos na neve. Hoje a responsabilidade de criá-los foi transferida a uma fundação privada. Ela exibe alguns são-bernardos para os turistas no local.
Porém, uma tradição sempre continou a mesma nesses últimos mil anos. “Nossa congregação foi criada na época pela necessidade de construir um refúgio no local de passagem dos peregrinos, uma passagem que muitas vezes era dificílima”, lembra Jean-Marie Lovey, acrescentando também que, mil anos depois, o hospício continua recebendo qualquer pessoa, desde que chegue a pé.
O corpo, principalmente os pés, estão doíam, mas a visão dessa antiga construção, reformada muitas vezes no passar dos séculos, tirava a minha respiração. Imaginava como ela devia ser convidativa para os peregrinos que, em pleno inverno e sob intempéries, descobriam a luz quente atravessando uma das suas centenas de janelas. Os padres convidaram então os participantes da caminhada a fazerem uma longa oração. Ela preparou todos a uma tranquila noite de sono em um dos grandes dormitórios do hospício, com beliches e cobertores de lã. O jantar era bem cristão: sopa de legumes. Impossível ser mais aconchegante!
O dia seguinte começava no ritmo de mosteiro. Depois da oração coletiva – no qual algumas pessoas lutavam contra o bocejo – todos se reuniram no refeitório para o café da manhã com chá, café, leite tirado das vacas da região, pão e geleia de morango. A missa ocorre todos os dias, mas no domingo ela foi especial por ter sido transmitida a toda a Suíça através das ondas da Rádio Suíça Francófona. Nada mais simbólico do que passar a palavra divina do alto da montanha, no passo do Grande São Bernardo.
Depois, todos se despediram com abraços e beijos, alguns até trocando telefones para posteriores encontros ou passeios. Viver durante dois dias como um verdadeiro peregrino através da Via Francegina era, para muitos, uma experiência tocante.
Marie-Christine, uma suíça de 55 anos, faz o mesmo percurso há 32 anos com seu marido. “Trata-se de um exercício espiritual e físico que espelha bastante a nossa própria vida de casal, com suas dificuldades e desafios”. Ao lado, seu marido, Pierre-Alain, balançou a cabeça e completou. “Na vida estamos sempre caminhando em alguma direção e nisso ganhamos sempre experiência com as pessoas que cruzamos no caminho, como você”, afirma, dando-me um simpático adeus.
Alexander Thoele, swissinfo.ch
A Via Francigena foi uma importante estrada medieval e 1.700 km rota de peregrinação à Roma
Ela iniciava em Canterbury (Inglaterra) e levava o peregrino até o túmulo de São Pedro no Vaticano.
Ela atravessa a França (de onde surge o seu nome de Francigena ou caminho dos Francos), a Suíça e entrava na Itália através do Passo do Grande São Bernardo.
A Via Francigena foi a mais importante rota de peregrinação à Roma durante a Idade Média. O primeiro relato histórico foi escrito pelo arcebispo de Canterbury, Sigerico o Sério, que em 990 d.C efetuou a peregrinação à Roma para receber o título das mãos do Papa João XV. No relato, ele descreve as 79 etapas da viagem.
Posteriormente a Via Francigena caiu no esquecimento. Atualmente voltou a ser um roteiro atraente para peregrinos e viajantes. No total, o percurso é de aproximadamente 1.600 quilômetros. Ao percorrer 20 quilômetros por dia à pé, o peregrino necessita 80 dias para ir de Canterbury até Roma.
O Grande São Bernardo ou Passo de São Bernardo é um passo de montanha dos Alpes valaisanos, situado em Bourg-Saint-Pierre, uma comuna da Suíça do Cantão de Valais, Distrito de Entremont.
O passo fica localizado a 2 469 metros de altitude perto da fronteira com a Itália.
O São Bernardo constitui uma passagem entre o Monte Mort e o Pico de Drône, ambos situados sobre a fronteira Suíça-Itália, ligando o vale de Étroubles, ao sul, com o vale Entremont situado na parte francófona do Cantão de Valais, ao norte.
Existem evidências da utilização desta passagem desde a idade do bronze e, também, evidências do uso pelos romanos.
Historicamente, o fato mais recente é a utilização desta passagem pelo exército francês de Napoleão Bonaparte, em 1800, para derrotar o exército imperial austríaco situado em Montebello, na Itália.
Uma rodovia pela passagem foi construída em 1905. Porém, devido à declividade de 9% e à impraticabilidade de uso na ocorrência de neve, um túnel de 5 850 m. foi construído em 1964.
O nome do passo foi dado em homenagem a São Bernardo de Menthon, que reconstruiu, em torno do ano de 1050, um hospital num antigo monastério destruído que havia no sopé do lado suíço da passsagem, para abrigar os peregrinos e viajantes que eram feridos pelos mouros que ocupavam a região.
Os cães originários desta região, conhecidos como São-bernardo, foram adestrados para o trabalho e para resgatar pessoas perdidas em épocas de nevasca.
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