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As contradições de Genebra na questão do colonialismo

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A revista "Africa explored and civilised" (África explorada e civilizada), publicada em Genebra entre 1879 e 1894, também pode ser consultada na internet no site da Biblioteca Nacional da Suíça. Certified True Copy (2024) by Mathias C. Pfund

Como muitas cidades europeias, Genebra está revisitando suas ligações históricas com o colonialismo. Uma nova exposição revela como ícones da ajuda humanitária estavam entre os apoiadores do colonialismo.

Genebra é o lar de muitas ONGs ativas no campo da ajuda humanitária. No mundo todo, a cidade é vista como uma referência no que diz respeito aos direitos humanos, especialmente graças à presença da ONU. Mas ela também precisa lidar com um passado sombrio e conturbado, marcado pelo racismo e pela desigualdade. Algumas das personalidades que moldaram a imagem da Genebra internacional também estiveram envolvidas em atos que, atualmente, são considerados violações dos direitos humanos.

Essa contradição é evidenciada por uma nova exposiçãoLink externo em cartaz no Museu de Etnografia de Genebra. A exposição analisa o papel desempenhado pela cidade no projeto colonial e mostra como figuras importantes de Genebra, incluindo os fundadores da Cruz Vermelha, apoiaram e financiaram o colonialismo, particularmente os crimes cometidos pela Bélgica no Congo.

Fabio Rossinelli, professor de história da Universidade de Lausanne e especialista nos vínculos entre a Suíça e o colonialismo, comenta que “de um lado, havia uma Suíça comprometida com o humanitarismo e a ajuda ao desenvolvimento, destacadamente a partir da fundação da Cruz Vermelha; do outro, havia a Suíça que, como outros países, participava da pilhagem que estava ocorrendo no contexto do capitalismo globalizado”.

Para o pesquisador, essa dicotomia é visível ainda hoje. Por um lado, a Suíça é um país que continua engajado na busca por mais paz e humanismo. Por outro lado, é um país que abriga grandes multinacionais acusadas de prejudicar o meio ambiente e o bem-estar social. “É uma continuação do que foi feito no século XIX”, diz o historiador.

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Vista da exposição “Memórias: Genebra e o mundo colonial”, em cartaz até janeiro de 2025 no museu etnológico da cidade (MEG). KEYSTONE/© KEYSTONE / SALVATORE DI NOLFI

Personalidades inesperadas 

Rossinelli explica o papel que os fundadores do movimento da Cruz Vermelha, Henri Dunant e Gustave Moynier, desempenharam na época em que os países europeus estavam dividindo a África para criar suas colônias. “Eles foram grandes colonizadores”, diz ele.

A Suíça, diferente de seus vizinhos europeus, não possuía nenhuma colônia. Mas isso não quer dizer que ela não tenha participado do empreendimento colonial. Henri Dunant, por exemplo, havia trabalhado para a Companhia Genebrina de Colônias Suíças em Sétif, no nordeste da Argélia, onde a empresa administrava terras agrícolas. Posteriormente, o próprio Dunant viria a fundar uma empresa no país. Ele conseguiu fazer isso graças às concessões dadas pela França aos colonos agricultores – um sistema que durou até 1956.  

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Ilustração contemporânea dos fundadores do Comitê Internacional da Cruz Vermelha de 1863. KEYSTONE

Gustave Moynier, o outro fundador da Cruz Vermelha, desempenhou um papel ainda mais importante na expansão do colonialismo. Rossinelli lembra como Moynier, que era membro da Sociedade de Geografia de Genebra, fundou uma revista dedicada à questão colonial. Escrita em francês, a publicação chamava-se “A África explorada e civilizada” e lançou edições entre 1879 e 1894. Ela foi distribuída em todo o mundo, inclusive para missionários que estavam no que viria a ser Moçambique, que era então uma colônia portuguesa.

Adotando teses que estavam em voga na Europa na época, as publicações elogiavam a civilização ocidental e o cristianismo. A crença numa superioridade racial – validada pelo progresso tecnológico e pela modernidade – legitimava a violência colonial.

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Uma estátua do Rei Leopoldo II em Bruxelas depois de ter sido pichada em junho de 2020. Pelo menos duas petições foram lançadas para remover todas as estátuas em homenagem ao monarca da era colonial devido às atrocidades históricas cometidas em seu nome na antiga colônia do Congo. KEYSTONE

Paralelamente, um movimento antiescravagista havia surgido na Europa após a abolição do comércio de pessoas escravizadas nas colônias americanas – com o Brasil sendo o último a abandonar a prática em 1888. De acordo com as publicações de Gustave Moynier, os esforços para “libertar e civilizar” os povos da África eram justificados porque, segundo ele, “o comércio de escravos árabes ocorria lá”.   

“Podemos nos perguntar se foi por ingenuidade ou simples idealismo que esse discurso antiescravagista, civilizatório e colonial foi adotado em Genebra. Acredito que em parte. Mas sabemos que eram principalmente fatores políticos e econômicos que estavam em jogo”, reconhece o historiador.

Na mesma época, o rei belga Leopoldo II estava em busca de dinheiro para financiar suas expedições ao Congo. Rejeitado pelos bancos de Londres e Paris, capitais coloniais rivais de Bruxelas, ele havia encontrado aliados preciosos nos banqueiros de Genebra. O monarca estava tão à vontade no Congo que o declarou um Estado livre em 1885. “Foi graças aos acordos com Leopoldo II que Moynier, um jurista respeitado, pôde lançar sua publicação”, explica Fabio Rossinelli.

Os empréstimos concedidos ao rei viabilizaram a exploração da mão de obra local para a extração da borracha na bacia do Congo, produto que era então exportado. Sob seu reinado, atrocidades foram cometidas, inclusive a mutilação e o assassinato de trabalhadores que não produziam o suficiente.  

“As elites de Genebra, próximas à Sociedade Geográfica, apoiaram e financiaram essa colonização do Congo”, afirma Rossinelli.

Como as relações entre Leopoldo II e a Suíça eram muito boas, o rei também pediu a Berna que arbitrasse conflitos entre a Bélgica e a França e, posteriormente, Portugal. Nesse contexto, Moynier atuou como Cônsul Geral de Leopoldo II na Suíça de 1890 a 1904. O seu consulado e o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) compartilhavam as mesmas instalações.

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Com as melhores intenções em exposição: participantes do 9º Congresso Internacional de Geografia fotografados em Genebra, em julho de 1908. Paula Dupraz-Dobias/SWI

Contexto histórico

Um ano antes de Leopoldo II criar uma “seção colonial” na Exposição Internacional de 1897, na Bélgica, onde homens e mulheres congoleses eram expostos num jardim zoológico, a Exposição Nacional Suíça já havia apresentado sua “Aldeia Negra”, onde seres humanos foram expostos num parque de diversões. Ironicamente, o parque situava-se em Genebra, a alguns metros do Museu de Etnografia. A narrativa imperialista e os estereótipos racistas promovidos por Dunant e Moynier contribuíram para a criação desses jardins zoológicos.

Pascal Hufschmid, atual diretor do Museu Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho em Genebra, parabenizou o Museu de Etnografia pelo seu trabalho de releitura do papel desempenhado pelos fundadores da Cruz Vermelha na propagação das teses colonialistas.

“O problema com os ícones é que seu prestígio expõe os aspectos mais difíceis de suas ações e personalidades”, explica ele à swissinfo.ch. Hufschmid enfatiza que o papel dos museus é fazer as perguntas certas, mesmo que isso envolva ouvir verdades desconfortáveis.

Uma das perguntas que podem ser feitas é: por que Henri Dunant estava na linha de frente da batalha em Solferino, na qual a França e seus aliados enfrentaram a Áustria em 1859? As memórias de Dunant serviriam de inspiração direta para as Convenções de Genebra. 

“Ele estava lá para defender interesses comerciais ligados ao sistema colonial. Essa história precisa ser plenamente reconhecida hoje, e nada deve ser escondido”, diz Pascal Hufschmid. Para o diretor do Museu do CICV, “isso também significa reconhecer que esses protagonistas do movimento da Cruz Vermelha eram figuras ambivalentes, imperfeitas e preconceituosas”.

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Cabaça decorativa (Suriname, final do século XIX), um dos objetos exibidos na exposição de Genebra. Doada em 1905 por Pauline e Marie Micheli, viúvas, respectivamente, de Jean-Louis e seu filho Marc Micheli, ambos próximos da elite protestante de Genebra e das missões morávias; contexto de criação não documentado. ©MEG

Daniel Palmieri, historiador da Cruz Vermelha, concorda, destacando que as vidas dos fundadores devem ser vistas no contexto da época: uma Europa onde “civilizar” não era visto como um termo pejorativo. Eles eram “homens de seu tempo”. “Para eles, o colonialismo ajudou a civilizar o mundo”, diz o historiador.

Com o surgimento de artigos que alertavam a opinião pública europeia sobre os casos de abuso, é possível que Moynier, que nunca tinha ido à África, tenha percebido posteriormente o que estava acontecendo nos bastidores dessas empresas coloniais com seus objetivos “civilizatórios” no Congo Belga, afirma Palmieri.

“Mas por que ele não renunciou ao cargo de cônsul? Uma questão de ego”, sugere o historiador do CICV, que relembra que Moynier havia recebido várias recompensas da Bélgica por ajudar a demarcar as fronteiras.

Reflexões para os dias de hoje

Esse novo olhar sobre os vínculos entre a Genebra internacional e o colonialismo tem implicações concretas.

No Museu da Cruz Vermelha, uma exposição sobre as Convenções de Genebra acaba de ser atualizada para incluir a pergunta: “Quem fazia parte da humanidade em 1864?” – ano em que as Convenções de Genebra foram elaboradas. “Essas perguntas, que podem parecer óbvias, precisam ser feitas para que os museus permaneçam relevantes”, avalia Pascal Hufschmid. “Precisamos ser críticos em relação à maneira como contamos a história e garantir que damos espaço suficiente para diferentes vozes”.

Para Carine Ayélé Durand, diretora do Museu de Etnografia, o objetivo da exposição é incentivar o público a refletir sobre o passado de Genebra “a fim de responder aos desafios contemporâneos e olhar para o futuro”. Ela acrescenta que a ideia também é proporcionar um espaço para “os descendentes daqueles que foram roubados e daqueles que roubaram”. O objetivo não é “nem a vingança nem o wokismo, mas dar às pessoas a oportunidade de falar sobre isso de maneira aberta”, acrescenta.

O historiador Fabio Rossinelli traça paralelos com a era contemporânea. “Há uma continuidade óbvia entre o século XIX e as novas formas de relação de poder exercidas por multinacionais e bancos que estão atualmente em Genebra”, ressalta. Ele conclui que parte da reflexão por trás da exposição também envolve reconhecer o papel que o setor privado desempenhou e continua a desempenhar em escala global a partir de Genebra e da Suíça.

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Pôster da Exposição Nacional Suíça de 1896 anunciando as “Aldeias Negras”. Paula Dupraz-Dobias/SWI

Edição: Virginie Mangin e Eduardo Simantob/fh
(Adaptação: Clarice Dominguez)

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Debate
Moderador: Andrea Tognina

A Suíça tem o dever moral de enfrentar seus laços com o colonialismo? Como deve fazer isso?

A Suíça não teve colônias próprias, mas pôde tirar proveito do colonialismo e do tráfico de escravos. Ela continua sendo uma plataforma do comércio de commodities.

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