O Vaticano, os lefebvrianos e o antissemitismo
Ao reintegrar os seguidores do bispo tradicionalista Marcel Lefebvre na Igreja Católica, o papa Bento XVI reabilitou um movimento acusado de ter posições antissemitas, cujo centro espiritual fica na Suíça.
Dois representantes desse movimento, o bispo britânico Richard Williamson e o padre italiano Floriano Abrahamowicz, colocaram em dúvida o genocídio nazista, causando a indignação da comunidade judaica e críticas até de líderes católicos.
O Vaticano emitiu sinais considerados contraditórios nos últimos dias. Por um lado, abriu um canal próprio no Youtube para mostrar que tem um pé na modernidade. Por outro, o papa Bento XVI reabilitou quatro bispos da Fraternidade Sacerdotal São Pio X, voltada ao passado.
A FSSPX foi fundada em 1970, em Ecône, no estado do Valais (sudoeste da Suíça), pelo bispo francês Marcel Lefebvre, como reação às reformas aprovadas pelo Concílio Vaticano II (1962-1965). O patrono do movimento, Pio X, foi papa de 1903 e 1914 e resistiu à modernização da Igreja Católica. Hoje a sede é em Menzingen, no estado de St. Gallen (nordeste).
Lefebvre (1905-1991) opôs-se ao uso da língua popular na missa, à liberdade religiosa propagada pelo Vaticano e ao diálogo com outras religiões cristãs. Em 1976, foi suspenso por Roma, depois de ordenar seus primeiros padres. Em 1998, após ordenar quatro bispos, foi excomungado.
Tradição antissemita
As informações sobre o número de seguidores de Lefebvre são divergentes e variam de 100 mil a 600 mil fiéis e em torno de 500 padres. Trata-se de um grupo pequeno se comparado com 1,1 bilhão de católicos.
Mesmo assim, Bento XVI tenta desde o início de seu pontificado reconquistar as “ovelhas perdidas” com a intenção expressa de preservar a unidade da Igreja. Em 2005, recebeu para audiência o atual líder da FSSPX, o suíço Bernard Fellay. Dois anos depois, reintroduziu oficialmente a missa em latim.
Em junho de 2008, renunciou à exigência de que os tradicionalistas reconheçam as decisões do Concílio Vaticano II. E, no último sábado, anulou a excomunhão dos bispos Bernard Fellay, Bernard Tissier de Mallerais, Richard Williamson e Alfonso de Galaretta, que tinham sido ordenados em 1988 por Lefebvre e são todos membros da Fraternidade Sacerdotal São Pio X.
Desde então, o papa é duramente criticado em vários países e na mídia internacional, porque Williamson, em uma entrevista à televisão sueca, negou o Holocausto e também antes já havia feito declarações antissemitas. Parece não ser um caso isolado.
Em dezembro do ano passado, o superior distrital do grupo na Alemanha, Franz Schmidberger, caracterizou os judeus como “corresponsáveis pela morte de Cristo”. Ele se referia à tradição da antiga liturgia da sexta-feira santa, onde os católicos rezam pela “conversão dos judeus”. Junto com a missa em latim, também essa liturgia foi autorizada por Bento XVI.
Marcel Lefebvre chegou a ser acusado de ter proximidade com círculos antissemitas, como a Action française, um grupo radical criado em 1898 e proibido em 1944. Lefebvre – cujo pai morreu num campo de concentração alemão em 1944, entre outras coisas, por ter ajudado judeus a fugir do nazismo –, mas sempre negou essas acusações.
No entanto, ele teria feito elogios a ditadores, como Francisco Franco (Espanha) e Augusto Pinochet (Chile), ou ao líder da Frente Nacional francesa, Jean-Marie Le Pen. Em um de seus últimos sermões, teria dito em 1990: “O ateísmo baseia-se na Declaração dos Direitos Humanos”.
Críticas dentro da própria Igreja
A reabilitação dos quatro bispos ultraconservadores – especialmente de Williamson –, bem como as declarações feitas esta semana pelo padre italiano Floriano Abrahamowicz, também membro da FSSPX, de que as câmaras de gás dos campos de concentração nazistas serviam para ‘desinfetar’ os judeus, abalaram as relações entre a Santa Sé e a comunidade judaica mundial.
O Grande Rabinato de Israel cortou todos os laços com o Vaticano por tempo indeterminado. Na Alemanha, o Conselho Central dos Judeus afirmou que “a decisão do papa Bento 16 de reabilitar um bispo que nega a amplitude do Holocausto foi um duro golpe para a comunidade judaica, principalmente porque o papa é alemão”. Os bispos alemães se distanciaram das declarações de Williamson, que terá de responder a inquérito da Justiça alemã.
O próprio Vaticano também se distanciou das afirmações do bispo britânico para tentar conter o estrago. O papa Bento XVI disse no dia 28 de janeiro que sente uma “completa e indiscutível solidariedade” com os judeus. “Negar o holocausto não é a posição da Igreja Católica”, disse o cardeal Walter Kasper, responsável na Santa Sé pelo diálogo com a comunidade judaica.
O diretor da FSSPX, Bernard Fellay, também fez questão de ressaltar que sua organização não nega o holocausto e que “somente Williamson é responsável por suas declarações”. A FSSPX distanciou-se claramente das afirmações de Williamson, e este se desculpou junto ao papa “pelo sofrimento” causado por suas declarações. Também o padre Franz Schmidberger, da Alemanha, condenou as declarações do bispo britânico como “inaceitáveis”.
Já a Conferência dos Bispos Suíços, que inicialmente elogiou a anulação da excomunhão como “ato de reconciliação e um caminho para superar a divisão da Igreja”, publicou uma nova declaração no último dia 27 em que afirma que os quatro bispos da FSSPX têm de reconhecer o judaísmo. “Somente então sua excomunhão deve ser anulada”.
swissinfo, Geraldo Hoffmann (com agências)
O padre tradicionalista italiano Floriano Abrahamowicz afirmou na última quinta-feira (29/1) que as câmaras de gás dos campos de concentração nazistas serviam para ‘desinfetar’ os judeus.
Em entrevista ao jornal La Tribuna de Treviso, o padre, chefe da região nordeste da Itália da Fraternidade São Pio X, garante não acreditar que pessoas tenham sido mortas nas câmaras de gás.
“Sei que as câmaras de gás existiram pelo menos para desinfetar, mas não saberia dizer se causaram a morte ou não de pessoas porque não investiguei a fundo o assunto”, declarou Abrahamowicz.
Esta entrevista foi concedida depois do escândalo que geraram as declarações antissemitas do bispo revisionista inglês Richard Williamson.
Em uma entrevista à tv sueca, o bispo inglês negou a existência do Holocausto e a morte de milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial e assegurou que não existiram câmaras de gás na Alemanha nazista. Além disso, só teriam morrido de 200.000 a 300.000 judeus nos campos de concentração e não seis milhões de judeus.
Os tradicionalistas ligados à FSSPX, fortemente representados na França e no Brasil, dizem contar com cerca de 500 padres e 150 mil fiéis.
Eles não reconhecem o Concílio Vaticano II (1962-65), referente à adaptação da Igreja ao mundo contemporâneo.
Além da sede em Menzingen, a FSSPX têm seminários para formação de padres em Ecône (no Valais, sudoeste da Suíça), Zaitzkofen (Alemanha), Flavigny-sur-Ozerain (França), Goulburn (Austrália), Winona (Minnesota, EUA) e La Reja (Argentina).
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