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Paralelo entre Hans Küng e Leonardo Boff

Os dois teólogos foram afastados da Igreja Católica.

Este artigo, de autoria do teólogo protestante Aharon Sapsezian, foi publicado inicialmente por ocasião do Salão do Livro de Genebra 2002.

Falar de paralelos entre o Brasil e a Suíça é um paradoxo. Dois países tão diferentes, e diferentes em tantas coisas! O Brasil é imenso, pobre, desorganizado, tropical… A Suíça é o contrário de tudo isso. Também em religião o contraste é gritante, apesar de os dois países serem de maioria cristã. O cristianismo helvético data dos primeiros séculos da nossa era e carrega uma milenar tradição de osmose entre religião e cultura.

Já o cristianismo brasileiro – tanto na sua versão católica predominante, quanto na das minorias protestantes/evangélicas e outras -, anda a procura de sua autenticidade, de sua plena identificação com contexto humano e social ambiente.

Como em toda a Europa Ocidental, o cristianismo na Suíça está em franco declínio e a secularização avança a olhos vistos. Ao passo que no Brasil ele está em ebulição, deixando de ser a religião das elites para ser a do “povão”, das massas angustiadas.

Contraste teológico?



O contraste entre os dois países se reflete também na teologia, essa ciência mais ou menos erudita que interpreta e expõe as verdades de fé. Na Suíça, a teologia é uma atividade antiga e reconhecida.

A época da Reforma, no século 16, produziu teólogos protestantes de estatura internacional como Zwínglio, Farel, Calvino, e essa tradição continua: o século 20 teológico europeu foi marcado pela obra monumental do protestante suíço Karl Barth. No campo católico, o Concílio Vaticano II detonou um vasto processo teológico também em terras helvéticas no qual, entre outros, se destacou o “conservador” Hans Urs von Balthasar, e se destaca ainda hoje o “progressista” Hans Küng…

Ao passo que no Brasil a atividade teológica, pode-se dizer, só ganhou plena legitimidade e maturidade no turbilhão recente da Teologia da Libertação. Foi no bojo desse movimento de tomada de consciência da vocação social da igreja na América Latina que surgiram teólogos brasileiros de importância mundial, entre os quais Leonardo Boff…

Um ponto comum



Como se vê, o contraste entre a Suíça e o Brasil é inegável. Ocorre, porém, que, no próprio quadro desse contraste, encontramos curiosamente um extraordinário ponto de convergência – dois teólogos de renome mundial, ambos na vanguarda do combate por uma verdade cristã sem barreiras: um brasileiro, o outro suíço.

O significado de Leonardo Boff e Hans Küng ultrapassa as fronteiras de seus países respectivos e da Igreja Católica a que ambos pertencem por convicção. Ambos são vanguardeiros na exploração de caminhos novos para articular a fé cristã milenar com as realidades e problemas do mundo de hoje.

Contrariamente aos teólogos convencionais – que sacralizam, quando não petrificam, a tradição – Boff e Küng firmam-se na tradição para daí lançarem-se às alturas da liberdade criadora.

Cada um deles, à sua maneira, teve e ainda tem confrontações com o magistério e as autoridades da Igreja. A Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé (ex-Santo Ofício) cerceou, em 1979, a autorização de Küng de ensinar em seminários católicos; enquanto que Boff, depois de duas vezes obrigado pelas autoridades eclesiásticas a guardar “silêncio obsequioso”, renunciou em 1993 a suas funções de padre franciscano.

Nem um, nem outro, porém, abriu mão de sua militância de teólogo comprometido, nem cessou de defender suas convicções – por livros, aulas, palestras, mídia – e de prosseguir sua intrépida busca da verdade.

Paralelos de vida



Até mesmo uma olhadela rápida no curriculum vitae desses dois teólogos permite entrever interessantes paralelos. Hans Küng nasceu em 1928; foi ordenado padre em 1954; doutorou-se na Sorbonne; lecionou Teologia Ecumênica na Universidade de Tübingen (Alemanha) e foi “consultor” do 2° Concílio do Vaticano. É autor de mais de 50 livros, alguns com títulos provocantes como “Infalibilidade…?”, “Deus Existe?”.

Por sua vez, Leonardo Boff, nascido em 1938, cursou seminário em Petrópolis (onde mais tarde lecionou) e completou doutorado em Munique (Alemanha). Já escreveu uns 60 livros, entre os quais “Igreja, Carisma e Poder”. Ultimamente produziu alguns livros de ficção: “A Águia e a Galinha”, penetrante metáfora da condição humana. Ensina Ética e Filosofia da Religião na Universidade do Rio de Janeiro. Além de ser um dos pais da Teologia da Libertação, é engajado no Movimento dos Sem Terra e defensor da ecologia.

Igreja



Observemos os dois teólogos um pouco mais de perto, à luz de algumas temáticas a que ambos têm contribuído, e notemos como o paralelo entre eles se salienta. Comecemos pelo tema da Igreja.

Boff conclama a Igreja a ser menos autoritária, mais propensa a ouvir o clamor do povo. Daí sua declarada simpatia pelas “comunidades de base”. Estas, para Boff, refletem um novo rosto da Igreja; um rosto mais amigo, mais solidário, mais em sintonia com as aspirações sociais da gente simples.

Küng, na mesma linha, convida a autoridade eclesiástica a questionar-se e a submeter-se “à vontade de Deus”. Afirma que, se critica a Igreja, não é por não querê-la bem. Ao contrário, “critico-a porque estou engajado nela, porque ela sempre foi importante para mim. Mas ela não é a instância suprema. A igreja só tem sentido como serviço ao ser humano”.

Ecumenismo



No tocante ao ecumenismo Boff e Küng têm muito em comum. Boff é, dos teólogos católicos brasileiros, o mais lido e apreciado nos meios protestantes progressistas, quer pelo seu espírito de diálogo com as igrejas irmãs, quer pela sua abertura às religiões afro-brasileiras.

O fato de ele centrar a fé, não tanto em rígidos dogmas metafísicos, mas sim no ensino evangélico do amor de Deus, representa um irresistível convite a todas as pessoas a celebrarem juntas sua fé: “o universo é um imenso teatro”, diz Boff, “onde Deus e suas virtudes bailam e nos compelem a essa dança celeste”. Hans Küng, por sua vez, não foi só professor de Ecumenismo. É também um “ecumenista” convicto.

Haja vista sua longa amizade com o saudoso teólogo protestante suíço Karl Barth, e o fato de que sua própria tese de doutorado na Sorbonne foi sobre “A doutrina da justificação [crucial para os protestantes] em Karl Barth”. Durante a fase preparatória do 2° Concílio do Vaticano, Küng escreveu “O Concílio e a União dos Cristãos”, uma proposta de maior abertura aos “irmãos separados”. É dele a corajosa afirmativa: “A perspectiva ‘católica’ e a ‘protestante’ da fé cristã são convergentes e complementares”.

Problemas humanos

Tanto Küng quanto Boff sempre manifestaram real sensibilidade aos problemas que afligem a sociedade de nossos dias, particularmente os problemas da pobreza, da opressão das minorias, da condição da mulher, do meio ambiente.

Apesar das medidas restritivas de que foram alvo por parte das autoridades eclesiásticas, Boff e Küng gozam do respeito e admiração de muitos dentro e fora da Igreja. O impacto de seus numerosos livros não parece diminuir, e estes continuam sendo traduzidos em muitas línguas.

Com mais de 70 anos, Küng é o assessor teológico do chamado “movimento popular católico”, com ramificações em vários países europeus, que se empenha pela atualização da Igreja e pela maior participação do laicato nela. Recentemente, em março de 2000, foi convidado para uma série de conferências sobre “Ética Global – uma visão para o século 21”.

E Boff, sempre ativo e solicitado a compartilhar seus pensamentos, ficou surpreendido quando, em fins do ano passado, foi homenageado pelo Parlamento sueco com o prêmio “Modo de Vida Correto” (uma espécie de Prêmio Nobel alternativo), “por unir em sua vida espiritualidade, justiça social e proteção do meio ambiente”.

Quem diria? No mar de contrastes helvético-brasileiros, uma bela convergência, um lindo paralelo! Vindos de contextos tão distantes e diferentes, dois teólogos que não só parecem tão próximos um do outro como também se irmanam num mesmo combate: o combate por um mundo melhor e mais risonho, pela libertação e crescimento de todo ser humano, por uma igreja aberta onde circula livremente a brisa suave da graça de Deus…

swissinfo/Aharon Sapsezian

30.04.02

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