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Trégua olímpica: do mito à realidade

Escultura de uma pistola com o cano amarrado
"Não à violência", escultura de Carl Fredrik Reutersward no Parque Olímpico de Lausanne, Suíça. Alamy Stock Photo/Credit: McPHOTO / Alamy Stock Photo

O COI e a ONU esperam obter uma suspensão dos combates, principalmente entre a Rússia e a Ucrânia, durante os Jogos Olímpicos de Paris. Na realidade, porém, a trégua olímpica raramente é respeitada. Uma retrospectiva de uma "tradição inventada".

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Em uma visita a Paris na semana passada, o presidente chinês Xi Jinping apoiou o princípio de uma trégua olímpica, defendida pela ONU e pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) e defendida pelo presidente francês Emmanuel Macron.

Por enquanto, Moscou não rejeitou essa trégua, que deve começar uma semana antes dos Jogos Olímpicos (JO) de Paris, ou seja, em 19 de julho próximo, e terminar uma semana após o término dos Jogos Paraolímpicos, em 15 de setembro. Contudo, o Kremlin observa que “como regra geral, o regime de Kiev usa tais ideias e iniciativas para tentar se reagrupar e se rearmar”.

“As forças russas, que estão em uma fase ascendente na guerra contra a Ucrânia, estão seguindo seu próprio cronograma e não veem necessariamente com bons olhos a ideia de uma trégua”, estima Lukas Aubin, diretor de pesquisa do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas (IRIS) e especialista em Rússia. Moscou considerou humilhantes as medidas tomadas pelo COI – os atletas russos e bielorrussos não poderão competir sob sua bandeira”, ressalta Lukas Aubin.

Será que o movimento olímpico conseguirá obter o que outras instâncias internacionais tentam em vão alcançar: um cessar-fogo, mesmo que temporário, na guerra na Ucrânia? Ou até mesmo em outras áreas de conflito, em particular no Oriente Médio?

Peça de museu exibindo atletas no passado
As Olimpíadas na Antiguidade – Um relevo na base de uma estátua por volta de 500 a.C. KEYSTONE/SZ Photo / Scherl

Salvo-conduto mais do que trégua

As bases da trégua olímpica remontam à Grécia antiga. Durante essa “trégua” (“Ekecheiria” em grego), nos diz o COI em seu siteLink externo, “atletas, artistas e suas famílias, bem como peregrinos comuns, podiam viajar em segurança para participar ou assistir aos Jogos Olímpicos e depois retornar a seus respectivos países”.

“Tratava-se mais de um salvo-conduto do que de um cessar-fogo ou de uma trégua no sentido em que entendemos hoje”, explica Patrick Clastres, professor de história da Universidade de Lausanne. “Na Grécia daquela época, o estado de guerra era permanente. O conceito de paz só foi inventado após a Guerra do Peloponeso, ou seja, no século IV a.C.”, acrescenta o historiador.

Uma “tradição inventada”, resume este especialista do movimento olímpico, desde o renascimento dos Jogos no final do século 19. Na Conferência de Sorbonne, em 1892, etapa fundadora dos Jogos Olímpicos modernos, Pierre de Coubertin, que viria a ser o segundo presidente do COI (1896-1925), acreditava na paz por meio do esporte. “Exportemos remadores, corredores e esgrimistas: eis o livre comércio do futuro, e no dia em que for introduzido nos costumes da velha Europa, a causa da paz terá recebido um novo e poderoso apoio”.

No entanto, o mundo do amadorismo esportivo descrito por Coubertin era estritamente limitado a uma pequena elite social. “Na época, era inimaginável que trabalhadores, mulheres ou povos submetidos a impérios coloniais pudessem participar dos futuros Jogos Olímpicos”, especifica Patrick Clastres.

Simbolismo dos cinco anéis

Desde os primeiros Jogos Olímpicos modernos em Atenas, em 1896, preocupações geopolíticas e até mesmo militares ofuscaram o pacifismo esportivo de Coubertin. A organização dos Jogos por Atenas deve “ser entendida como um episódio do esforço grego para recuperar a integridade nacional e como a continuação da tarefa iniciada em 1821 com a luta pela independência”, escreve a historiadora Christina Koulouri, no catálogo da exposição que o Louvre dedica atualmente ao Olimpismo. Dimítrios Vikélas, primeiro presidente do COI, era aliás membro da Sociedade Nacional, um partido ferozmente nacionalista.

Foto antiga em preto e branco de um estádio
Vista dos primeiros Jogos Olímpicos modernos em Atenas, em 1896. KEYSTONE

De trégua olímpica, quase não se falou ao longo do século 20 durante as guerras mundiais. Mesmo que Coubertin ainda sonhasse com ela, ele que desenhou seus cinco anéis, símbolos dos cinco continentes, sobre um fundo branco, sinônimo de trégua, ressalta Patrick Clastres.

Samaranch lança sua trégua

Depois veio o início da década de 1990. O movimento olímpico não estava em sua melhor forma. Um boicote se seguiu ao outro, primeiro pelos Estados Unidos e depois pela Rússia. Em 1992, em plena guerra na ex-Iugoslávia, a ONU proibiu os atletas sérvios e montenegrinos de participarem de competições esportivas internacionais e, portanto, das Olimpíadas de Barcelona.

O catalão Juan Antonio Samaranch, presidente do COI, “compreende o perigo para ‘seus’ Jogos Olímpicos”, observa Patrick Clastres. “Ele iria usar todos os recursos da diplomacia internacional, especialmente a helvética, a fim de mudar a decisão da ONU”.

O COI, trabalhando em estreita colaboração com a ONU, inventou a bandeira neutra sob a qual os atletas sérvios e montenegrinos poderiam competir. E propôs uma trégua olímpica nos Jogos de Inverno de 1994 em Lillehammer. O COI queria influenciar a geopolítica mundial. E a ONU, por sua vez, estava interessada no esporte. Uma troca “ganha-ganha” nesses anos 1990, quando ainda se acreditava na paz mundial e no “Fim da História”.

A ONU agora vai “fazer do esporte um instrumento completo de seu soft power”, escreve Julie Tribolo, professora de direito público na Universidade Côte d’Azur. Em 2001, o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, nomeou o ex-conselheiro federal Adolf Ogi como consultor especial para o esporte a serviço do desenvolvimento e da paz.

Foto em preto e branco de um homem de terno e gravata
Pierre de Coubertin, o segundo presidente do COI (1896-1925), acreditava na paz por meio do esporte. KEYSTONE/© Maurice Branger / Roger-Viollet

Fundação inexistente

Em 2000, o COI chegou a criar uma Fundação Internacional para a Trégua Olímpica (FITO) e um Centro de mesmo nome (CITO), cuja sede legal é em Lausanne e escritórios em Atenas. Curiosamente, na internet, descobrimos que a fundação foi excluída do registro comercial do cantão de Vaud.

“O COI, como fundador da FITO, e os membros do conselho de administração da Fundação FITO tomaram a decisão de dissolver a FITO em 2020”, explicam na sede do COI em Lausanne. “Por razões operacionais, a fim de racionalizar o trabalho das duas entidades e transferir para uma única entidade todas as prerrogativas, funções e atividades do CITO”, acrescenta o COI.

Em particular, o CITO organiza campos com foco no esporte a serviço da paz. “Essas instituições bastante centradas na Grécia são uma concessão feita pelo COI à Grécia, que sempre sonhou em organizar todos os Jogos Olímpicos em seu território”, de acordo com Patrick Clastres.

O balanço de trinta anos de trégua olímpica, votada antes de cada Jogos Olímpicos, é bastante fraco. A intervenção russa na Geórgia ocorreu durante as Olimpíadas de Pequim em 2008, os Jogos de Inverno de Sochi em 2014 não impediram que as forças russas invadissem a Crimeia, e eles começaram sua “operação especial” na Ucrânia durante os Jogos de Inverno de Pequim em 2022. “Sem mencionar outros conflitos internacionais, no Iêmen, por exemplo, que nunca foram afetados por essa ‘trégua’”, observa Lukas Aubin.

Edição: Pauline Turuban

Adaptação: Karleno Bocarro

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