Suíça não é neutra quando se trata da pena de morte
A Suíça tem um objetivo declarado: que a pena de morte seja abolida em todo o mundo. Seus defensores, por outro lado, insistem na soberania nacional - e querem se distanciar dos supostos valores ocidentais.
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A Suíça queria alcançar um mundo sem a pena de morte até 2025. O país estabeleceu essa meta ambiciosa há 11 anos. “Enquanto a pena de morte existir, continuaremos a lutar contra ela”, disse Didier Burkhalter, então ministro suíço das Relações Exteriores, ao estabelecer a meta em 2013.
A meta não foi alcançada, mas a tendência há muito tempo tem sido na direção da abolição: atualmente, ainda há um núcleo duro de cerca de vinte países que executam pessoas regularmente. A grande maioria dos países aboliu ou suspendeu essa prática. Esse desenvolvimento é uma novidade histórica mundial.
Mas estamos muito longe de um mundo sem execuções. Países como a China, o Irã, a Arábia Saudita e os EUA continuam a executar muitas pessoas. A Anistia Internacional relatou 1.153 execuções conhecidas em 2023 – um aumento de 31% em relação ao ano anterior, e o maior número em uma década. No entanto, o número de casos não registrados é muito maior.
Os Estados que mantêm a pena de morte argumentam principalmente com base em sua soberania nacional: a pena capital não é proibida per se pelo direito internacional. Portanto, eles têm o direito de praticá-la. Muitos desses países caracterizam sua abolição como uma preocupação ocidental, incompatível com seus valores e sistemas jurídicos. Em última análise, o Ocidente quer impor seus próprios valores e sustentar sua hegemonia – um argumento que pode ser encontrado em diferentes variações na política internacional.
A última execução da pena de morte no Brasil foi a do escravo Francisco, em Pilar-AL, em 28 de abril de 1876. A última execução de um homem livre foi, segundo os registros oficiais, de José Pereira de Sousa, em Santa Luzia (atualmente Luziânia-GO). Ele foi enforcado em 30 de outubro de 1861.
Oficialmente a pena de morte foi abolida no Brasil na Proclamação da RepúblicaLink externo, em 15 de novembro de 1889. O Brasil foi o segundo país das Américas a abolir a pena de morte, após a Costa Rica.
Embora abolida na prática, a pena de morte ainda é prevista para crimes militares cometidos em guerra, de acordo com o artigo 5º, XLVII, “a”, da Constituição FederalLink externo.
O debate sobre a reintrodução da pena de morte persiste devido à preocupação com a segurança pública e o aumento da violência. Pesquisas mostram que uma parcela significativa da população brasileira apoia a pena de morte, especialmente entre jovens adultos.
Em 2018, o apoio ao uso da pena de morte cresceu significativamente. De acordo com pesquisa do DatafolhaLink externo, 57% dos brasileiros apoiam a pena de morte. A faixa etária que mostra o maior apoio à execução dos condenados é a de 25 a 34 anos, na qual 61% afirmam ser a favor.
Em 2022, uma pesquisa da Ipec/TV GloboLink externo apontou que 49% dos brasileiros são contrários e 42% favoráveis a pena de morte. A defesa da pena de morte cresce entre os adultos de 25 a 34 anos (50% são a favor), pessoas que consideravam o governo do então presidente Jair Bolsonaro ótimo ou bom (50%) e com escolaridade até ensino médio (46%).
Especialistas argumentam que a pena de morte não resolve problemas de segurança e pode levar a injustiças irreversíveis, especialmente em um sistema judiciário falho. Além disso, a adoção da pena de morte colocaria o Brasil em desacordo com convenções internacionais.
Estudos mostram que a pena de morte não é eficaz na redução da criminalidade, e a solução estaria em políticas públicas mais eficientes, melhorias no sistema prisional e investimentos em educação e oportunidades para comunidades vulneráveis.
“Todo ser humano tem o direito à vida. A pena de morte é proibida.” Isso foi declarado na Constituição Federal da SuíçaLink externo desde 1999 – e a política externa do país também é orientada por isso. O princípio de que a pena de morte é categoricamente proibida em todas as circunstâncias tem sido uma prioridade da política externa desde 1982. As últimas execuções na Suíça ocorreram em 1944. Paradoxalmente, no entanto, a pena de morte era uma opção no direito penal militar suíço até 1992. Isso demonstra: a situação em torno da pena capital é confusa.
Abolição da pena de morte
De qualquer forma, foram os atores da sociedade civil – e não os políticos – que fizeram campanha contra a pena de morte desde o fim da II Guerra Mundial.
Após as atrocidades do conflito, a ONU foi criada e, com ela, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, onde foi definido o direito à vidaLink externo: o princípio e o pré-requisito para a proibição da pena de morte. Foram principalmente as redes transnacionais da sociedade civil que alimentaram o movimento abolicionista – como a Anistia Internacional, que se tornou uma das vozes mais importantes no mundo.
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Como a Declaração Universal dos Direitos Humanos mudou o mundo
Chiara Sangiorgio coordena a campanhaLink externo global da Anistia Internacional contra a pena de morte a partir de Londres. Ela ressalta que havia apenas alguns países sem a pena de morte após a II Guerra Mundial. Quase todos eles eram países latino-americanos, onde a pena de morte estava associada principalmente à repressão colonial. Sua abolição fazia parte da emancipação nacional. O primeiro Estado moderno a abolir a pena de morte foi a Venezuela, em 1864. “É importante lembrar que o movimento contra a pena de morte não é uma preocupação puramente ocidental”, diz Sangiorgio.
A democratização de um número cada vez maior de países ao longo do século 20 é vista como um fator importante na redução da pena capital em todo o mundo – os EUA continuam sendo uma grande exceção, embora cada vez menos pessoas estejam sendo executadas nesse país.
A pena capital é vista como um instrumento de repressão, controle social e supressão da oposição política. Além disso, não há “nenhum estudo científico que prove que ela tenha um impacto positivo na prevenção e segurança do crime, e que seja mais eficaz do que outras punições severas”, escreve o Ministério suíço das Relações Exteriores (EDA, na sigla em alemão) em seu “Plano de Ação 2024-2027” para a abolição globalLink externo da pena de morte.
Soberania nacional versus direitos humanos
Os países que ainda aplicam a pena de morte geralmente argumentam que são duros com os criminosos. Eles querem mostrar à sua própria população que o Estado é “duro com o crime” e quer punir os culpados, diz Aurélie Plaçais, diretora da Coalizão Mundial Contra a Pena de Morte (WCADPLink externo, na sigla em inglês). “Em última análise, é uma resposta simples para problemas e crimes complexos.” Para colocar isso em perspectiva: em 2022, 37% das execuções realizadas em todo o mundo foram por delitos relacionados a drogas.
A WCADP é uma organização internacional na França que faz campanha pela abolição da pena de morte em todo o mundo, e reúne 185 organizações. Muitos de seus membros são perseguidos em seus países por causa de seu compromisso contra a pena de morte.
A estratégia de comunicação externa funciona de forma diferente, diz Plaçais: internacionalmente, os Estados não enfatizam a luta contra o crime, mas insistem em sua soberania e no fato de que a lei internacional não proíbe a pena de morte. Portanto, todo Estado tem o direito de usá-la, pois ela está dentro de sua soberania nacional.
Nas negociações dentro da estrutura da ONU, é perceptível que os Estados frequentemente se referem a isso em seus votos. Eles criticam o fato de que a diversidade dos sistemas jurídicos e políticos não é respeitada, comprometendo assim a igualdade dos países. Em última análise, trata-se de impor uma determinada ordem mundial e determinados valores – uma clara crítica ao Ocidente, que, na visão deles, domina o sistema multilateral. Eles explicitamente não reconhecem a universalidade dos direitos humanos.
Os países com o maior número de execuções são muito diferentes. Em primeiro lugar temos a China, um Estado comunista de partido único que impõe a pena de morte para um grande número de delitos. Os detalhes exatos não são conhecidos: a China trata a questão com muito sigilo, pouco é comunicado oficialmente e o número de execuções também é desconhecido. “Presumimos que milhares de execuções são realizadas todos os anos”, diz Aurélie Plaçais.
Depois vem o Irã, um sistema teocrático-autoritário que tem usado a pena de morte como instrumento de repressão em grande escala desde a Revolução Islâmica – inclusive após as revoltas que se seguiram ao assassinato de Jina Mahsa Amini.
Assim como na monarquia absoluta da Arábia Saudita, delitos relacionados a drogas e delitos religiosos são importantes para a imposição da pena de morte.
Os EUA são uma das poucas democracias do mundo que ainda realizam execuções, embora os números estejam diminuindo há algum tempo, e cada vez mais Estados estejam proibindo ou suspendendo essa punição.
“O que todos os Estados têm em comum é o fato de serem caracterizados por um alto grau de violência estatal”, diz Plaçais. Esses países são caracterizados por repressão e políticas discriminatórias em seu território, bem como por conflitos militares no exterior.
Entre as relações públicas e o abolicionismo genuíno
Além disso, há países como a Arábia Saudita. Esta apresenta uma imagem de modernização para o mundo exterior, enquanto o número de execuções disparou. “A situação está pior do que nunca”, diz Taha Alhajj, diretor jurídico da Organização Saudita Europeia para os Direitos Humanos (ESOHRLink externo, na sigla em inglês).
Muita coisa mudou no país desde que Mohammed bin Salman se tornou o homem forte do reino. As normas sociais foram suavizadas, a religião foi deixada de lado e o país está se abrindo para o turismo. Para Alhajj, isso é pura propaganda: “Esporte, música, influenciadores – a Arábia Saudita está investindo bilhões para dar a si mesma uma imagem limpa. Ao mesmo tempo, nunca antes tantas pessoas foram executadas.”
O reino desconsidera normas básicas, como a condenação de pessoas sem representação legal ou a execução de menores. Além disso, o catálogo de punições está mais amplo do que nunca, diz Alhajj – agora, pessoas também estão sendo executadas por ofensas políticas ou religiosas. “No cenário internacional, a Arábia Saudita se manifesta a favor do respeito aos direitos humanos. Isso é pura manipulação e mentira”, resume ele.
O ESOHR sabe o que isso significa para a própria sociedade civil por sua própria experiência: o fundador foi perseguido e preso, e todos os membros tiveram que fugir para o exterior por causa da perseguição. “As penas são draconianas; não há mais nenhum ativista de direitos humanos no país que faça campanha contra a pena de morte”, diz Alhajj.
Mais execuções
O que está acontecendo agora? Para Chiara Sangiorgio e Aurélie Plaçais, a tendência é clara: o número de países com pena de morte está diminuindo. “Vários Estados estão atualmente considerando projetos de lei para abolir a pena de morte”, diz Plaçais.
Entretanto, o número de execuções aumentou nos últimos anos, como na Arábia Saudita. Ambos esperam que isso continue no futuro: menos países com pena de morte, mas mais execuções.
E, presumivelmente, ainda com muita dissimulação: em 2002, o governo chinês assumiu a posição de que a “abolição mundial final da pena de morte” seria “a consequência inevitável do desenvolvimento histórico”. No entanto, a China continua sendo de longe o país com o maior número de sentenças de morte executadas.
Edição: Benjamin von Wyl
Adaptação: Flávia C. Nepomuceno dos Santos
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