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As armas continuam no armário

Depois da formação básica no exército, o jovem recutra leva sua arma para a casa. Keystone

Dizer que a Suíça "é armada até os dentes" não chega a ser exagero: suíços são soldados-cidadãos, que guardam suas armas do exército em casa. Governo confirma manutenção da prática.

swissinfo pesquisa as origens dessa antiga tradição, algo único na Europa.

Uma situação do cotidiano costuma surpreender turistas estrangeiros que estão passeando pela primeira vez na Suíça: jovens soldados nas praças, estações de trem e ruas públicas, com seus fuzis à tiracolo e alguns até carregando latas de cerveja no braço.

No país dos Alpes, o soldado guarda literalmente suas armas embaixo do travesseiro. Milhares de pistolas e fuzis estão em circulação, tanto nas residências dos jovens que prestam serviço militar como dos militares de reserva.

Antiga tradição suíça

Os interessados pela história do país chegam rapidamente à conclusão de que esse hábito bélico sempre existiu. Para os habitantes da região da antiga Confederação Helvética, estar armado era algo tão comum como fabricar queijo.

“Até meados do século XIX e, em alguns casos, até mesmo no início do século XX, existia o armamento obrigatório para a população suíça”, conta Peter Hug, historiador da Universidade de Berna. Esse era o dever de cada cidadão, que também financiava do próprio bolso a compra de armas. Muitos camponeses terminavam se endividando para estar dentro da lei.

Primeiro o fuzil, depois a certidão de casamento

O professor de Berna viaja ainda mais ao passado e lembra que, no século XVIII, cada homem precisava apresentar uniforme e uma arma antes de ter o direito de se casar.

Em algumas localidades a apresentação do armamento era a condição essencial para o cidadão poder votar na sua localidade. Nas chamadas “Landgemeinden” (conselhos rurais), os homens só podem levantar os braços nos plebiscitos quando estão carregando uma espada.

“Apenas com a onda protecionista em 1880, a alfândega suíça passou a injetar grandes quantidades de dinheiro nos cofres do Estado, antes empobrecido, que terminou por possibilitar a criação de um exército estruturado”.

A partir de então, o soldado suíço não precisava mais comprar sua própria arma, mas apenas pagar pela sua manutenção. Até hoje, cada suíço em prestação de serviço militar precisa comprar do seu próprio bolso o equipamento perdido. Se alguém perde seu fuzil, as conseqüências são piores, levando até mesmo a um processo na justiça.

Munição passa a ser distribuída

Nessa época o acesso às armas já estava definido em lei. Ela não definia, porém, a compra e posse de munição.

Em 1891, a administração suíça de equipamento militar decidiu entregar aos cidadãos munição de bolso. Isso possibilitava à infantaria “reagir fortemente a um ataque-surpresa de forças inimigas e possibilitar reação armada já antes do encontro das tropas, nos locais de concentração”.

Por traz dessa definição estava o medo de que o soldado suíço não fosse operativo nos primeiros momentos do conflito. Sabe-se que a mobilização do exército, que é estruturado como milícia (o cidadão é soldado e civil, ao mesmo tempo), dura pelo menos três dias.

Casos de abuso

O que possibilitou aos suíços guardarem suas armas nos armários foi, segundo o pesquisador Peter Hug, as associações de tiro do século XIX. Subvencionadas em larga escala pelo exército suíço, elas eram consideradas “correias de transmissão centrais até os setores mais profundos da sociedade suíça”. Graças a elas, as armas estariam permanentemente nas residências de cada um dos cidadãos-soldados.

Essa situação, até hoje única na Europa, pode provocar abusos. Armas e munição em farta distribuição nos lares suíços são os instrumentos de muitas tragédias domésticas. Suas razões são o objeto de conflito entre aqueles que defendem essa política liberal e os grupos pró-desarmamento.

Para aqueles que defendem o conceito da Suíça armada, os acidentes provocados por armas militares são casos isolados. Eles argumentam também que, com muito mais freqüência, os automóveis nas ruas são mais utilizados como armas mortais do que a pistola ou fuzil do exército. Porém ninguém pensa em proibir o uso de veículos.

Martin Kilias, professor criminologista em Lausanne, tornou-se conhecido na Suíça como um crítico ardente da política liberal de armas na Suíça.

Seus alertas freqüentes para os perigos do armamento geral da população se confirmaram num dia de outono em 2001. Um suíço de 57 anos enlouqueceu e invadiu o parlamento cantonal na pequena cidade de Zug, provocando uma carnificina, que terminou com a morte de 14 deputados e com o suicídio do franco-atirador. No arsenal encontrado, estavam também diversas armas regulares das forças armadas suíças, como as encontradas na casa de qualquer suíço.

Tradição continua

As atuais críticas não vão acabar com a antiga tradição. O jovem suíço em idade de serviço militar ainda tem o direito de levar seu fuzil para casa depois da formação básica e cursos de repetição, que ocorrem todos os anos.

Depois do cidadão ter completado trinta anos, quando a prestação do serviço militar obrigatório termina, ele recebe gratuitamente suas armas. Elas passam então a ser de sua propriedade, como explica o Departamento Federal da Defesa, Proteção Civil e Esporte, como se chama o órgão público encarregado do exército na Suíça.

A única diferença está apenas num detalhe técnico: o fuzil modelo 57 pode ser distribuído gratuitamente, mas o modelo 90 permanece propriedade do exército, apesar de continuar em poder do soldado reservista. Essa arma automática é a mais moderna encontrada nas forças armadas do país.

Para o historiador Peter Hug, o porte geral de armas é uma tradição suíça que deve se modificar nos próximos anos. “Talvez os valores atuais se transformem e as armas deixarão de ser um símbolo de identidade nacional”.

swissinfo, Urs Maurer
traduzido por Alexander Thoele

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