Brasileira conta como foi vítima da violência conjugal
A carioca Lucia Ruch foi casada durante 12 anos com um marido suíço e violento.
Seus 15 anos de sofrimento estão contados em seu livro “Le Piège” (A Armadilha), único testemunho do gênero na Suíça. Hoje, Lucia está bem e é militante da causa das mulheres violentadas. 8 de março é o Dia Internacional da Mulher.
Hoje, a carioca Lucia Ruch é uma mulher serena e capaz de analisar o turbilhão em que viveu durante muitos anos. Ela levou inclusive um certo tempo para reassumir a própria identidade, já que “Le Piège” foi publicado com o pseudônimo de Julia Rios. Depois do livro, Julia Rios desapareceu e Lucia Ruch ressurgiu.
Como uma pessoa como a sra., doutora em Biologia, cai numa armadilha dessas?
É um engano pensar que a violência conjugal atinge somente as mulheres pobres e sem formação. Ela existe em todos os níveis sociais e profissionais. Quando meu livro foi publicado, recebi testemunhos de professoras universitárias que enfrentavam o mesmo problema há anos. E é geralmente mais fácil para as pessoas mais simples sairem dessa situação porque a pressão social é menor. Certa vez, num dos acessos de violência de meu marido, chamei a polícia. Eles chegaram, olharam a bela casa de dois andares e perguntaram o que estava acontecendo. Meu marido respondeu que eu havia perdido uma criança num aborto natural (o que era verdade) estava deprimida e tinha perdido a razão. Os policiais acreditaram nele e foram embora. A sociedade acha que a violência é coisa de pobre mas não é verdade.
Mas não dá para perceber desde o início que um homem é violento?
Os homens violentos são atores perfeitos e manipulam as pessoas o tempo todo. No início, como foi o meu caso, tudo é muito sutil. Eles começam fazendo observações sobre detalhes da vida cotidiana como a roupa, a comida, os cabelos, os amigos etc. Sem você perceber, começa a se comportar exatamente como ele quer. Você está querendo construir uma relação amorosa com a pessoa e ela está querendo te dominar, de possuir. Hoje, com o recuo, eu sei que acontece assim mas ná época não percebia.
As outras pessoas à sua volta também não percebem?
Esses homens são inteligentes e agradáveis com todo mundo, em sociedade. Eles precisam ser assim para manter as aparências e não serem questionados ou contestados. Eles não admitem qualquer forma de questionamento e, para evitar isso, são muito agradáveis. Nos bares, restaurantes, clubes etc. o casal parece viver normalmente e os amigos raramente se dão conta dos graves problemas e carências afetivas desses homens. Eles são realmente maquiavélicos.
E quando surge a violência física?
O choque é tão grande que você nem entende o que está acontecendo. É como se você, de repente, estivesse num combate em plena guerra, com tiros de todo lado sem saber o que fazer nem para onde ir. Depois que começa, a violência física se repete e vai aumentando de intensidade. Mesmo depois de separada, eu fui agredida a pontapés na rua, em frente do meu prédio e na frente do meu filho. A cena está no livro.
Por que as mulheres não se separam nesse momento?
Por várias razões. As mulheres se casam e querem manter o casamento. Têm filhos e não querem que eles fiquem sem o pai. Têm um certo complexo de culpa porque escolheram os maridos, se enganaram mas não querem admitir e, sobretudo, acreditam que o marido pode melhorar. Outro fator importante é que as mulheres se fecham no sofrimento. Não é a atitude certa mas ocorre sempre e é compreensível. Elas têm medo de falar, vergonha de falar e acham que ninguém vai acreditar porque o marido mantém uma aparência agradável em sociedade.
Os maridos não mudam?
Elas chegam a ter a ilusão que sim porque a violência física é cíclica, não é permanente. O objetivo do homem violento é dominar, possuir, e não romper a relação. Ele nunca admite a ruptura, a separação, o divórcio. Então, alterna pancadaria com presentes, jóias, jantares em bons restaurantes etc. A mulher então volta a acreditar que ele tem um fundo bom e que vai mudar, até que tudo recomeça outra vez.
Sempre tem alguma forma de chantagem?
A chantagem emocional é outra constante no comportamento do homem violento. Os presentes de que falei há pouco é uma forma de chantagem quando ele percebe que a mulher pode se revoltar. É muito comum também eles se colocarem como vítimas. Aí você se depara com um homem de 1 m 90 de altura chorando como criança na tua frente. Isso geralmente sensibiliza qualquer mulher. A chantagem máxima é a ameaça de suicídio. Um homem que que vai se suicidar por uma mulher é o “máximo”. Só que é puro teatro! Não demora muito, volta a violência verbal, física e sexual.
Os amigos e parentes dessas pessoas não percebem esse jogo?
Ás vezes sim e, quando isso acontece, se afastam. Mas a pessoa violenta começa a dizer para os demais que foi ele que se afastou, que encontrou mil defeitos naquelas pessoas etc. Certa vez, fiz uma curta viagem com meu filho e meu marido disse aos amigos que eu estava internada num hospital psiquiátrico. Quano voltei, ninguém me disse nada porque acreditaram nele. Fui saber disso anos depois, por acaso. Essas pessoas nunca têm os mesmos amigos durante muito tempo porque têm pavor de serem descobertas, desmascaradas. Então é preciso renovar amizades para recomeçar o jogo da manipulação.
Quando foi que a sra. deu um basta?
Tomei a decisão quando saí três semanas de férias sózinha com meu filho, na Tunísia. Em 12 anos de casamento, nunca tinha saido. Esses homens estão sempre colados para controlar tudo. Percebi que estava à beira de um abismo e que só tinha três saídas: continuar e morrer, romper e ser morta ou romper e ter uma chance de viver. Daí para a separação de fato, o divórcio laborioso na Justiça, etc. foram outros quatro anos e meio.
Esse combate vale a pena?
A violência conjugal é um problema de sociedade. Ela está tomando consciência disso e as coisas estão melhorando. As leis começam a proteger as vítimas e multiplicam-se associações de ajuda às mulheres mas também aos homens violentos. Eles são pessoas doentes que precisam ser tratadas.
Por quê escrever um livro?
Esse livro foi um acerto de contas comigo mesmo e com a sociedade, uma espécie de limpeza geral. Foi também uma oportunidade de ajudar os outros, sem sofrer e olhando a vida para a frente. Transformei minha história numa forma de luta e atuo em associações como “Solidariedade das Mulheres” e a “Central da Igualdade”, órgão do Ministério suíço da Justiça. Também comecei a pintar. No início, meus quadros ainda refletiam pequenos traumatismos dessa época mas isso também já passou.
Claudinê Gonçalves, swissinfo.ch
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