Dick Marty: “a justiça não pode ser em sentido único”
O parlamentar suíço comentou em Paris seu relatório sobre tráfico de órgãos no Kosovo entre 1999-2000. Início de um "trabalho indispensável com a verdade".
“Estou chocado. Muitos organismos internacionais sabiam dos fatos. Mas preferiram ficar em silêncio por razões de conveniência política”.
Em Paris, o suíço Dick Marty defendeu, numa conferência de imprensa, seu relatório sobre tráfico de órgãos no Kosovo nos anos 1999-2000.
Um relatório “explosivo”. Entre junho de 1999 e final de 2000, líderes do Kosovo ligados ao partido UÇK, se envolveram em um tráfico de órgãos retirados de prisioneiros, a maioria sérvios.
Dick Marty, que havia sido responsável pelo relatório do Conselho da Europa sobre as prisões secretas da CIA na Europa, foi longe em suas investigações.
Em seu texto, ele aponta a existência de vários centros de detenção, todos localizados na Albânia: Cahan, Rripe, Burrel, Kukës e especialmente Fushës-Krujë. “Os testemunhos que sustentam nossas conclusões sugerem de forma credível e coerente uma metodologia para a matança de todos os presos, geralmente por uma bala na cabeça, um pouco antes de serem operados para a extração de um ou vários órgãos. Descobrimos que se tratava principalmente de um tráfico de rins retirados dos cadáveres”.
Provas?
Por que tal relatório?, Por que justamente agora, pouco antes do início das negociações entre Sérvia e Kosovo? Onde estão as provas que incriminam de tal forma o primeiro-ministro do Kosovo, Hashim Thaçi, acusado de ter comandado o crime organizado no Kosovo?
“Meu trabalho não é um inquérito no sentido próprio, não sou o Judiciário, comentou o senador que preparou o texto para a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa. Tentei estabelecer certos fatos. Uma tarefa delicada: muitos dos meus interlocutores tinham medo de falar”.
Foi essa lei do silêncio que mais chocou Dick Marty. No Kosovo, é claro, mas também nas instâncias internacionais. “Sim, nós sabíamos”, foi o que me disseram várias pessoas que, no entanto, preferiram calar a verdade. Ora, não se pode construir um país sem trabalhar com a verdade”.
Melhor fechar os olhos
O ex procurador suíço lembra o contexto do período. 1999. A OTAN bombardeia as posições sérvias no Kosovo. “Os países ocidentais que se engajaram no Kosovo preferem evitar o combate de campo, recorrendo a ataques aéreos, o UÇK se tornando um aliado indispensável para as operações terrestres, diz Dick Marty. Desse modo, preferiram ignorar os crimes de guerra cometidos pelo aliado em troca da estabilidade imediata”.
Esses “crimes de guerra” não fazem parte das acusações no Tribunal Penal Internacional para a Antiga Iugoslávia (TPII), que trata dos acontecimentos anteriores a junho de 1999, ou seja, o período da guerra propriamente dito. Outro problema apontado por Dick Marty: os fatos descritos teriam ocorridos em grande parte no território albanês, isto é, fora da competência do Tribunal.
Portanto, quem tem competência para investigar? “O poder judiciário do Kosovo. E também a Eulex, a missão europeia de justiça e polícia no Kosovo”. A Eulex, que obviamente não está convencida do relatório de Marty. A Missão exigiu “provas” do tráfico de órgãos de prisioneiros. Uma investigação anterior da UE sobre as denúncias de tráfico de órgãos no norte da Albânia não deu em nada, comentou Karin Limdal, porta-voz da Eulex.
Tudo começou com o livro de Carla del Ponte
Por que o relatório está sendo apresentado só agora, poucos dias depois da vitória do primeiro-ministro Hashim Thaçi nas eleições parlamentares? “Foi o Conselho da Europa que me encarregou desta missão”, afirma Dick Marty.
Tudo começou com o livro da suíça Carla Del Ponte sobre seu trabalho como procuradora do TPII. Foi ela quem revelou o tráfico de órgãos no Kosovo. 17 parlamentares da Assembleia do Conselho da Europa, liderados pelo russo Konstantin Kosachev, propuseram, em seguida, aprofundar a questão.
Dick Marty, marionete dos russos? “No meu relatório sobre o Cáucaso do Norte eu não fui muito complacente com a Rússia”, respondeu. E mais: “perguntei a mim mesmo sobre a questão do impacto na situação política. Mas me pareceu justo mencionar os nomes no meu relatório. Nomes que já aparecem em muitos outros documentos”.
O Ministério das Relações Exteriores da Suíça (DFAE, na sigla em francês) observou que a Suíça “sempre apoiou os esforços para elucidar os diversos casos de desaparecimento de pessoas durante os conflitos na ex Iugoslávia“.
A Suíça convida os países a cooperar nas investigações e reunir todas as provas que esclareçam o destino dessas pessoas.
“As autoridades competentes – inclusive internacionais – devem aplicar agora as medidas legais necessárias“, indicou o DFAE.
A missão da União Europeia no Kosovo (EULEX), na qual participa a Suíça, já está realizando investigações sobre as denúncias de tratamento desumano.
Após a Segunda Guerra Mundial, a província do Kosovo é beneficiada de um estatuto autônomo. O estatuto é ancorado à Constituição da Federação Iugoslava em 1974.
Em 1989, o presidente sérvio Slobodan Milosevic revoga o estatuto de autonomia e envia o exército ao Kosovo para deter os protestos.
Em 1998, dezenas de milhares de kosovares abandonam suas casas após uma ofensiva por parte de Belgrado contra o Exército de Libertação do Kosovo (UCK).
Em 1999, a OTAN lança uma série de ataques aéreos contra a Sérvia para encerrar o conflito entre forças sérvias e separatistas albaneses. Depois de dois meses e meio de bombardeios, 50 mil soldados da OTAN são enviados ao Kosovo. A província é posta sob administração da ONU.
Em 2007, o líder separatista Hashim Thaci vence as eleições parlamentares e anuncia que a independência do Kosovo será proclamada em breve.
Em 17 de fevereiro de 2008 o parlamento do Kosovo proclama a independência. A Suíça a reconhece dez dias depois.
Adaptação: Fernando Hirschy
Certificação JTI para a SWI swissinfo.ch
Mostrar mais: Certificação JTI para a SWI swissinfo.ch
Veja aqui uma visão geral dos debates em curso com os nossos jornalistas. Junte-se a nós!
Se quiser iniciar uma conversa sobre um tema abordado neste artigo ou se quiser comunicar erros factuais, envie-nos um e-mail para portuguese@swissinfo.ch.