Liechtenstein comemora 200 anos de soberania
O minúsculo principado encravado entre a Suíça e a Áustria luta contra a imagem de paraíso da lavagem de dinheiro. O príncipe regente também interpreta democracia à sua maneira. Mas o povo está feliz.
Na comemoração dos 200 anos de soberania, um dos países mais ricos do mundo mostra que o segredo é saber negociar.
Estava fazendo calor nesse dia de verão em Vaduz. Nas ruas eram feitos os últimos preparativos para a festa que começava às cinco da tarde. As bandeiras eram penduradas nas lojas de souvenirs, meninas montavam as barraquinhas de bebidas e grupos isolados de turistas japoneses, com suas inevitáveis máquinas fotográficas, se apressavam em registrar as impressões.
O cenário que a capital de Liechtenstein oferece é deslumbrante. A 455 metros acima do nível do mar e encravada num vale de altas montanhas cortado pelo Reno, ela ainda mantém um traçado medieval. Nas ruas estreitas, as casas antigas, palácios barrocos e chalés alpinos se misturam com vinhedos e igrejas, tornando o conjunto ainda mais singular com um número surpreendentemente grande e suspeito, para essa cidade do tamanho de um vilarejo, de modernos prédios de vidro e aço dos bancos e instituições financeiras que fazem sua fama de centro financeiro em escala mundial.
O único problema para os turistas é não saber alemão ou inglês. Pois é nesses idiomas que estão escritos os cartazes de “Visita proibida” espalhados no caminho que sobe a montanha em direção ao principal símbolo de Vaduz: um grande castelo construído no penhasco sobre a cidade. Ele está em reformas, mas uma pesada corrente e agentes de segurança bloqueiam sua entrada. Os moradores, as famílias do príncipe Hans-Adam II e seu filho, o príncipe herdeiro Alois, prezam pela discrição.
Porém, nesse dia de festa, a família nobre abriu uma exceção e foi se misturar ao povo. Às cinco da tarde eles chegaram na Städtle, rua principal de Vaduz e foram aplaudidos como merecem os monarcas. Ao sentar-se na tribuna de honra, lá já estavam convidados especiais como o presidente da Confederação Helvética, Moritz Leuenberger, o presidente austríaco Heinz Fischer, o presidente do Senado alemão, Peter Harry Carstensen e muitos cidadãos de terno e gravata, com ares de banqueiro.
Desfile popular
Em 12 de julho, Liechtenstein comemorou 200 anos de soberania. Além de convidar chefes de Estado e personalidades, o comitê de comemoração ainda organizou um desfile com a participação dos habitantes das onze comunas do principado. O divertido cortejo mostrou um pouco da história e cultura do país através de fantasias, carros alegóricos e pequenas peças de teatro. Pitoresco no evento foi o contraste entre os figurantes vestidos de camponeses e alegria contida dos príncipes. Um jornalista alemão chegou a comentar que sentia-se como na Idade Média.
O cicerone da festa foi o príncipe herdeiro Alois. Desde quando seu pai, príncipe Hans-Adam II, se retirou do poder em agosto de 2004, ele assumiu o cargo de chefe de Estado. Aos 38 anos, alto, cabelos impecavelmente penteados, o porte marcial vem da formação recebida na Academia Real Militar da Grã-Bretanha, em Sandhurst. Já a polidez no discurso se explica pelos estudos de direito em Salzburg, na Áustria.
Como muitos nobres europeus, Alois casou com outra pessoa de sangue azul: a princesa Sophie, trineta de Ludwig III, o último rei da Baviera. Perguntado por um jornalista, ele respondeu que não teve um matrimônio arranjado, mas sim casou com a alemã por uma questão de “amizade”. Loira e alta, ela permaneceu sentada ao lado dele, trajando um conjunto no estilo Chanel e sorrindo o tempo todo para os presentes no desfile.
País machista
O sexo frágil é um tema a parte em Liechtenstein. O direito do voto para as mulheres só foi adotado em 1984. Também na monarquia elas não têm muito a dizer. Apenas os sucessores masculinos da família do príncipe podem ocupar o trono. “Qualquer coisa diferente seria muito complicado, pois o papel de mãe não pode ser partilhado”, afirmou o príncipe durante uma entrevista ao jornal alemão Süddeutsche Zeitung.
O comentário levemente machista de Alois parece não incomodar sua esposa. A princesa Sophie já tem trabalho suficiente com os quatro filhos e grande número de parentes nobres espalhados pela Europa. Ela sabe que o príncipe já gasta grande parte do seu dia administrando a fortuna da família, avaliada em cinco bilhões de euros. Segundo especialistas, apenas a coleção de arte, que inclui quadros de Picasso, Rubens e outros mestres da arte, vale três bilhões de euros.
Dinheiro a parte, importante para os príncipes é o protocolo. No pódio frente ao palanque dos convidados, no início da cerimonia de comemoração, o que mais o Alois repetiu no seu discurso foi a palavra “Soberania”.
Esse é um termo caro para Liechtenstein que, com uma área de 160 quilômetros quadrados e apenas 34.294 habitantes, sempre correu o risco de ser aglutinado por outros países maiores ou não ser levado à sério pela comunidade internacional.
Um exemplo ocorreu quando o pequeno país alpino quis aderir à Sociedade das Nações, também conhecida por Liga das Nações, a organização internacional criada pelo Tratado de Versalhes e predecessor da ONU. O pedido foi recusado em 17 de dezembro de 1920. Motivo: a maior parte dos delegados considerou que Liechtenstein era um país muito pequeno para ter uma atuação concreta.
Riqueza
A riqueza de Liechtenstein não salta aos olhos na primeira visita. Vaduz não tem estação de trem ou rodoviária. Sem carro, só é possível chegar no país de ônibus. O turista salta na frente da garagem dos Correios e logo vê um grande canteiros de obras. No local está sendo construído a nova sede do Parlamento.
Já á caminhada pelas ruas já possibilita ver alguns sinais da opulência. O moderno prédio do Museu de Arte Moderna, aberto em 2000, tem obras que poucos museus no mundo poderiam se dar ao luxo de expor. Praticamente não há pensões, mas sim um grande número de hotéis cinco estrelas. No centro da cidade é grande a concentração de lojas especializadas em artigos de luxo. O próprio príncipe reconhece que o país vive uma fase de fartura.
“Nosso sucesso econômico não seria possível sem muita sorte e ajuda de Deus. Porém a nossa história é também resultado de sábias decisões tomadas no tempo correto e da coragem de seguir o caminho próprio”, disse Alois durante o seu discurso.
Liechtenstein é pequeno, mas ocupa há décadas os primeiros lugares lista dos países mais ricos do mundo. Seu quadro social é de dar inveja até às grandes potências. O PIB em 2001 (último ano publicado) foi de 4,2 bilhões de francos, o que dá a fantástica soma de 120 mil francos (80 mil euros) por habitante.
O que era um país agrário pobre no começo do século, se transformou hoje num centro financeiro e industrial, onde existe uma empresa para cada onze habitantes. “Isso mostra o esforço que fazemos, visto nos horários de trabalho mais longos da Europa”, declarou Alois. No total, o principado tem 70 mil empresas registradas, sendo que apenas três mil são nacionais. Os rumores de que as 67 mil restantes seriam apenas empresas de “caixa-postal” não são respondidos pelas autoridades. Mas reconhecidamente Liechtenstein é um país atraente, do ponto de vista fiscal.
Uma grande parte da fortuna da família von und zu Liechtenstein vem da empresa “LGT Group”. O maior banco de Liechtenstein administra 45 bilhões de francos (30 bilhões de euros) da fortuna de clientes. Além disso, como indica o próprio site, a Casa Real de Liechtenstein ainda é proprietária de outros negócios como imobiliárias, florestas, fazendas, vinhedos, produtoras de plantas e até mesmo de arroz.
O LGT Group e os outros 14 bancos sediados no pequeno país cresceram ainda mais em 2005. Como publicou o governo em julho, as instituições aumentaram seu faturamento em 11,6% para 38,18 bilhões de francos. No total, essas instituições administram uma fortuna avaliada em 128,7 bilhões de francos (um crescimento de 20,3% em relação a 2004). O lucro líquido foi de 742,9 milhões de francos (+ 75,4%), quebrando o recorde de 2000 (549,1 milhões).
Avalanche de dinheiro
O dinheiro não para de chegar no pequeno país alpino. O crescimento avassalador da fortuna acumulada chega a estranhar seus próprio habitantes. “Quando tanto dinheiro chega de uma só vez num país, isso não pode ser bom para a nossa reputação”, disse constrangido Michael Lauber, presidente da Federação de Bancos de Liechtenstein, durante uma entrevista dada recentemente ao jornal austríaco Wiener Zeitung.
A desconfiança é grande. No início de 2000, o serviço secreto alemão já havia denunciado Liechtenstein como paraíso da lavagem de dinheiro. Poucos meses depois, um parlamentar, quatro agentes fiduciários e o irmão do chefe de governo foram presos por suspeita de atividades financeiras ilícitas. A OECD chegou a colocar o país numa “lista negra” dos países pouco cooperativos no esclarecimento de casos de lavagem de dinheiro. Até mesmo de “dinheiro do terror” circulando nos bancos do país chegou-se a falar.
Depois do choque de 2000, o governo e o monarca resolveram limpar a praça. Para isso foi criado um órgão especial de combate aos crimes financeiros e, desde 2005, um órgão de fiscalização dos bancos.
O segredo bancário continua existindo. Porém, a nova lei contra lavagem de dinheiro impede que sejam abertas contas sem explicar a origem dos recursos. O segredo bancário também pode ser cancelado em caso de processos penais. Porém sonegação fiscal ocorrida em outros países continua não ser considerado um crime, o que provoca grandes conflitos com a União Européia ao negar fornecer informações sobre contas dos seus cidadãos em Liechtenstein.
O país tem indústria
O que poucas pessoas sabem, é que Liechtenstein não é apenas paraíso fiscal e centro financeiro: lá existe indústria. “Menos de um terço do nosso PIB é gerado pelo setor financeiro. Mais importante que ele é a nossa indústria, que responde por 40% do PIB”, reforça o chefe de governo Otmar Hasler ao ser questionado pelo jornalista.
As empresas, atuantes em áreas de ponta como eletrônica fina, nanotecnologia e outros, contribuem para o excelente quadro social do país: a taxa de desemprego atual é de apenas 2,3%, uma das menores da Europa. O governo anuncia que apenas 698 pessoas estão procurando trabalho, o menor índice desde novembro de 2004. Quem mais aproveita da boa situação econômica do principado, são os países vizinhos. Cerca de 13.900 empregados, dos 29.500 empregos registrados, são pessoas que vem de fora. Destes, somente seis mil vêm diariamente da Áustria para trabalhar em Liechtenstein.
A grande vantagem de ter um emprego no principado é o baixo nível de impostos. Os salários são taxados em apenas 17%, enquanto em países vizinhos como a Áustria, essa taxa pode elevar-se até 50%.
Um pouco de história
Com a adesão à Confederação do Reno, uma liga de principados alemães, em 12 de julho de 1806, Liechtenstein se transformou de fato num estado soberano. Porém Liechtenstein já existia antes: foi o imperador Carlos VI da Alemanha que deu-lhe em 1719 o status de principado do Império através da fusão do domínio de Schellenberg e do condado de Vaduz. Esses dois território haviam sido comprados em 1699 e 1712 pela família austríaca Liechtenstein com o objetivo de ganhar um assento e direito à voto no conselho do Sacro Império Romano-Germânico.
Durante as primeiras guerras napoleônicas de 1799, Liechtenstein foi ocupada pelos franceses e depois pela Áustria. Com a dissolução do Sacro Império Romano-Germânico, Napoleão convidou 16 principados do seu antigo território para formarem, como países soberanos, a Confederação do Reno. O imperador francês seria seu “protetor” e teria em troca tropas disponibilizadas pelos países.
Em 1813, quando Napoleão perdeu na chamada Batalha dos Povos em Leipzig, a Confederação do Reno foi dissolvida. Para substituí-la, o Congresso de Viena decidiu criar a Confederação Alemã, do qual fariam parte 41 Estados: 37 principados, incluindo Liechtenstein, e 4 cidades livres.
A Confederação foi dissolvida em 1866 ao final da guerra de Sete Semanas, Essa foi a última guerra na qual Liechtenstein combateu. O país permaneceu neutro desde então, e não possui forças armadas desde 1868. Em 1862, o príncipe Johann II adotou uma constituição monárquica, quando o primeiro parlamento foi eleito.
Depois da I Guerra Mundial, Liechtenstein adotou o franco suíço como moeda corrente e assinou, em 1923, um pacto aduaneiro com o país dos Alpes. Com a constituição de 1921, o Principado adotou o regime de monarquia constitucional com forma de governo parlamentar democrática. Até então, os príncipes viviam em Viena.
O primeiro príncipe a viver de fato em Vaduz foi Franz Josef II e isso só ocorreu a partir de 1938. Durante a Segunda Guerra Mundial, Liechtenstein e a Suíça mantiveram a neutralidade e foram poupados do conflito. Depois, graças aos laços econômicos com a Suíça e à política de baixos impostos, Liechtenstein aproveitou-se da retomada econômica e viveu um crescimento econômico sem precedentes. Em 1990, o país foi aceito como membro da ONU.
Grave crise política
Em 28 de outubro de 1992, o país viveu uma sua maior crise política. Foi quando o príncipe Hans-Adam II exigiu a realização de um plebiscito popular sobre a adesão de Liechtenstein ao Espaço Econômico Europeu antes da Suíça para garantir o seu sucesso. O governo e o parlamento eram contra devido à proximidade do país com a Suíça e por saber a oposição geral no país dos Alpes ao acordo. Hans-Adam II ameaçou dissolver o governo e o parlamento e governar em estado de emergência. A pressão popular das ruas acabou obrigando o chefe de Estado a ceder e o plebiscito foi marcado para ocorrer depois das votações na Suíça. A crise abriu espaço para um grande debate sobre a constituição e a forma de governo em Liechtenstein.
Desde 1. de maio de 1995, o país é membro do Espaço Econômico Europeu, enquanto que este foi recusado pelos suíços. A adesão é considerada até hoje como um importante fator para o progresso econômico de Liechtenstein, sobretudo como centro financeiro. O país goza das vantagens da associação com o espaço europeu e, ao mesmo tempo, da união aduaneira com a Suíça, mantendo ao mesmo tempo o segredo bancário e outras vantagens fiscais que aumentam sua atratividade.
Em 2003, os eleitores de Liechtenstein aprovaram, depois de muita discussão e polêmica, a nova Constituição. Para os opositores, ela reforça ainda mais a o poder da monarquia, pois transfere importantes atribuições do Parlamento, do Supremo Tribunal e do governo para o príncipe.
Em 15 de agosto de 2004, o príncipe Hans Adam II nomeou seu filho Alois von Liechtenstein como sucessor. Apesar deste já estar exercendo funções executivas, ele receberá apenas o título de príncipe com a morte do pai.
swissinfo, Alexander Thoele
– Liechtenstein é um minúsculo principado do centro da Europa, encravado nos Alpes, entre a Áustria, a leste, e a Suíça a oeste. Sua capital é Vaduz.
– A união aduaneira e monetária com a Suíça foi firmada em 1924.
– PIB em 2001 (último ano publicado): 4,2 bilhões de francos
– Liechtenstein tem uma área de 160 quilômetros quadrados e apenas 34.294 habitantes.
1806 – Estabelecida sua soberania (torna-se independente)
1868 – O Exército de Liechtenstein é abolido
1921 – A nova constituição é promulgada
1924 – Firma tratado com a Suíça e introduz em sua economia o franco suíço
1938 – Francisco José II é coroado príncipe
1970 – A vitória eleitoral da União Patriótica (VU) põe fim a 42 anos de domínio do Partido dos Cidadãos Progressistas de Liechtenstein (FBPL).
1978 – Adesão ao Conselho da Europa
1989 – Hans-Adam II assume o trono
1990 – Adesão à ONU
1991 – Torna-se membro da Associação Européia de Livre Comércio (EFTA)
1995 – Adesão à OMC (Organização Mundial de Comércio)
1995 – Adesão Espaço Econômico Europeu (EEE)
2003 – Liechtenstein recebe uma nova constituição, aprovada em plebiscito popular.
2004 – O príncipe Hans Adam II transmite o poder ao príncipe regente Alois von und zu Liechtenstein.
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