Por que a Suíça ainda é o país das rodovias
Diante das crescentes necessidades de mobilidade da população, algumas rodovias suíças estão à beira da saturação. Cerca de 50 mil horas foram perdidas em engarrafamentos no ano passado. Mas as raízes do problema não devem ser buscadas apenas na infraestrutura, segundo especialistas.
Os eleitores suíços votam em 24 de novembro de 2024Link externo sobre quatro diferentes questões, dentre elas sobre o maior projeto rodoviário das últimas décadas.
As autoridades pretendem alargar vários trechos existentes a fim de eliminar gargalos localizados principalmente na “A1”, a rodovia mais longa que atravessa o país de oeste a leste. O projeto é criticado pelos defensores de uma mobilidade mais sustentável.
As questões do referendo, assim como os pontos de vista dos campos a favor e contra o projeto, serão detalhadas aqui.
Problemas de congestionamento e o futuro da mobilidade são questões comuns a muitos países, por isso queremos situar a situação suíça em um contexto internacional.
Vítimas de seu próprio sucesso, as rodovias suíças? Com exceção de uma clara diminuição durante a pandemia, o número de veículos que as utilizam não para de crescer.
Em sua análise anual do tráfegoLink externo nas estradas nacionais (definição no quadro), o Departamento Federal de Estradas (OFROU, na sigla em francês) indica que quase 30 bilhões de quilômetros foram percorridos na rede no ano passado, um aumento de 1,5% em comparação a 2022 – e mais de 130% desde 1990. Quase metade do tráfego passa por esses grandes eixos, embora eles representem apenas 3% de toda a rede rodoviária.
Na Suíça, um estado federal, a responsabilidade pelas infraestruturas rodoviárias é compartilhada entre a Confederação, os cantões e as comunas.
O governo federal gere as estradas nacionais, ou seja, os principais eixos que apresentam interesse para o país. Essas estradas nacionais são em sua maioria rodovias (com 4 faixas ou mais) ou semi-rodovias (vias rápidas com 2 ou 3 faixas), que conectam as diferentes regiões entre si e a Suíça ao restante da Europa, e servem também como rotas que contornam áreas habitadas.
Atualmente, a Suíça conta com um pouco mais de 2.250 km de estradas nacionais, dos quais 1.550 quilômetrosLink externo são rodovias e 440 quilômetros são semi-rodovias.
O crescimento demográfico é apenas parte da explicação, já que o tráfego nas rodovias aumentou muito mais do que a população nas últimas três décadas. “A atividade econômica em crescimento também explica [esse aumento]”, aponta Lorenzo Quolantoni, responsável pela comunicação do Departamento Federal de Estradas (OFROU). “Por fim, a população viu crescerem suas necessidades de mobilidade, seja para lazer ou por motivos profissionais.”
Para Alexis Gumy, pesquisador associado ao LaboratórioLink externo de Sociologia Urbana da Escola Politécnica Federal de Lausanne (EPFL), o aumento do tráfego individual pode ser parcialmente atribuído a uma certa “dependência do deslocamento pendular”, ou seja, ao fato de as pessoas viverem em uma comuna diferente daquela em que trabalham, consequência, entre outros fatores, da crise habitacional que se amplia nas grandes cidades.
O pesquisador acrescenta que os modos de vida mudaram desde a pandemia de Covid-19, o que contribuiu para aumentar o tráfego rodoviário: o uso de entregas em domicílio, que explodiu durante esse período, se firmou nos hábitos da população; entre 2019 e 2023, por exemplo, o faturamentoLink externo do e-commerce na Suíça aumentou mais de 40%Link externo. Ao mesmo tempo, o trabalho remoto é hoje menos praticado do que era durante a crise sanitária.
Engarrafamentos recordes
Essa forte circulação tem como corolário problemas de congestionamento que aumentam exponencialmente. Em 2023, o tempo gasto em congestionamentos aumentou 22% em relação ao ano anterior, chegando a quase 49 mil horas, um recorde segundo o OFROU.
A maior parte dos engarrafamentos não resulta de acidentes ou obras, mas sim de tráfego sobrecarregado, e a duração total dos congestionamentos está crescendo mais rápido que o volume do tráfego rodoviário. Para o OFROU, essa é a prova de que “a rede atingiu a saturação”. “Qualquer pequena perturbação tem grandes consequências na fluidez do tráfego”, sublinha o porta-voz Lorenzo Quolantoni.
Os engarrafamentos se concentram sobretudo ao redor das metrópoles e, particularmente, na rodovia A1. Com quase 400 quilômetros de extensão, ela liga Genebra à fronteira oriental da Suíça, passando pelas regiões metropolitanas de Lausanne, Berna e Zurique. A A2, que conecta a fronteira com a Alemanha, ao norte, à fronteira com a Itália, ao sul, também apresenta um ponto negro, especialmente porque passa pelo túnel de São Gotardo, onde regularmente se formam longos engarrafamentos, e já não apenas durante os períodos de férias.
Outros trechos amplamente usados por trabalhadores transfronteiriços, como a A24 no Ticino em direção à Itália, ou a A20 entre o cantão de Neuchâtel e a França, apresentam os congestionamentos mais “intensos”, isto é, com uma duração particularmente longa em comparação com a distância percorrida.
Embora tais problemas sejam comuns na maioria das áreas urbanas, várias aglomerações helvéticas estão no topo da última classificação das metrópoles mais congestionadaLink externos do mundo, estabelecida pela gigante de tecnologias GPS TomTom.
Segundo cálculosLink externo do Departamento Federal de Desenvolvimento Territorial (ARE), os engarrafamentos na Suíça resultaram em perdas de tempo de quase 73 milhões de horas, em 2019 com um impacto econômico estimado em cerca de 3 bilhões de francos suíços. Eles também têm “consequências nefastas para a população e para o meio ambiente (tráfego de desvio, maior risco de segurança, aumento da poluição sonora e de emissões de gases etc.)”, assinala Lorenzo Quolantoni, da OFROU.
Rede rodoviária “de luxo”
As rodovias europeias foram expandidas em mais de 70% em média nos últimos quinze anos, segundo a Comissão Econômica para a Europa das Nações Unidas (UNECELink externo), com grandes disparidades entre os países.
Planejada nos anos 1960 e implementada pouco a pouco, a rede rodoviária da Suíça foi prolongada em “apenas” 14% desde 2005. Atualmente, está “concluída em 98%”, indica Lorenzo Quolantoni, especificando que os projetos submetidos à votação em novembro próximo não visam a aumentar a extensão da rede, mas sim alargar certos trechos existentes.
Contudo, em relação à população ou à área do país, a malha rodoviária helvética é densa e, considerando a topografia montanhosa, atendeLink externo a todas as regiões e principais cidades, com mais de vinte trechos atravessando o país de leste a oeste e de norte a sul. A rede conta com cerca de 500 entroncamentos rodoviários, “um número bastante elevado”, que permite o acesso rápido à entrada mais próxima da rodovia e, assim, “aliviar os centros urbanos dos veículos”, acrescenta Quolantoni.
$Anastasios Kouvelas, diretor de engenharia de tráfego do InstitutoLink externo de Planejamento e Sistemas de Transporte da Escola Politécnica de Zurique (ETH Zurique), considera que “a capacidade rodoviária na Suíça é suficiente”. A boa qualidade da oferta e o fato de ter uma rodovia perto de casa estimulam as deslocações pendulares, observa Alexis Gumy, da EPFL. “Isso, forçosamente, não ajuda o tráfego rodoviário.”
A Suíça destina recursos significativos às suas rodovias. Em 2021, gastou mais de dois bilhões de francos suíços (dois bilhões de euros) em investimentosLink externo, o montante mais elevado entre os países da OCDELink externo para os quais há dados comparáveis. A Suíça também é um dos países que mais investiu em manutenção (mais de 300 milhões de francos).
“A infraestrutura rodoviária suíça apresenta um grande número de pontes, viadutos e túneis em comparação internacional”, explica o porta-voz da OFROU. “A rede de estradas nacionais é, portanto, muito complexa e necessita de constantes trabalhos de manutenção” – obras essas que também perturbam cada vez mais o tráfego.
Carro ainda é o preferido
A Suíça é conhecida como um dos países onde mais se utiliza o trem, e a participação do carro nos deslocamentos é inferior à média europeia. No entanto, ele continua sendo, de longe, o meio de transporte mais utilizado, especialmente para deslocamentos diários.
As residências sem carro são minoria: 80% dos laresLink externo possuem ao menos um veículo; a título de comparação, essa proporção é de 85% na França e de 62% na DinamarcaLink externo. O númeroLink externo de automóveis aumentou continuamente nas últimas décadas, alcançando hoje quase 4,8 milhões, o que corresponde a cerca de 540 veículos para cada 1.000 habitantes, um índice próximo da média europeiaLink externo.
Embora a Suíça não tenha uma tradição industrial automotiva, “o mito e a normatividade do veículo se mantêm”, observa Alexis Gumy, do Laboratório de Sociologia Urbana da EPFL. “Ele ainda é associado a uma forma de liberdade, e a ideia de que é um bem necessário para o sucesso econômico é fomentada”, analisa.
O carro continua sendo frequentemente percebido como o meio de transporte mais acessível, embora, na realidade, seja o mais caroLink externo, tanto para os usuários quanto para as comunidades, se considerados todos os custos.
“Mas é verdade que o uso das infraestruturas rodoviárias não é muito caro na Suíça em comparação com outros países”, assinala o pesquisador. A vinheta rodoviária suíça permite usar toda a rede sem limite durante um ano por 40 francos suíços, um valor inferiorLink externo ao cobrado em outros países que adotam um sistema de vinheta, ou em muitos outros que tributam de acordo com a distância percorrida.
Paralelamente, “a mobilidade sustentável é cara e nem toda a população tem condições de pagá-la”, observa Alexis Gumy. Em setembro, o órgão de vigilância de preços criticou o “grande abismoLink externo” entre o preço dos transportes públicos na Suíça, que praticamente dobrou desde a década de 1990, e o custo de possuir um carro, que permaneceu relativamente estável.
A questão também é ambiental, pois, embora as emissões de gases de efeito estufa provenientes do transporte rodoviário por habitante tenham diminuído nos últimos trinta anos na Suíça, elas ainda representam quase um terço das emissões totais, que o país se comprometeu a reduzir no âmbito dos Acordos de Paris.
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Aumentar a capacidade das rodovias, é a solução?
Tudo isso contribui para colocar cada vez mais carros nas estradas e agravar os engarrafamentos, que só poderão ser atenuados com “obras de alargamento direcionadas”, segundo as autoridades. Mas essa é realmente a solução? Muitos especialistas – como aqueles entrevistados pela swissinfo.ch – não acreditam nisso.
O oposto pode até ocorrer em alguns anos, de acordo com o princípio do “tráfego induzido”. Numerosos estudos realizados em diferentes metrópoles (sintetizados nesta revisão em francêsLink externo, datada de 2012 ou nestaLink externo, mais recente, em inglês) mostraram que um aumento da capacidade da rede efetivamente desafoga o trânsito, mas apenas a curto prazo – estamos falando de dois a cinco anos. Uma das razões é que a possibilidade de viajar com mais facilidade de carro tende a incentivar os usuários “latentes” a pegar a estrada.
“Em geral, após dez anos, retrocedemos a uma situação de congestionamento – mas com 40 mil veículos a mais, que é a capacidade de uma nova faixa rodoviária”, resume Alexis Gumy. Esse tráfego tende a transbordar para o restante da rede, o que pode criar gargalos em outros pontos, especialmente nas saídas de rodovias, acrescenta Anastasios Kouvelas.
O OFROU não contesta que o tráfego nas rodovias aumentará se os projetos de alargamento forem realizados. No entanto, isso não gerará um novo tráfego, explica Lorenzo Quolantoni, “apenas trará de volta às rodovias nacionais o fluxo de veículos” que a saturação atual empurra para a rede secundária.
O departamento assegura que “os alargamentos funcionam”, citando como exemplo o terceiro túnel de Gubrist (desvio ao norte de Zurique). Segundo o porta-voz, “o tráfego está mais fluido desde que [ele] entrou em operação em agosto de 2023”, ou seja, há pouco mais de um ano.
Os exemplos de alargamentos mais antigos são raros na Suíça. Pode-se, no entanto, citar o caso do túnel de Baregg, entre os cantões de Argóvia e Zurique: o gargalo de tráfego efetivamente desapareceu logo após seu alargamento em 2003, mas vinte anos depois ele voltou a figurar entre os principais pontos problemáticos da rede rodoviária.
Então, quais são soluções, uma vez que a demanda por mobilidade só aumentará no futuro? O especialista em otimização de infraestrutura rodoviária, Anastasios Kouvelas, acredita que seria possível explorar ainda mais as tecnologias inteligentes para “monitorar a infraestrutura e intervir de maneira dinâmica em caso de congestionamento”, especialmente abrindo o tráfego em pistas da direção oposta. A realocação do acostamento ou a adaptação dinâmica dos limites de velocidade já são práticas em alguns lugares da Suíça, mas de forma muito mais desenvolvida na Alemanha, segundo o pesquisador.
Outras opções envolvem atuar mais sobre a demanda, seja incentivando outras formas de transporte, especialmente coletivas (carona, transportes públicos), ou ainda por meio de incentivos ao tráfego em horários de menor movimento.
Para Alexis Gumy, os problemas de congestionamento não podem, de qualquer modo, ser resolvidos apenas com infraestrutura, pois “eles têm raízes estruturais e são sobretudo um sinal de que é hora de pensar em alternativas”. Ele conclui: “se a fluidez do tráfego voltar um dia, será porque fizemos grandes progressos em outras formas de mobilidade.”
Edição: Samuel Jaberg
Adaptação: Karleno Bocarro
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