A pandemia como um teste e uma chance para uma democracia mais inclusiva
A polarização, a desconfiança e as desigualdades, que se agravaram durante a pandemia de Covid-19, estão abalando as democracias. Especialistas, no entanto, dizem que a pandemia apenas expôs problemas fundamentais que já existiam há muito tempo na Suíça. A situação levou a novos apelos por um governo mais inclusivo.
“Durante a pandemia de Covid-19, muitas pessoas privilegiadas experimentaram, pela primeira vez, o que é perder seus empregos ou não poder se deslocar livremente”, observa Estefania Cuero, especialista em diversidade e inclusão e doutoranda na Universidade de Lucerna.
Essa é, contudo, a dura realidade que muitas pessoas em contextos migratórios ou com deficiências têm enfrentado há anos. “Grupos socialmente desfavorecidos têm sido excluídos na nossa democracia. Para eles, os privilégios dos outros e os altos padrões de vida significam exclusão”, diz ela.
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Cuero acredita que incluir grupos desprivilegiados é essencial para uma democracia justa, mas isso exige que pessoas privilegiadas dividam suas riquezas. Apesar disso, a especialista vê uma resistência a isso na Suíça.
Falta de representação
Sanija Ameti, copresidente da Operação Libero, uma organização de jovens que combatem o populismo e a exclusão na Suíça, concorda com Cuero. “Na Suíça, muitas pessoas perderam a confiança no governo porque não se veem representadas”. Ameti fala por experiência própria: a advogada nascida na Bósnia precisou fugir de seu país durante a guerra.
Todos parecem concordar que as consequências da pandemia foram prejudiciais, se não perigosas, para as democracias. Atualmente, a coesão e a solidariedade, dois importantes pilares de uma sociedade suíça diversificada, estão expondo fraturas que aumentaram nas últimas décadas.
Cuero, Ameti e outros especialistas concordam que a Suíça deve promover mais igualdade e tolerância. A inclusão de grupos menos privilegiados não é apenas uma coisa boa a se fazer, é imprescindível para cumprir os compromissos do país com os direitos humanos e a luta contra a discriminação.
De acordo com Cuero, para que haja mais inclusão na Suíça, não são necessárias novas leis, mas apenas uma mudança de perspectiva. “Nossos políticos devem basear as políticas nas necessidades dos mais marginalizados e desfavorecidos e demonstrar solidariedade para com eles. Trata-se de estar em pé de igualdade”.
Aumento das desigualdades
Cuero diz que o oposto aconteceu. Ao invés de mais inclusão, ela tem visto mais desigualdade na Suíça, bem como um aumento das declarações racistas e antissemitas durante a pandemia. “Se as pessoas sem cidadania suíça que recebem benefícios sociais, mesmo em tempos de severas restrições e instabilidade, tais como lockdowns, são denunciadas diretamente ao escritório de migração, como aconteceu em Lucerna, a desigualdade aumenta”, diz Cuero.
Ela considera inaceitável, por exemplo, que as autoridades suíças não destinem dinheiro para cobrir a tradução de informações políticas em línguas de sinais, considerando que, numa população de 8,6 milhões, 1,7 milhão de pessoas na Suíça têm deficiências, de acordo com a organização suíça Agile.
Experiência pessoal
Sanija Ameti, especialista suíça em direito internacional, conhece em primeira mão o impacto da retórica inflamada, da exclusão e da perseguição, que sua família experienciou quando fugiu da guerra na antiga Iugoslávia. Eles foram forçados a deixar seu lar na Bósnia, chegando à Suíça nos anos 90.
Embora sua vida não estivesse mais em risco, Ameti ainda sofria discriminação quando chegou ao país. “Ser excluída me motivou a me engajar na política suíça”, explica.
Atualmente, Ameti é a responsável pelas relações públicas na campanha para a Iniciativa Europeia, que tem como objetivo reintroduzir a Europa como pauta na Suíça após o governo ter rejeitado os planos para um acordo-quadro com a União Europeia este ano.
Sinais de alerta
Ameti vê a polarização e as divisões sociais como as maiores ameaças à democracia. “Uma das razões para a guerra na antiga Iugoslávia foi que muitas pessoas ignoraram os sinais de alerta ou não levaram o desenrolar das coisas suficientemente a sério”.
A perda de confiança no governo e em suas instituições é o que faz com que as pessoas fiquem especialmente suscetíveis à propaganda populista, afirma. Ameti propõe algumas maneiras de enfrentar isso: primeiro, ela acredita que metade dos parlamentares suíços deveria ser escolhida por sorteio; segundo, os estrangeiros, que constituem um quarto da população, deveriam ter o direito de votar localmente.
Ceticismo internacional
O cientista político de origem alemã Yascha Mounk está decepcionado com o quanto as democracias ficaram vulneráveis durante a pandemia de Covid-19. “Elas se saíram pior do que eu esperava”, diz o professor da Universidade de Harvard e autor de O povo contra a democracia: por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la.
“As democracias se tornaram mais polarizadas durante a pandemia. Alguns países mostraram um certo Schadenfreude em relação a outros governos e suas políticas, o que pode ser difícil de aguentar”. Mounk se refere aos políticos que criticaram governos de outros países por medidas pandêmicas que não foram eficazes.
Autoridades desonestas
Mounk também se preocupa com a crescente desconfiança das pessoas em relação às instituições governamentais e estatais. No entanto, ele não atribui tudo às fake news. Para o cientista político, grande parte da culpa está na forma como os governos e as autoridades se comunicaram com os eleitores durante a pandemia.
“Quando não havia máscaras disponíveis no início da pandemia, foi dito ao público que elas eram eficazes para os profissionais da saúde, mas que não impediam a propagação do vírus. Diante dessa desinformação, por que as pessoas deveriam acreditar agora que as vacinas funcionam? Os governos precisam ser transparentes e admitir seus erros”.
Mounk concorda que os problemas não surgiram apenas por causa da pandemia. Na verdade, tem havido tendências autoritárias cada vez maiores, bem como uma tendência, por parte dos governos, de restringir a liberdade e os direitos básicos.
Reduto antivacina
A Suíça está longe de se tornar um Estado autoritário. No entanto, o país, que tem uma forte tradição de pesquisa e inovação, tornou-se um reduto do ceticismo em relação à vacina na Europa. Embora as razões sejam variadas, os céticos estão unidos em sua profunda desconfiança em relação ao governo e ao parlamento, que são as principais instituições democráticas.
Os grupos antivacina suíços promoveram, com sucesso, dois referendos contrários à lei Covid-19, que está na base de muitas das medidas do governo contra o coronavírus.
Ofensiva democrática
Roger de Weck, especialista suíço em mídia, discorda das percepções bastante pessimistas de Cuero, Ameti e Mounk. “Eu sou um verdadeiro otimista. O movimento antiiluminista está em decadência em todo o mundo ocidental, como nos EUA, Alemanha, França, Itália e Suíça. Agora é o momento para a promoção ofensiva da democracia”, diz De Weck.
No entanto, isso exigiria que as sociedades democráticas levassem a sério a inclusão de todas as minorias. Concordando com Estefania Cuero, De Weck também acha que aqueles que são privilegiados desempenham um papel essencial nisso. “Devemos nos opor à liberdade de proteger nossos próprios privilégios para garantir a liberdade para todos”, diz De Weck, que é o ex-diretor geral da Sociedade Suíça de Radiodifusão e Televisão, empresa matriz da SWI swissinfo.ch.
As discussões e entrevistas deste artigo foram conduzidas durante o primeiro Fórum Internacional de ZofingenLink externo, coorganizado pela SWI swissinfo.ch, que aconteceu no outono de 2021. O evento avaliou o estado das democracias na era da Covid-19. Mais de 100 representantes das áreas de pesquisa, política, economia, mídia e sociedade civil participaram do fórum organizado pela Stiftung Demokratie SchweizLink externo.
Adaptação: Clarice Dominguez
Adaptação: Clarice Dominguez
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