Como a guerra na Ucrânia alimenta outras crises
Nesta quinta-feira, a ONU deve lançar seu Apelo Humanitário para 2023 – um pedido recorde de ajuda para angariar doações. Em 2022, aumentou a disparidade entre as demandas e os recursos recebidos pela maioria das agências do órgão. A guerra na Ucrânia é um dos fatores que levaram a essa situação, mas não o único.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) afirma estar enfrentando, em 2022, uma discrepância sem precedentes em termos de recursos, especialmente no que diz respeito a situações prolongadas de crise – aquelas que afetam uma parcela significativa da população de refugiados. O órgão já foi obrigado, por exemplo, a cortar serviços de apoio a refugiados e deslocados internos. Em seu “Relatório de SubfinanciamentoLink externo“, publicado em setembro último, foram destacados 12 países, nos quais as operações do Acnur não contam nem com 50% do financiamento necessário. Em fins de outubro, o órgão lançou um novo apelo em busca de doações, dizendo serem necessários pelo menos 700 milhões de dólares até o fim do ano. Caso contrário, “a próxima rodada de cortes será catastrófica para as pessoas necessitadas”.
As dificuldades de financiamento são também uma questão para outras agências da ONU. Um porta-voz do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (Enucah) afirma que, com a proximidade do fim do ano, os apelos por ajuda coordenados pela ONU resultaram, até o dia 22 de novembro, em apenas 46,7% das demandas de financiamento para o ano inteiro – um percentual baixo, se comparado aos 55% alcançados nos três anos anteriores.
“Isso faz obviamente soarem os alarmes, porque parece que estamos caminhando rumo a um subfinanciamento recorde, tendo em vista o montante global do qual precisamos”, diz Jens Laerke, porta-voz do Enucah, à swissinfo.ch. A questão, segundo ele, é que enquanto a discrepância entre demandas e recursos recebidos aumenta, o montante de fundos recebidos em dólares está de fato aumentando. “O problema é que os apelos continuam aumentando e os recursos recebidos também estão crescendo, mas não na mesma velocidade. Ou seja, a discrepância entre uma coisa e outra aumenta”, completa Laerke.
Entre os apelos humanitários do Enucah que resultaram, até o 4 de novembro último, em menos de 50% do volume necessário, estão, por exemplo, aqueles por países como Síria, Iêmen, Somália, Chade, República Democrática do Congo e Sudão, bem como os apelos para ajuda a refugiados da Síria e da Venezuela e a refugiados do povo Ruainga de Mianmar em Bangladesh. Apelos urgentes são lançados várias vezes ao ano, de acordo com as respectivas necessidades. O Enucah coordena os apelos por doações de recursos à ONU e suas agências de ajuda humanitária, exceto aqueles destinados ao Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Em sua maioria, os doadores são governos de países ocidentais, embora o número de doações privadas venha aumentando.
Cortes afetam refugiados
Diante do financiamento deficitário, o Acnur já foi obrigado a fazer cortes de orçamento. Uganda, por exemplo, é um dos países do mundo que mais acolhe refugiados, recebendo pessoas da República Democrática do Congo e do Sudão do Sul. Embora o país esteja enfrentando, no momento, um surto de contaminação pelo Ebola, o Acnur afirma não ter recursos suficientes para oferecer produtos de higiene, como por exemplo sabonetes, a fim de proteger os refugiados do vírus.
No Chade, país que acolhe refugiados do Sudão e da República Central Africana e tem seus próprios deslocados internos em função de conflitos e mudanças climáticas, o Acnur diz ter sido obrigado a cortar o abastecimento de água nos campos de deslocados internos em função da falta de combustível. No Líbano, país conhecido por acolher refugiados da Síria, a agência da ONU afirma que “70 mil famílias de refugiados vulneráveis não recebem mais ajuda da rede de segurança do Acnur”. Segundo representantes do órgão, caso os recursos para ajuda aos refugiados do Oriente Médio sejam cortados no próximo inverno na região, as famílias vulneráveis podem morrer por congelamento ou mesmo ser despejadas de suas casas devido à impossibilidade de pagar o aluguel.
“Sabemos que não costumamos receber o orçamento por completo, nunca o financiamento está totalmente assegurado”, diz Olga Sarrado, porta-voz do Acnur em Genebra. “A questão, este ano, é que os 700 milhões de dólares [soma necessária até o fim do ano] é realmente o mínimo para cobrir as necessidades básicas”.
Fator Ucrânia
Há várias causas por trás da crise de subfinanciamento de ajuda, entre elas os efeitos da Covid-19 e as mudanças climáticas, além dos atuais problemas econômicos de alguns países ocidentais. A guerra da Ucrânia, contudo, é também um fator importante, dizem especialistas da ONU.
A guerra provocada pela Rússia na Ucrânia aumentou o número de pessoas que foram obrigadas a se deslocar em todo o mundo, com milhões de refugiados ucranianos em outros países e milhões de deslocados internos. Em outubro último, a ONU registrou 7,6 milhões de refugiados ucranianos por toda a Europa, tendo a Polônia abrigado 1,5 milhões deles. As necessidades, porém, aumentaram em todo o mundo, diz Sarrado, pois prestar ajuda se tornou mais caro em função do “efeito dominó” da guerra da Ucrânia, que jogou os preços dos alimentos e de combustíveis nas alturas. O Fundo Monetário Internacional (FMI) aponta que, em 2023, a inflação global poderá crescer em torno de 6,6% nas economias desenvolvidas e 9,5% nos países em desenvolvimento.
O Acnur estima que o número de pessoas compulsoriamente deslocadas no mundo deverá girar em torno de 103 milhõesLink externo em meados do próximo ano – esse contingente inclui refugiados, requerentes de asilo e deslocados internos. Trata-se de um aumento de 13,6 milhões de pessoas (15%) em comparação com o fim de 2021 e do maior aumento desse percentual já ocorrido entre dois anos, segundo estatísticas do Acnur sobre deslocamento forçado.
A Ucrânia foi a principal razão de deslocamento forçado no mundo nos primeiros seis meses de 2022, mas houve também um aumento no número de refugiados da Venezuela, em sua maioria em fuga para a Colômbia e outros países latino-americanos. E o deslocamento forçado cresceu também em outras partes do mundo, especialmente na África e na Ásia.
Diante do aumento das necessidades, o Acnur fez, portanto, diversos apelos. “Recebemos o maior valor maior de recursos de todos os tempos, mas isso não supre as necessidades do momento”, diz Sarrado.
Crises prolongadas
O “Relatório de Subfinanciamento” do Acnur concentra-se em 12 países, nos quais há “financiamento deficitário crônico”: Bangladesh, Chade, Colômbia, República Democrática do Congo, Etiópia, Iraque, Jordânia, Líbano, Sudão do Sul, Sudão, Uganda e Iêmen.
Sarrado reconhece que é frequente haver um cansaço dos doadores com relação a crises prolongadas envolvendo refugiados e deslocados internos, mas alerta que nesses 12 países há 40 milhões de pessoas necessitando tanto de ajuda como quem está na Ucrânia. “Eles precisam de apoio e os países que os abrigam também”, completa. “Sendo assim, é importante que o mesmo comprometimento, a mesma compaixão e a mesma empatia demonstrada pelo mundo frente aos ucranianos se estendam também aos refugiados e às pessoas obrigadas a fugir para escapar de conflitos e situações de insegurança em todo o mundo”, conclui.
O maior contingente de refugiados no mundo necessitando de proteção internacional é composto por sírios, pontua Sarrado. A seguir estão venezuelanos e ucranianos, e depois pessoas do Afeganistão, do Sudão do Sul e de Mianmar. “Então, é verdade que os números de ucranianos são altos, mas há contingentes de outras nacionalidades que são ainda mais altos”, acrescenta a porta-voz do Acnur.
Segundo ela, apenas alguns doadores menores estabeleceram que os fundos repassados deveriam ser destinados especificamente para a Ucrânia, enquanto a maioria dos países doadores “entende a importância do financiamento flexível”, o que significa que o Acnur pode usar em torno de 40% de seus recursos para financiar as necessidades que considera prioritárias.
A crise de refugiados da Ucrânia trouxe para o Acnur alguns novos doadores, especialmente indivíduos, empresas e fundações. “Eles resolveram apoiar os refugiados, porque viram o que estava acontecendo na Ucrânia”, diz Sarrado. A porta-voz espera que esse tipo de apoio continue para além deste ano e se amplie para outras nacionalidades e situações, não se resumindo apenas ao caso da Ucrânia.
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Contabilidade criativa
Outro fator que afeta as doações é que alguns países estão desviando parte de sua Assistência Oficial ao Desenvolvimento (AOD) – ajuda governamental destinada a promover o desenvolvimento econômico e o bem-estar de países em desenvolvimento – para cobrir custos de alojamento de refugiados internos, especialmente daqueles da Ucrânia, em 2022. Embora haja permissão para que os países façam isso, contanto que respeitem determinadas regras e acordos internacionais, parece que alguns deles estão ampliando os limites ao máximo.
Laerke afirma que, embora esta seja uma prática de difícil rastreio, o Enucah está ciente de que alguns países, entre eles os escandinavos, estão usando parte da AOD para refugiados internos. “Eles estão rotulando isso como ajuda humanitária, mas o que estão fazendo é basicamente dar ajuda para si mesmos como reação aos refugiados que estão entrando no país. Não concordamos em chamar isso de ajuda humanitária, mas essa é apenas nossa opinião”.
Especialistas em desenvolvimento afirmaram, em uma reportagem recente do diário The Guardian, que o Reino Unido, por exemplo, está gastando mais de seu orçamento para o desenvolvimento internacional em casa do que com países em desenvolvimento. O jornal cita pesquisas do Centro de Desenvolvimento Global para afirmar que grande parte deste orçamento está sendo gasta no alojamento de refugiados, principalmente da Ucrânia. O Reino Unido é, segundo o diário, “um dos poucos países – e o único do G7 – que está financiando todas as despesas com refugiados ucranianos através de seu orçamento para ajuda internacional previamente existente”.
A Suíça espera que o percentual de seu orçamento de AOD usado internamente aumente esse ano. “De acordo com as regras de relatórios do Comitê de Assistência ao Desenvolvimento (CAD) da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), a Suíça também declarou como assistência ao desenvolvimento as despesas com o recebimento de requerentes de asilo, ou seja, pessoas admitidas temporariamente e refugiados de países em desenvolvimento durante seus primeiros 12 meses na Suíça”. Isso é o que informa o site do governo suíçoLink externo, segundo o qual esses custos totalizaram 9% da AOD da Suíça em 2021.
De acordo com o Ministério suíço das Relações Exteriores (EDA), não se sabe ainda se Suíça, em resposta aos apelos por maior financiamento, aumentou o volume de sua ajuda ao desenvolvimento destinada ao exterior em 2022. De acordo com o órgão, os dados relacionados a 2022 ainda não estão disponíveis. “Mas esperamos que a AOD aumente em função do aumento esperado dos custos com alojamento de refugiados na Suíça (custos dos doadores com refugiados, que são parcialmente elegíveis à AOD)”. De acordo com o Ministério, “o nível de AOD sem os custos dos doadores com refugiados deverá diminuir em 2022, apesar dos recursos financeiros adicionais concedidos para lidar com as consequências da guerra na Ucrânia”.
Editado por Virginie Mangin
Adaptação: Soraia Vilela
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