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Como a poupança afegã foi parar em Genebra

Currency dealer holding a wad of bank notes in Kabul, Afghanistan
Cambista em uma rua de Kabul, no Afeganistão, oferece moedas para troca, em 12 de setembro de 2021. Keystone / Stringer

Esta é a história de como 3,5 bilhões de dólares pertencentes ao Afeganistão se esquivaram de ações judiciais e do Talibã para desembarcar em um fundo na Suíça. Entenda o que pode acontecer com esse dinheiro agora.

Quando um regime se torna corrupto e violento, a comunidade internacional pode responder com sanções econômicas. Congelar reservas estrangeiras é uma delas. O Afeganistão sofreu este tipo de sanção logo após o Talibã tomar o poder em agosto de 2021: seus cerca de nove bilhões de dólares em ativos estrangeiros foram congelados nos Estados Unidos, Europa e Emirados Árabes Unidos.

Desde então, os EUA estavam sob pressão para devolver os cerca de sete bilhões mantidos no Federal Reserve em Nova York que pertenciam ao Banco do Afeganistão (DAB), o banco central afegão. Vários economistas internacionaisLink externo, incluindo o Prêmio Nobel Joseph Stiglitz, até escreveram ao presidente Joe Biden, pedindo que seu governo liberasse o dinheiro para ajudar a economia afegã em dificuldades.

“Congelar as reservas do banco central é algo relativamente comum, mas este caso é singular em muitos aspectos”, diz Alexandra Baumann, chefe da Divisão de Prosperidade e Durabilidade do Ministério suíço das Relações Exteriores (EDA, na sigla em alemão). “Estamos diante de uma situação econômica absolutamente desesperadora [além de] não haver um governo legítimo no Afeganistão.” Entre as crises que o país enfrenta estão décadas de guerra, anos de seca e restrições do Talibã à população, incluindo o direito das mulheres ao trabalho.

Os EUA enfrentaram um enigma complexo de política externa: como ajudar o povo afegão dando-lhe acesso a esses fundos, sem que um único dólar chegasse às mãos do Talibã, que queria que o dinheiro fosse entregue ao DAB? O Talibã está sujeito a sanções dos EUA e não foi reconhecido como o governo legítimo do Afeganistão.

Os EUA também precisavam garantir que todos os US $7 bilhões não se envolvessem em ações civis movidas pelas vítimas dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 – outro fator que complicou as coisas para Washington.

Assim, os EUA recorreram a um terceiro ator independente – a Suíça – para estabelecer um acordo único. Agora, metade dessas reservas está sendo transferida para uma fundação em GenebraLink externo, o Fundo para o Povo Afegão, que desembolsará parte desse dinheiro para promover a estabilidade macroeconômica no Afeganistão.

Dilema para os EUA

O Fundo para o Povo Afegão começou a ser gestado em fevereiro, meses depois que as reservas foram congeladas pela primeira vez pelo Departamento do Tesouro dos EUA. Biden deu o passo incomum de assinar uma ordem executiva na qual declarou emergência nacional devido à “crise humanitária generalizada” e à turbulência econômica no Afeganistão, que representava uma ameaça à segurança dos EUA. Seu governo então pediu a um juiz que o permitisse transferir metade das reservas para um fundo fiduciário para apoiar o povo afegão – uma permissão que foi concedida e não foi contestada no tribunal.

A outra metade do dinheiro está sujeita a processos judiciais em andamento movidos por vítimas dos ataques de 11 de setembro e seus familiares. Um julgamento sumário em 2012 considerou o Talibã e outros réus responsáveis por danos de US $6 bilhões, mais juros acumulados, pelos ataques.

“Depois que as reservas do DAB foram congeladas, os advogados de algumas famílias do 11 de setembro procuraram quase imediatamente ter acesso a esses fundos [para pagar por esses danos]”, diz William Byrd, especialista em Afeganistão do Instituto da Paz dos Estados Unidos. “Isso representou um grande dilema para o governo dos EUA.”

Desde então, o Departamento de Justiça dos EUA argumentou que esses danos devem ser reduzidos em mais da metade, pois legalmente eles devem ser de natureza compensatória e não punitiva. No entanto, deixar de lado apenas parte das reservas para liquidar essas reivindicações, que ainda estão pendentes nos tribunais, provou ser controverso. Especialistas dizem que não há evidências de que o Talibã tenha participado dos ataques. Também não está claro se o Talibã – ou os reclamantes – têm direito aos fundos do DAB. “A lei dos EUA diz que as reservas do banco central de um país que, por qualquer motivo, tem um governo não reconhecido, não pertencem a esse governo”, explica Byrd.

Dadas essas complexidades, a criação de um fundo fiduciário foi a solução que os EUA encontraram, diz Byrd. Os EUA procuraram a Suíça em busca de ajuda para torná-lo realidade. Meses de discussões e consultas jurídicas nos lados dos EUA e da Suíça levaram à criação da fundação sediada em Genebra em setembro. Ter o dinheiro em uma conta na Suíça o torna “muito menos vulnerável a litígios nos EUA e isso é uma grande conquista”, diz Byrd.

Experiência e credibilidade

Baumann diz que, embora não consiga pensar em um precedente para um fundo desse tipo, a Suíça tinha o tipo de conhecimento que os americanos estavam procurando. “Os EUA pediram ajuda à Suíça porque temos experiência em encontrar acordos inovadores em situações diplomáticas e financeiras difíceis”, diz Baumann, que dá como exemplo o acordo comercial humanitário, mecanismo de pagamento criado pelos suíços há dois anos para permitir a entrega de ajuda ao Irã sem violar as sanções dos EUA.

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“É bom que a Suíça tenha intervido, pois não está claro se qualquer outro ator político poderia – com credibilidade – assumir o fundo afegão”, diz Byrd.

O Talibã considerou a decisão de criar o fundo de Genebra “inaceitável” e uma violação das normas internacionais. De acordo com Washington e Berna, além de desembolsar parte do dinheiro para apoiar a economia afegã, a fundação pretende preservar os ativos para que um dia possam ser devolvidos ao DAB – mas apenas quando a instituição estiver livre da influência do Talibã. Dois altos funcionários do DAB nomeados pelo Talibã estão sujeitos a sanções internacionais. “O DAB em sua forma atual não é um lugar adequado para esse dinheiro”, diz Baumann. “Não temos nenhuma garantia de que, se o dinheiro voltar agora, será efetivamente usado em benefício do povo afegão.”

Baumann fará parte do conselho de administração do novo fundo como representante suíço, ao lado de dois cidadãos afegãos com experiência de trabalho para o DAB e do embaixador dos EUA na Suíça, Scott Miller. O conselho terá o poder de decidir como desembolsar as reservas. “Trabalharemos para garantir que a fundação adote uma abordagem inclusiva – que faça o que o povo afegão quer porque é o dinheiro deles”, diz Baumann quando perguntado sobre quais serão as prioridades da Suíça. “A Suíça não tem nenhum interesse particular neste fundo, exceto para ajudar a população.”

Desembolsos esperados

O conselho se reunirá nas próximas semanas e a Suíça espera que os planos iniciais para os primeiros investimentos do fundo sejam anunciados antes do final do ano. Como o fundo pretende apoiar a estabilidade macroeconômica e financeira no Afeganistão, o dinheiro não será usado para financiar a ajuda humanitária internacional – um critério que foi sublinhado pelos especialistas afegãos consultados por suíços e americanos, diz Baumann.

Fundo para o Povo Afegão

A fundação criada em Genebra terá uma conta no Banco de Compensações Internacionais (BIS) em Basel. O conselho de administração decidirá por consenso sobre o uso específico dos US$ 3,5 bilhões em fundos “no melhor interesse do povo afegão”. Também garantirá que o dinheiro não beneficie o Talibã.

O conselho de quatro membros é composto pelo embaixador dos EUA na Suíça, Scott Miller, que também é presidente do conselho; Alexandra Baumann, embaixadora do Ministério das Relações Exteriores da Suíça; Anwar ul-Haq Ahady , ex-diretor do Da Afeganistão Bank (DAB); e Shah Mohammad Mehrabi, membro do conselho do DAB. Ahady e Mehrabi também são cofundadores da fundação. O conselho é livre para consultar qualquer pessoa e nomear um comitê consultivo no qual as vozes afegãs possam ser representadas. Todas as suas decisões serão tornadas públicas.

Os mais de nove bilhões de dólares em reservas estrangeiras pertencentes ao Afeganistão equivalem a quase metade de seu PIB, ou mais de um ano de importações, segundo William Byrd, do Instituto da Paz dos Estados Unidos.

Espera-se que os desembolsos sejam relativamente pequenos. É a estratégia certa, diz Byrd, já que gastar uma grande parte no curto prazo seria “uma solução efêmera que não melhoraria a situação do país”. Por exemplo, as reservas podem ser usadas como alavanca para ajudar as relações econômicas internacionais, diz Byrd, ressaltando que tem sido difícil obter financiamento comercial até mesmo para itens básicos entrarem no Afeganistão.

Outro uso prático poderia ser financiar a impressão de novas notas bancárias afegãs para transações diárias. As notas atualmente em circulação estão caindo aos pedaços, diz Baumann. “Essa é uma tarefa básica de qualquer banco central e agora o DAB não está em condições de fazer isso”, diz.

Se o fundo for bem-sucedido, os países que detêm o restante das reservas afegãs congeladas – cerca de US $2 bilhões – podem decidir despejar esse dinheiro na fundação de Genebra, acredita Byrd.

O que o fundo não fará é resolver todos os problemas do Afeganistão. O país teve que absorver um enorme choque econômico após a tomada do Talibã, diz Byrd, e “nada aliviaria muito, dada a magnitude do corte da ajuda externa”. Muitos países doadores retiraram suas doações ao país após a chegada do Talibã. 

A crise humanitária é tão crítica que a ONU lançou seu maior apelo de ajuda ao Afeganistão, no valor de US $4,4 bilhões, para 2022. É uma meta que Baumann diz que a comunidade internacional terá dificuldade em cumprir ano após ano. “A fundação é um remendo – não substituirá o DAB”, admite Baumann. “Mas vale a pena tentar pelo menos usar partes das reservas para aliviar o estresse econômico imediato que o Afeganistão atravessa.”

Edição: Virginie Mangin

Adaptação: Clarice Dominguez

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