O Credit Suisse e os bilhões de Moçambique
Moçambique era um país em ascensão até que um escândalo financeiro arruinou sua economia em 2015. Novas informações sobre o caso mostram que o envolvimento do banco suíço Credit Suisse na crise foi maior do que se imaginava.
Sentado num sofá em uma casa vazia nos arredores de Maputo, a capital de Moçambique. António Simango* diz: “Se eu falar publicamente, talvez vocês nunca mais me vejam”. Como funcionário do estado, Simango tem medo de represálias por parte do governo. Não podemos publicar seu nome verdadeiro ou mostrar seu rosto. Ele nem sequer quer ser visto conosco.
Deixamos o centro de Maputo e seguimos a estrada costeira ao longo do Oceano Índico. Passamos por palmeiras, praias e a cada quilômetro os edifícios ficam mais escassos. Em um dado momento o carro de Simango aparece e nos segue até uma casa vazia atrás de um muro alto de jardim.
António Simango sente-se seguro aqui. Assim ele nos conta sua história e, com ela, um pouco da história do seu país. Uma história de como as coisas melhoraram em Moçambique depois de anos de crises e guerras; de como as pessoas voltaram a ter esperança em dos países mais pobres do mundo e de como um escândalo financeiro colossal, com a participação suíça, reduziu tudo isso a zero.
Boom econômico
Após o fim da guerra civil em 1992, Moçambique tornou-se um dos destinos favoritos de investidores. Entre 2000 e 2015, o PIB triplicou e o investimento estrangeiro cresceu mais de vinte vezes. “Estamos presenciando uma mudança tremenda”, anunciou Christine Lagarde, diretora do Fundo Monetário Internacional (FMILink externo), na Conferência Africa-RisingLink externo em Maputo, em 2014. “Encontramo-nos aqui em Moçambique com perspectivas optimistas e grandes esperanças.”
As empresas estrangeiras estavam envolvidas na extração de matérias-primas e foram lançados projetos vultosos de infraestrutura cobertos por garantias estatais. Embora os ricos tenham sido os principais beneficiários do boom, uma classe média próspera também começava a emergir. “Quando imigrei em 2012, Moçambique era um país cheio de euforia”, recorda o suíço Andreas Ziegler, que dirige uma empresa de energia solar em Maputo.
No início de 2016, o FMI previu um crescimento econômico de 24 por cento ao ano entre 2021 e 2025. “Tudo parecia estar a melhorar”, diz António Simango, que na altura trabalhava como professor. Ele planejava completar seu mestrado e construir uma casa para sua família. “Mas, de repente, tudo mudou!”. Entre 2015 e 2016, Moçambique foi abalado pelo maior escândalo financeiro de sua história. Sabe-se agora que o governoLink externo contraiu empréstimos no valor total de dois bilhões de dólares sem o conhecimento do Parlamento moçambicanoLink externo e, em parte, sem o conhecimento do FMI.
No centro dos acontecimentos está o banco suíço Credit SuisseLink externo (CS), que concedeu metade do empréstimo. Como o FMI suspeitou de corrupção no processo e os empréstimos contradiziam suas diretrizes, o órgão suspendendo as remessas para Moçambique. Como resultado, muitos países doadores cortaram suas subvenções ao orçamento nacional nos seus programas de cooperação. De repente, surgiu um buraco no orçamento do Estado e o investimento estrangeiro entrou em colapso. Um desastre para a economia.
Moçambique declarou moratória e, com a subida da taxa de inflação para mais de 25 por cento, os preços dos bens de consumo diário dispararam. “O boom econômico foi aniquilado de um dia para o outro”, recorda Andreas Ziegler. Seu negócio também entrou em colapso passando de dez para zero encomendas por ano. Na escola onde António Simango ensina, as horas extras já não são pagas e os salários chegam com meses de atraso. “Até o giz foi racionado”, lamenta. “Como vais ensinar?” Em pouco tempo, a estrela em ascensão da África voltou a ser um país em crise. Como isso pôde acontecer? E qual foi o papel do Credit Suisse na crise?
Acusações nos EUA
Os eventos que arruinariam Moçambique começaram em 2011. Esta descrição dos fatos e conclusões apresentadas baseiam-se na acusação publicada, no final de 2018, pelo procurador americano em um tribunal de Nova Iorque. Oito pessoas foram indiciadas, incluindo três ex-funcionários do Credit Suisse. Vale aqui a presunção de inocência.
Nos meses anteriores à publicação da acusação, o Departamento Federal de Investigação dos EUA (FBILink externo) confiscou mais de um milhão de páginas transcritas de telefonemas, e-mails, transferências bancárias e outras provas. As autoridades descobriram um “plano enorme de fraude e suborno”, disse o promotor Richard P. Donoghue. Um plano que, segundo as investigações, começou nas fileiras de uma holding com sede no Líbano. A holding, denominada PrivinvestLink externo, foi fundada pelos irmãos Iskandar e Akram Safa. De acordo com suas próprias declarações, trata-se de uma das principais empresas de construção naval do mundo, com estaleiros na Alemanha, França e Grécia, entre outros países.
Em 2011, o colaborador da Privinvest, Jean Boustani, contatou um consultor do então Presidente de Moçambique. Em sua proposta, o país deveria contrair empréstimos na faixa de três dígitos de milhões e comprar, da Privinvest, navios, sistemas de radar e aeronaves para vigilância costeira. O conselheiro presidencial deixou claro que tal acordo só poderia ser realizado mediante o pagamento de propinas a representantes governamentais selecionados. Em um e-mail escreve: “Em governos democráticos como o nosso, as pessoas vêm e vão, e todos os envolvidos querem a sua parte do negócio”. Moçambique é atualmente um dos países mais corruptos do mundo. Os empréstimos dificilmente se concretizariam sem subornos para o lado moçambicano.
Ao mesmo tempo, Boustani procurava um banco para financiar seu plano chegando finalmente ao Credit Suisse International (CSi), uma filial londrina do banco suíço, e ao banco russo VTB. “O interesse dos bancos em emprestar aos países em desenvolvimento emergentes não é incomum. Como as taxas de juro para empréstimos comparáveis na Europa e nos EUA caíram drasticamente após a crise financeira de 2008, cada vez mais capital estava sendo transferido para regiões com maiores rendimentos e riscos.
Dois bilhões
Em Moçambique, a descoberta de grandes reservas de gás natural reduziu o risco de insolvência soberana e atraiu investidores. Entre 2013 e 2014, seriam concedidos três empréstimos no valor total de dois bilhões de dólares, o que corresponde à metade das receitas anuais do governo de Moçambique. O dinheiro seria utilizado para financiar uma frota de pesca de atum, um sistema de vigilância costeira e a construção de estaleiros navais. Foram criadas três empresas para realizar os grandes projetos.
Esse papel duplo incomum não é a única coisa estranha sobre o negócio. Assim, como não houve processo de licitação, a Privinvest foi a única empresa que “competiu” pelos contratos de milhões de dólares. Mas as três empresas que tiveram oficialmente os contratos adjudicados são todas geridas pela mesma pessoa: um antigo funcionário dos serviços secretos de Moçambique.
Além disso, o dinheiro emprestado não foi transferido para os verdadeiros mutuários, as três empresas recentemente criadas, mas sim diretamente à Privinvest. Algumas dessas circunstâncias levantam suspeitas nas unidades de controle interno do Credit Suisse. Por exemplo, um funcionário do Credit Suisse perguntou à Boustani se o contrato foi adjudicado à Privinvest através de uma licitação. Boustani respondeu que o acordo foi feito com base em “contatos de alto nível” entre a Privinvest e o governo de Moçambique. Os detalhes dessas relações são mostrados em trechos da troca de correspondência publicados pela Procuradoria Geral da República dos EUA.
No final de 2011, o conselheiro presidencial escreveu a Boustani: “Tudo certo, ‘brother’ (sic). Eu fiz a consulta e, por favor, envie 50 milhões de ‘galinhas’.” Isto significa 50 milhões de dólares americanos. Essa é a quantia do suborno que deveria ser paga aos funcionários públicos só em Moçambique. Um total de pelo menos 200 milhões de “galinhas” desaparecem desta forma. Até o próprio Credit Suisse chama um dos participantes de “master of kickbacks” (mestre das propinas) em documentos internos.
“Você está cansado da vida?”
O professor de direito penal e especialista em corrupção, Mark PiethLink externo, diz: “Quando um funcionário de compliance (n.r.: termo do inglês “to comply”, que significa agir de acordo com uma regra, uma instrução interna) me liga, descreve essa situação e quer uma avaliação minha, eu respondo: Você está cansado da vida? Isto é uma missão suicida.” Se uma empresa suíça quiser contrair empréstimos igualmente elevados para um projeto desse porte, terá de produzir inúmeros documentos e um plano de negócios detalhado. A empresa teria de demonstrar que está solvente, e como vai reembolsar o dinheiro emprestado.
No caso de Moçambique, as regras foram desrespeitadas. As três empresas recém-criadas não conseguiram provar que eram capazes de gerar as receitas esperadas, nem tampouco os requerimentos e viabilidade dos projetos foram cuidadosamente esclarecidos. A frota de pesca de atum, por exemplo, cujos peixes seriam exportados por Moçambique para a Europa, não cumpria as normas necessárias. Se um banco conceder um empréstimo em tais circunstâncias, corre um risco elevado de perder o seu dinheiro em caso de falência. A menos que alguém seja fiador do empréstimo, como neste caso, o Estado de Moçambique.
De acordo com a acusação, Boustani escreveu no final de 2012 ao conselheiro presidencial: “Mas a única questão imperativa para o ‘bro’ (sic) do Credit Suisse é a assinatura da garantia do empréstimo [feita pelo réu Manuel Chang]. O único critério obrigatório para o banco suíço foi, portanto, a assinatura do ministro das Finanças, Manuel Chang, dando a garantia estatal. Esta é a ideia central por detrás do acordo de Moçambique: uma empresa, dois bancos e um grupo de políticos corruptos entram em conluio num acordo de crédito. Se as empresas falirem, o Estado assume as dívidas. Portanto, o risco financeiro para os envolvidos é baixo. Todos se beneficiam exceto o povo de Moçambique.
Responsabilidade suíça
“É perigoso falar abertamente no nosso país”, diz Jorge Matine. “Tomamos precauções, mas se eles vierem atrás de ti, não te vai ajudar muito.” Matine é médico, funcionário do Fórum de Monitoramento de Orçamentos e uma das poucas pessoas em Moçambique que se opõe publicamente ao pagamento dos empréstimos. A culpa pela miséria é principalmente dos políticos corruptos, diz Matine.
“Mas a Suíça também tem uma responsabilidade. Ela não pode ajudar um país a se desenvolver e, ao mesmo tempo, permitir que as empresas arruínem esse país. Ele se queixa de que o governo cortou maciçamente os gastos com saúde e educação. As ambulâncias não têm gasolina e nos hospitais falta eletricidade. “Se você parasse de fazer negócios com nossos políticos saqueadores, não precisaríamos do seu apoio”, diz ele em ao se despedir.
Cálculos da ONG Centro de Integridade Pública (CIPLink externo) em Maputo mostram que os empréstimos a Moçambique poderiam ser ainda mais caros do que se supunha até agora. “Não se trata apenas da cifra que circula por aí de dois bilhões de dólares”, diz Celeste Banze, especialista financeira da ONG que trabalha por transparência e no combate à corrupção. Se adicionarmos os juros e os custos da reestruturação dos empréstimos, o resultado será mais do que o dobro desse montante. Quatro bilhões de dólares seriam suficientes para financiar todo o setor da educação em Moçambique durante quatro anos. “O pagamento da dívida”, diz a economista, “ainda vai custar muito dinheiro que poderia ser usado para melhorar nossas vidas.”
Em 2017, a consultoria de riscos, investigações corporativas e cibersegurança KrollLink externo investigou quem tinha se beneficiado dos empréstimos. O resultado da investigação indicou que o Credit Suisse e o banco russo VTBLink externo retiveram 200 milhões em taxas e transferiram 1,8 dos dois bilhões de dólares à Privinvest. Os recursos eram destinados para investimentos em bens e serviços cujo valor a Kroll estima ser superfaturado em, pelo menos, 700 milhões. Uma parte do dinheiro da Privinvest foi para políticos moçambicanos, enquanto os antigos funcionários do Credit Suisse em Londres envolvidos no projeto receberam 50 milhões.
Quando questionada sobre a explicação da diferença entre o preço e o valor dos serviços prestados, a Privinvest respondeu: “Cumprimos nossas obrigações contratuais e tomamos medidas extraordinárias para contribuir para o êxito dos projetos”. A empresa rejeita quaisquer alegações relativas aos contratos de fornecimento. Pelo contrário, para ela seriam as empresas moçambicanas que não cumpriram a sua parte do acordo. Nem a Privinvest nem o CEO Iskandar Safa teriam sido informados de alegados atos criminosos. Cinco outras questões relativas à responsabilidade da empresa e ao eventual reembolso dos empréstimos continuam sem resposta. Devido ao processo estar em curso, a Privinvest não deseja comentar mais o caso.
Com relação às taxas retidas, o Credit Suisse disse que havia repassado grande parte delas aos investidores participantes. O próprio Credit Suisse recebeu 33 milhões para organizar os empréstimos, por um lado, e para reestruturar um dos empréstimos, por outro. Os cálculos sugerem que o bilhão em crédito concedido pelo CS gerou mais de US$ 300 milhões em juros e taxas até o momento. O banco não divulga quais parcelas desses empréstimos ele revendeu, quais ainda detém, e qual foi seu resultado anterior. O Credit Suisse apenas respondeu a dez perguntas detalhadas que submetemos com declarações gerais dizendo que coopera com as autoridades competentes e defende uma maior transparência nos empréstimos aos governos.
Dinheiro perdido
Uma coisa é certa. Uma grande parte do dinheiro destinado à implementação dos grandes projetos nunca chegará a Moçambique. Enquanto os barcos encomendados para a marinha moçambicana desapareceram do porto de Maputo em algum momento, a frota pesqueira de atum continua a enferrujar visivelmente. As três empresas nunca tiveram lucro e logo caíram em atraso de pagamentos. Devido à garantia do Estado, o país teve de intervir. Mas Moçambique anunciou no início de 2017 que não vai mais poder pagar o serviço de suas dívidas. Moçambique é, assim, o primeiro país africano a pedir insolvência desde 2011.
Hoje já está claro que o Credit Suisse foi um dos causadores da crise econômica de Moçambique. No contexto global, o banco suíço é parcialmente responsável pelo fato de os pagamentos da ajuda ao país terem sido interrompidos, de os sistemas de educação e de saúde terem sido prejudicados e de faltarem medicamentos nos hospitais. Existem alguns casos comparáveis, e a extração de capital através do serviço dos empréstimos é enorme, especialmente no continente africano. Mas só raramente o impacto num país é tão direto e devastador. E só raramente um caso é tratado de forma tão abrangente.
Enquanto não houver corrupção ou qualquer outra atividade explicitamente ilegal da parte dos credores, essas transações de crédito não são puníveis pela lei. “Por mais difícil que pareça, não é proibido destruir um país em desenvolvimento”, diz Mark Pieth. Por esta razão, e porque não há lesados, além da população local, ninguém teve de responder pelo escândalo durante muito tempo. O Credit Suisse permanece em silêncio. Na Suíça não se fala no caso e o governo de Moçambique tentou encobrir o escândalo até que os EUA retomaram as investigações, no final de 2018.
Investigações dos EUA
Embora as empresas envolvidas tenham os seus escritórios em Moçambique, Grã-Bretanha, Líbano, Rússia, Emirados Árabes Unidos e Suíça, foram as autoridades americanas que, até a presente data, mais contribuíram para o esclarecimento do caso. Para elas as transações suspeitas foram feitas por intermédio do sistema de pagamentos dos EUA. E investidores americanos foram prejudicados pela fraude. Graças à ação nas cortes americanas, a extensão do escândalo torna-se conhecida pela primeira vez.
Entre os acusados estão dois funcionários da Privinvest, o ex-ministro das Finanças de Moçambique e três ex-funcionários do Credit Suisse em Londres. Os investigadores dos EUA acusam estes últimos de corrupção, lavagem de dinheiro, fraude de títulos e transferência de dinheiro.
Entre maio e setembro de 2019, todos os três ex-funcionários do CS se declararam culpados em menos uma acusação. O neozelandês Andrew Pearse diz que não só ele mesmo queria enriquecer, mas seu empregador, o banco suíço, também teve “lucros substanciais” graças aos empréstimos. E ainda diz mais: Ele acrescentou que – assim como outros funcionários do CS – estava ciente de que os negócios com Moçambique e Iskandar Safa implicavam um alto risco de suborno.
Isso não o preocupou, no entanto, pois ele observou que, nesses casos, o CS coopera com intermediários para se livrar da responsabilidade legal. Além disso, alegou-se que ocorreu uma “pressão de empréstimo”, no caso de Moçambique: O montante dos empréstimos não se baseou nas necessidades do país, mas sim nos fundos disponibilizados pelos bancos. O Credit Suisse não comenta estas alegações, devido ao processo em curso. Supõe-se que Pearse está cooperando com o procurador geral dos EUA, e que as outras acusações contra ele foram, portanto, retiradas.
Para a Privinvest e o Credit Suisse isto torna a situação ainda mais difícil. Não é raro que o Departamento de Justiça dos EUALink externo tome primeiro medidas contra indivíduos, e depois contra a empresa, diz Walter Mäder, antigo procurador federal especializado na investigação em casos de corrupção internacional. “Se a pessoa então coopera para conseguir um bom acordo, pode ser que mais pessoas ou até mesmo a empresa seja investigada.”
Em abril de 2019, a ONG Public EyeLink externo apresentou uma queixa criminal contra o Credit Suisse na Procuradoria Geral da SuíçaLink externo. Ela exige que a responsabilidade criminal do grupo, com sede em Zurique, seja esclarecida. Coloca-se a questão: qual é a probabilidade de três pessoas em Londres poderem ter concedido um bilhão de dólares a um país de alto risco, sem o conhecimento do conselho executivo do Grupo?
Moçambique não deve pagar
Venâncio Mondlane é um homem ocupado. Ele adia a nossa reunião duas vezes, antes de propor encontrar-nos à noite. Mondlane tem 45 anos, já foi banqueiro, e mais tarde tornou-se parlamentar. Hoje ele é conselheiro do líder da oposição moçambicana. Foi um dos primeiros políticos a discutir sobre créditos escondidos. No entanto, como quase todos os nossos interlocutores, ele não quer ser visto com jornalistas estrangeiros.
Há muito que já está escuro, quando Mondlane aparece para o encontro num pequeno apartamento perto da catedral branca, no centro de Maputo. Com uma voz vigorosa ele diz: “Os empréstimos são ilegais. Não lhes pagaremos de volta, e não somos o primeiro país a recusar o pagamento.” Ele foi o único político da oposição a fazer parte da comissão de inquérito parlamentar para lidar com o escândalo.
Ele descreve o relatório final publicado pela comissão como “fraco”. Até agora, o partido dominante no poder, a Frelimo, sempre impediu que as questões realmente importantes fossem colocadas. O Credit Suisse está ameaçado com processos criminais? Já em 2015 o Ministério Público moçambicano abriu os processos, mas só no início de 2019, após a publicação da acusação dos EUA, é que vinte pessoas foram acusadas – entre elas o filho do antigo presidente.
Depois de anos de táticas de encobrimento, o governo parece estar agora na ofensiva para melhorar a sua situação financeira, e livrar-se de uma parte da dívida. Em fevereiro, Moçambique tentou uma ação cível no Supremo Tribunal de Londres contra o Credit Suisse AG, o Credit Suisse International e outros, para obter uma anulação das garantias estatais dos empréstimos.
No entanto, Venâncio Mondlane está convencido de que, enquanto as pessoas que esclarecem o escândalo estiverem próximas daquelas que o causaram, não se pode esperar muito da política e da justiça de Moçambique. “Como suíços, pode ser que vocês não gostem disso”, diz Mondlane. “Mas, da mesma forma que tomamos medidas contra o nosso povo, a Suíça também deve assumir a responsabilidade pelos seus criminosos.”
Suíça deve investigar
O Credit Suisse não cumpriu suas próprias condições, tornando assim possível a corrupção. De fato, o sistema de controle interno do banco exigia que o procurador-geral de Moçambique fosse questionado sobre a validade da garantia estatal, e que o FMI fosse informado sobre os empréstimos. Além disso, de acordo com um relatório da agência Kroll, o banco exigiu originalmente que os empréstimos fossem revistos pelo Tribunal Administrativo de Moçambique e aprovados pelo banco central.
Se as partes tivessem cumprido com isto, os empréstimos teriam provavelmente sido tornados públicos e nunca teriam sido aprovados. No entanto, de acordo com as investigações das autoridades dos EUA, os funcionários do CS não cumpriram suas próprias condições antes de assinarem os contratos. Venâncio Mondlane diz que é necessário investigar como isso foi possível. Com base em sua experiência de banqueiro, ele considera “completamente impossível” que apenas três funcionários da subsidiária de um grande banco sejam responsáveis por um empréstimo desse valor. A exigência do político de oposição é, portanto, clara: “A Suíça deve responsabilizar os gerentes e membros do conselho administrativo encarregados no cumprimento das regras.”
Em cooperação com as autoridades britânicas, a Autoridade Supervisora do Mercado Financeiro Suíço (FINMALink externo) investiga para verificar se o Credit Suisse cumpriu as leis de compliance. A Procuradoria-Geral da Suíça também examina se é necessário abrir um processo criminal contra o Credit Suisse. Especificamente, a questão é saber se existe suspeita suficiente e se a Suíça é responsável pelo caso.
O artigo 102º do Código PenalLink externo é de particular importância do ponto de vista do Direito Penal. Ele prevê que uma empresa pode ser punida pelo suborno de funcionários públicos estrangeiros, por exemplo, se ela puder ser acusada de “não tomar todas as precauções organizacionais necessárias e razoáveis para evitar tal delito.” A empresa infratora está ameaçada com uma multa máxima de cinco milhões de francos suíços e com a confiscação dos lucros obtidos.
O Credit Suisse rejeita qualquer responsabilidade. “Estamos consternados com o que lemos na acusação dos EUA”, disse o presidente Urs Rohner, na assembleia geral do grupo. “Isso também era novo para nós.” O banco afirma que as transações foram realizadas por filiais bancárias britânicas, e aprovadas por funcionários no Reino Unido. Os réus tinham agido com interesse pessoal em mente, falsificando documentos e utilizando contas de correio eletrônico privadas para contornar o sistema de controle interno.
É preciso saber se isso é verdade. Por exemplo, por que é que o banco não denunciou seus empregados quando surgiram sinais de que estavam se enriquecendo? Sobretudo por que os empregados, de acordo com a acusação, só usaram contas de e-mail externas do segundo empréstimo em diante? O primeiro empréstimo e, por conseguinte o início da presumível fraude, foi concedido através dos endereços oficiais da empresa. A empresa também não se pronuncia sobre esses pontos.
O que sabia a gerência do grupo?
Finalmente, um ponto crucial: os réus foram capazes de enganar o sistema de controle interno do Credit Suisse, principalmente porque os responsáveis não olharam de perto a situação. De que outra forma os acusados poderiam ter simplesmente eliminado as condições originais para a concessão de crédito? Por que um dos réus foi capaz de organizar o primeiro empréstimo e logo depois assumir a responsabilidade pela organização do segundo? Por que é que os empréstimos foram acenados quando um funcionário do CS estava recolhendo artigos de jornal sobre a Privinvest, para chamar a atenção sobre o risco de trabalhar com a empresa?
A Procuradoria Geral dos EUA afirma: “No decurso do processo de auditoria do Credit Suisse, foram identificados alguns sinais de alerta numa fase inicial.” No entanto, as pessoas responsáveis não transmitiram as suas preocupações ao Departamento de Conformidade, que “eles falharam por não ter prosseguido com a sua investigação.” Ninguém no CS quer comentar esse ponto.
Por conseguinte, fica a questão de saber se a direção do grupo em Zurique é responsável pelo sistema de controle interno de sua filial de Londres. O CS nega. No entanto, existem inúmeros indícios de que existe, pelo menos, uma falha organizacional no banco e que as autoridades judiciais suíças seriam responsáveis por investigar o caso.
Existem as circunstâncias de risco: especialistas em gestão de riscos e conformidade confirmam que um empréstimo dessa dimensão, a um país como Moçambique, teria de ser sido aprovado pela direção do banco ou, pelo menos, pelo conselho de administração do grupo. Fatores como o alto risco de corrupção, ou o envolvimento de pessoas já conhecidas – por seu relacionamento em processos de corrupção – deveriam ter levado a decisão de conceder crédito “para degraus superiores”, na hierarquia – na matriz suíça. Enfim, o professor de direito penal Mark Pieth assume que a direção do Credit Suisse teria que estar envolvida, especialmente devido às dimensões do negócio.
O ex-procurador Walter Mäder é também concorda a gestão de riscos e conformidade não pode ser delegada às escalas inferiores: “Essa é a tarefa da direção-geral da empresa. Ela tem uma responsabilidade fundamental dentro do grupo como um todo.” Os contratos de crédito mostram que uma filial do Credit Suisse AG na Suíça também estava envolvida. Além disso, vários empregados bancários ocuparam simultaneamente posições decisivas no grupo Credit Suisse e na filial em Londres.
Por exemplo, o francês Gaël de Boissard, que já foi considerado o futuro diretor-executivo da empresa. De Boissard foi membro do conselho administrativo, CEO e co-presidente de investimentos bancários do CS International, e membro da direção-geral do Credit Suisse em Zurique.
Tobias Guldimann também atuou no conselho administrativo do CS International e na diretoria executiva do Grupo CS até o final de 2013. Como chefe de risco foi até responsável pela política global de risco de crédito do banco. No verão de 2013, o CS anunciou que Guldimann seria nomeado chefe do setor de Risco de Reputação, Responsabilidade Corporativa e Política Regulatória do grupo. Mas em dezembro do mesmo ano, foi anunciado que o funcionário de longa data deixaria o banco – sem mais explicações.
Para Walter Mäder, os trabalhadores com funções duplas sugerem a responsabilidade da matriz: “Se a matriz delegar os conselhos administrativos na filial, isto é um indício de que o grupo tem uma supervisão global.” Dois contratos de crédito – de mais de cem páginas cada – entre o Credit Suisse e as empresas moçambicanas também dão suporte a este ponto de vista. Esses acordos regem a concessão do bilhão do CS, e contêm informações explosivas: em dois empréstimos estavam envolvidas não apenas a subsidiária do CS International, mas também a filial londrina do Credit Suisse AG, com sede em Zurique.
De acordo com as suas próprias declarações, o CS AG é “a unidade operacional mais importante e uma subsidiária integral” do grupo CS. É dirigido pelo mesmo conselho administrativo do Grupo, presidido por Urs Rohner. A sucursal do CS AG em Londres está sujeita aos requisitos regulamentares da Grã-Bretanha e Suíça. Mesmo que o CS International em Londres fosse a única responsável pelo seu cumprimento, o banco em Zurique está envolvido, através da participação do CS AG. É a Procuradoria-Geral da Suíça que deve tomar a decisão final, diz Walter Mäder. “No entanto, com base nesta situação, eu diria que a Suíça tem jurisdição.”
Assim, a Procuradoria-Geral da Suíça teria de abrir um processo contra o Credit Suisse. Se isso acontecer, ela deverá esclarecer quem foi informado sobre o empréstimo, e quem sabia ou deveria saber sobre a alegada corrupção.
Em um caso semelhante, a empresa Alstom Network Schweiz AG foi condenada a uma multa de um milhão de dólares, em 2011. De acordo com a ordem de punição, a empresa não tomou todas as precauções organizacionais necessárias e razoáveis para evitar o suborno de funcionários públicos estrangeiros. Embora as regras de conformidade no papel fossem suficientes, na prática não tinham “sido aplicadas com a persistência necessária.” De acordo com a Procuradoria Geral da Suíça, a sede corporativa na França também foi responsável pelos problemas organizacionais. A multinacional cobriu as despesas do processo e pagou uma indenização. No entanto, por ter cooperado e melhorado os seus procedimentos de conformidade, não foi condenada.
“Todos os três créditos são ilegais”
Está claro que a pressão aumenta sobre o Credit Suisse. Uma mostra disso foi o primeiro encontro com representantes das ONGs moçambicanas, ocorrido em 29 de abril. Representantes do banco declararam que as discussões durante o encontro em Zurique foram construtivas. Dela participou também o jurista-chefe do banco. “Porém em nenhum momento tivemos a sensação de que o Credit Suisse reconheceu a culpa ou, pelo menos, a ilegalidade dos empréstimos”, declarou Denise Namburete, membro do Fórum de monitorização do orçamento. “Estamos nos preparando para uma longa batalha.”
Matthias GoldmannLink externo, da Universidade de Frankfurt, vê uma possibilidade de sucesso na batalha. O especialista em direito público internacional e dívidas públicas analisou com profundidade a questão dos empréstimos. “Está claro que os controles internos do banco não funcionaram”, diz. Ele considerou surpreendente o fato de ninguém ter percebido que uma garantia do Estado para uma soma vultuosa teria que ter sido aprovada pelo Parlamento. Ele mesmo encontrou s cláusula na internet em poucos minutos.
Independente disso, a questão da legalidade dos empréstimos é clara para Goldmann: “Todos os três foram ilegais segundo as leis inglesas, que é aplicada neste caso. Se um empréstimo é obtido através de um ato ilegal, como a corrupção, então o tomador do empréstimo não tem de reembolsá-lo.”
No início de junho, o Tribunal Constitucional de MoçambiqueLink externo declarou ilegal um dos empréstimos como ilegal. Segundo Goldmann, um tribunal inglês teria de se pronunciar sobre o caso, a fim de aplicar esta posição a nível internacional e declarar inválidos os contratos, de acordo com o direito civil. Para que Moçambique retorne ao mercado, o FMI também teria de reconhecer a ilegalidade dos empréstimos. Só então o país teria a opção de recusar o reembolso dos empréstimos e os credores teriam de anular, se for o caso, as dívidas. “Tal processo demora muito tempo”, diz Matthias Goldmann. “E o tempo trabalha contra Moçambique.”
O país não tem atualmente acesso aos fundos suspensos do FMI, e encontra-se em estado de emergência financeira. Moçambique deve tentar fazer um acordo para conseguir reestruturar sua dívida. É provável que em algum momento o Credit Suisse esteja preparado para concordar com condições mais favoráveis para Moçambique. “Quanto mais procedimentos existirem e quanto mais avançarem, piores serão as chances do Credit Suisse de escapar.
Além da ação civil em Londres, o banco agora enfrenta processos criminais nos EUA – e um na Suíça. Embora Walter Mäder esteja convencido de que a Procuradoria-Geral da Suíça tomará medidas contra o CS, se as evidências forem boas, Mark Pieth assume que o grande banco seria poupado, por razões políticas. “A Suíça não quer destruir as suas ‘joias da coroa’.” Em vez disso, o banco deveria ter medo do sistema judiciário inglês e americano. “Se fosse o CS”, diz Pieth, “começaria a fazer uma reserva de dinheiro.”
*Nome alterado pelos editores
Artigo originalmente publicado na revista Das Magazin, em 14 de setembro de 2019Link externo. Christian Zeier é jornalista freelancer e co-fundador do coletivo de pesquisa Reflekt.chLink externo
Adaptação: Flávia C. Nepomuceno dos Santos e DvSperling
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