Como manter a lucidez na era da desinformação
A filósofa, artista e professora Marcia Tiburi, que deixou o Brasil em dezembro de 2018 em função de ameaças de morte, esteve em Zurique para falar de seu novo livro “Delírio do poder – psicopoder e loucura coletiva na era da desinformação”. Na entrevista a seguir, ela faz um mergulho na complexidade do Brasil atual, e apresenta algumas propostas para quem busca lucidez em meio ao caos sócio, político e emocional do país.
Entender o Brasil nunca foi uma tarefa simples. Nos últimos meses está quase impossível, pois o debate ganhou uma carga cavalar de emoções descontroladas, violentas, alimentadas por uma alta produção de desinformação. Como manter a lucidez no meio de um bombardeio de notícias falsas é um dos temas abordados por Marcia Tiburi, 49, em seu novo livro, “Delírio do poder – psicopoder e loucura coletiva na era da desinformação”, onde ela também comenta sua experiência de candidata ao governo do estado do Rio de Janeiro pelo PT em 2018.
Tiburi, que deixou o Brasil em dezembro da ano passado devido a ameaças de morte, esteve em Zurique no dia 21 de maio a convite de grupos ativistas para a palestra A ascensão do fascismo no Brasil, que aconteceu na Universidade de Zurique.
swissinfo.ch: Como tem sido esses cinco meses longe do país?
Marcia Tiburi: É muito ruim, porque não é uma escolha. É uma questão de sobrevivência. Eu não teria saído do BrasilLink externo se não existissem ameaças, e se eu pudesse confiar no governo. Hoje eu precisaria de proteção do governo mas é o governo que me persegue. Não poderia pedir apoio pra viver no Brasil porque a promessa de matança de pessoas de esquerda é imensa, e em relação a mim é uma promessa muito direta de vários indivíduos.
Eu sou escritora – é claro que é muito duro em função da desorganização do cotidiano – mas eu escrevo e continuarei escrevendo meus livros. A minha obra é também uma atitude política, sempre foi, porque sou feminista, brasileira, latino-americana, professora de filosofia. Fazer filosofia no nosso Brasil sempre foi uma atitude de enfrentamento do autoritarismo, que é típico do nosso país. Escrever contra o fascismo – analisar, estudar, pesquisar – também é uma atitude política, de enfrentamento bastante radical. Eu vou continuar fazendo isso.
Como você avalia os primeiros meses do governo Bolsonaro?
Nós estamos vivendo uma catástrofe política sem precedentes na história do Brasil. É o coroamento de um processo político e moral catastrófico que faz parte da nossa história mal resolvida. Hoje estamos vivendo esta circunstância, que, é obvio, esperamos que seja ultrapassada. Esperamos ter força e inteligência política e moral para superar. Só não diria que estamos no fundo do poço ainda, porque acho que coisas piores podem acontecer.
Você acredita que pode piorar?
Pode piorar. Se olharmos para o conjunto da catástrofe, temos o seguinte: um presidente que é um fascista. Esse cidadão, assim como o Trump nos Estados Unidos e outros pequenos ditadores de outros países, liberou nas pessoas uma afetividade, uma espécie de autorização tanto à loucura, à irracionalidade nas falas quanto nas atitudes. Temos hoje uma cena bastante perigosa porque esse presidente tem essa função de ativar isso na população. Chamo isso no meu livro de psicopoder.
Bolsonaro, que está sendo utilizado por um sistema organizado, que precisa do discurso de exacerbação do ódio, se torna uma espécie de líder que orienta comportamentos. Estamos diante de um cenário realmente perverso na política, porque os grandes líderes do Brasil não estão neste momento servindo para mover a população na direção da ética, do respeito, dos princípios e direitos humanos.
Você acredita que um Bolsonaro poderia ser eleito na Europa de hoje?
A [Marine] Le Pen, na França, disse que Bolsonaro seria inaceitável. O próprio [Matteo] Salvini, na Itália, que é muito próximo ideologicamente de Bolsonaro, não chega a tanto. Bolsonaro é mais parecido com o Trump. E talvez ainda mais parecido com figuras como o [Recep Tayyip] Erdoğan e [Viktor] Orban, esses ditadores mais periféricos, mais bizarros. Bolsonaro realmente assunta. Ele está num nível de extrema direita, que é o nível da destruição do país. E não é só ele.
Basta analisar o discurso do ministro da economia, Paulo Guedes. Trata-se de um projeto de saque do Brasil, de vender o Brasil tanto para os colonizadores internos, ou seja, aquela elite econômica brasileira, quanto para os investidores internacionais, grandes corporações, que usam os governos num projeto neoliberal.
Em sua palestra em Zurique, você disse que Bolsonaro inaugura a fase do fascismo tropical. Do que se trata?
Para muitos, o termo fascismo pode parecer forte, mas o fato é que esse termo é absolutamente adequado a Bolsonaro e seus pares. E por que o termo tropical? O Brasil é um país que faz parte do imaginário europeu há muitos séculos como sendo um lugar paradisíaco, que tem um povo bonito, simpático. Mas precisamos pensar o que significa o Brasil, ser brasileiro, e como foi construída a história deste país destinado a ser colônia e que hoje volta a ser colônia. Falo então de um tipo de fascismo que surge neste país colonizado, que se inspira e imita figuras estrangeiras, como Donald Trump.
Outra característica desse fascismo é que se apresentou no Brasil primeiro como uma graça, algo que despertava o riso nas pessoas, até que foi ficando cada vez mais sério e efetivo. Aquilo que antes era um xingamento, uma manifestação de preconceito passou a valer na prática. Se passou da simples manifestação de preconceito a um discurso de ódio cada dia mais radical. Deste discurso de ódio se passou a “fake news”, da “fake news” se passou a promessas de morte, e da promessa de morte muitas vezes se passou à matança. E é neste estágio que estamos. Bolsonaro, um sujeito que vive no Twiter, que usa as redes sociais num processo diário de divulgação de “fake news”, têm a função de desnortear as pessoas.
O que é necessário para se permanecer lúcido nesse caos de desinformação?
As redes sociais têm sido o palco de uma guerra híbrida. Chamo de guerra híbrida todo um conjunto de procedimentos que envolve a relação entre real e virtual, mas que também implica processos de comunicação. Nesse processo há de um lado os profissionais da guerra híbrida, que são empresas com seus funcionários pagos pra produzir “fake news” e desinformação. E ao mesmo tempo, de outro lado, há um conjunto de pessoas na sociedade que agem estimuladas e manipuladas, em muitos casos sem sequer perceberem, o que está acontecendo com elas próprias. Um exemplo disso é quando a pessoa passa adiante informação, reproduzindo discursos de ódio, de violência.
Neste caso, ao frequentar as redes sociais as pessoas precisam ter muito cuidado com o que veem. As pessoas não devem comprar como verdadeiro tudo aquilo que se coloca nas redes, embora seja um momento muito difícil na medida em que o próprio presidente da república é uma figura que constrói esse tipo de desinformação, ele é um agente, talvez o mais forte, nesta direção.
Nesse sentido as pessoas precisam cuidar muito do espírito, ou seja, ler, estudar, conversar com os outros, fazer análise, ir para o psicólogo, ir para o psiquiatra, procurar grupos de apoio psicológico. Hoje existem vários grupos de apoio, nas comunidades, nas igrejas. As pessoas precisam se organizar para uma sobrevivência psicológica. Isso não é pouca coisa.
Como poderíamos, como sociedade, buscar novas soluções, até aquelas que nascem na base da sociedade e impactam todo o resto?
No Brasil, isso não vai acontecer porque foram os donos dos meios de produção da linguagem que plantaram o ódio. A televisão e as redes sociais plantaram o ódio. Hoje quando falamos de Bolsonaro e seus pares estamos falando de todo um conjunto que envolve grandes empresários, corporações nacionais e internacionais, inclusive as mediáticas, que é imenso.
Não existiria golpe em 2016 sem a participação da televisão e sobretudo da Rede Globo, que neste momento está ali pensando se vale a pena derrubar Bolsonaro. A televisão no Brasil tem esse poder, porque os brasileiros não têm grande acesso à cultura – inclusive neste momento há um ataque radical à cultura, uma tentativa de desmontar toda a estrutura que sustentava já com muita precariedade a cultura no nosso país; e o mesmo vale para a educação.
Então, em relação ao Brasil, não há chance de que a população vá sair dessa lavagem cerebral por conta própria. Nesse contexto, pessoas como eu, uma simples professora de filosofia, que denuncia esse tipo de procedimento, é perseguida pelo próprio presidente da república. Que importância tenho eu?
Não vejo nenhuma possibilidade de nós conseguirmos barrar aquilo que Bolsonaro e seu projeto plantaram no Brasil. Só tirando o Bolsonaro. Mas nem um impeachment agora poderia nos livrar daquilo que ele conseguiu ativar subjetivamente na alma dos brasileiros, que é justamente essa falta de espírito. Essa lavagem cerebral foi feita numa água fervilhante. O esvaziamento do psiquismo foi muito forte.
Você mencionou durante sua palestra que a esquerda brasileira precisa sair da ingenuidade, que, em alguns aspectos, funciona como a direita. Pode explicar?
Acho que a gente deve comparar, sim, direita e esquerda. A gente não deve só separar. A gente também não deve tratar a esquerda e direita como conceitos estanques. Eles se modificam no tempo. Há uma nova esquerda se construindo. Ela inclui todos os atores não autorizados a fazer parte do campo do poder. Nesse sentido, acho que a nova esquerda que se desenha com novos movimentos sociais, com minorias políticas, é essencial, e promete muito.
No entanto, existe uma esquerda burocrática, que é comparável à direita num aspecto: ela também funciona pelo jogo de poder. Em meu novo livro, tentei separar os conceitos de política de jogo de poder. A meu ver, o que as pessoas comuns, que não são especialistas em filosofia, sociologia, teoria política, e que hoje manifestam ódio em relação à política, na verdade têm repulsa aos jogos de poder.
A esquerda que faz jogo de poder faz o mesmo jogo de poder da direita. Eu queria que a gente pudesse fazer política sem jogo de poder. Uma prova de que isso é possível seria unir as esquerdas. Por que a esquerda não se une no Brasil? Porque sempre acaba se submetendo ao jogo de poder e aí perde força.
Mas é possível governar sem fazer jogo de poder?
Acho que essa deve ser a meta. E na prática, a esquerda brasileira poderia dar essa prova de que é possível mudar o país a partir de uma unidade, que evidentemente manteria as diferenças, e que pudesse se contrapor de maneira pragmática ao avanço do fascismo e autoritarismo entre nós.
Não estou dizendo que as pessoas devam se tornar amigas. Continuamos com nossas diferenças pessoais, mas o futuro do país depende de nossa capacidade de ultrapassarmos os nossos projetos pessoais de poder. Eu, por exemplo, não tenho nenhum tipo de projeto de poder em relação ao Brasil. Fui candidata no Rio de Janeiro para além de qualquer tipo de projeto de poder, mas isso não é universal. A meu ver, a prova de que nos importamos com o nosso país e de que somos uma esquerda em construção e capaz de dar conta, de governar, passa pela unidade da esquerda.
Uma reflexão sobre o ressentimento
Marcia Tiburi explica o papel e o impacto do ressentimento na classe média brasileira:
“Ressentimento, de acordo com o pensador alemão Nietzsche, é aquilo que não foi elaborado e que é recalcado, e que necessariamente retorna porque não foi elaborado. Na política, isso também começou a ser explorado.
O filósofo holandês Baruch Spinoza, no século 17, falava que quando um governante quer dominar a população, se ele não for amado por ela deve deprimir essa população. Ele deve dar motivos para que essa população sinta medo e tristeza. É como se ele implantasse medo, tristeza, e eu diria também, ressentimento. A meu ver, o solo fértil para que essas falas fascistas possam vingar é justamente o solo do ressentimento, daquilo que não foi elaborado e que retorna.
No caso do Brasil, a classe social que mais representa o ressentimento é a classe média baixa.
Não estou falando daquela camada da população miserável, uma classe social faminta, que não tem o que comer. Me refiro à classe média baixa, próxima da pobreza, e ameaçada de se tornar pobre. Essa é uma classe muito assustada, é uma classe tomada pelo medo. É uma classe que para sobreviver não precisa apenas trabalhar muito, mas precisa conseguir uma sobrevivência psicológica. E nesse sentido transforma o seu ressentimento, toda a humilhação vivida, em discurso de ódio contra os ainda mais pobres ou contra aqueles que trazem a consciência ou o questionamento. O questionamento atrapalha psicologicamente. Gera um estresse a mais.
Imagina o que significa você ter consciência da pobreza e não ter recursos intelectuais para questionar essa pobreza. Mais fácil talvez – e acho que é isso que as nossas massas têm feito – é aderir ao discurso de salvação pelo ódio. Ao pregar o discurso de ódio – como o grande líder da nação também faz – é como se essas pessoas estivessem se salvando de um processo, de reconhecimento do quão vítimas elas são desse próprio sistema. Isso é uma operação complexa.
Então a pessoa imita o seu algoz, para fingir que não é uma vítima. Isso tem acontecido muito no Brasil. Pessoas que são alvo das promessas de destruição desse grupo defendem mudanças que não são benéficas a elas, o que as faz parecer que estão loucas. Mas na verdade essas pessoas estão tentando sobreviver psicologicamente. A manifestação fascista dos pobres no Brasil hoje é o sintoma da insuportabilidade da própria ameaça deste estado e deste governo.”
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