Europa e Suíça ignoram aumento das mortes de imigrantes
Em 7 de julho, durante uma operação de resgate da organização SOS Méditerranée, a guarda costeira líbia disparou tiros perto do barco da ONG, colocando em risco a vida da tripulação, bem como a dos migrantes resgatados.
Denunciando o incidente, a SOS Méditerranée e a Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho (FICVLink externo) pediram a todos os governos “que garantam que os ‘[agentes] humanitários possam fornecer apoio vital no mar sem arriscar suas vidas”.
A equipe havia acabado de resgatar 11 migrantes de um naufrágio em águas internacionais usando barcos infláveis na costa líbia. Embora todos os migrantes e equipes de resgate tenham voltado em segurança para o navio Ocean Viking operado pelas duas ONGs, vários sofreram ferimentos, incluindo o capitão do barco inflável de resgate mais próximo do navio de patrulha líbio. “O impacto das ondas criadas pelo navio-patrulha líbio em nossos barcos foi tão forte que machuquei minhas costas. Enquanto eles continuavam atirando e nos perseguindo, a segurança das pessoas e da tripulação resgatadas estava nas mãos de um atirador”, diz ele no comunicado de imprensaLink externo de 10 de julho.
A União Europeia e a Suíça continuam a financiar a guarda costeira líbia, apesar das suas ligações criminosas e de abusos contra os migrantes. A Suíça também contribui com financiamento para a Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira (Frontex). No ano passado, os eleitores suíços apoiaram mais financiamento para a Frontex, mas os opositores disseram que isso tornaria a Suíça cúmplice de abusos de direitos humanos e retrocessos ilegais.
No Reino Unido, o Parlamento já aprovou a Lei de Migração Ilegal, que a ONU diz violar suas obrigações internacionais. A Convenção sobre Refugiados de 1951 estaria então ameaçada?
Financiando um “sistema de violência”
A socorrista suíça Claire Juchat, coordenadora de comunicação da SOS Méditerranée a bordo do Ocean Viking na época, disse à SWI swissinfo.ch que o financiamento da União Europeia e da Suíça para a guarda costeira líbia é altamente problemático, porque não há a quem se possa atribuir responsabilidade. “Também está bem documentado que, uma vez que a guarda costeira intercepta pessoas no mar, essas pessoas estão sendo devolvidas a centros de detenção, onde são novamente torturadas”, diz ela. “Portanto, é um sistema de violência que é tornado possível pelo financiamento europeu.” O barco da guarda costeira líbia que disparou havia sido doado pela Itália três semanas antes.
Juchat salienta que a própria Comissão Europeia reconheceu as ligações entre a guarda costeira líbia e criminosos. “Alguns dos países vizinhos e de trânsito são mais difíceis do que outros, como a Líbia, onde temos indicações claras de grupos criminosos infiltrados na guarda costeira”, declarouLink externo a comissária europeia para Assuntos Internos, Ylva Johansson, em 6 de julho.
O número de migrantes e refugiados que cruzam o Mediterrâneo caiu de um pico em 2015, quando mais de um milhão cruzaram o mar para a Europa. Mas o número de mortes como proporção de tentativas de travessia aumentou drasticamente, especialmente este ano.
Maria Alcazar Castilla, vice-diretora regional da FICV para a Europa e Ásia Central, diz que a Europa não conseguiu criar caminhos seguros para as pessoas que fogem de conflitos, pobreza extrema e falta de oportunidades. “Eles têm que arriscar suas vidas e fazer viagens muito perigosas para tentar alcançar essa segurança”, disse ela à SWI.
Juchat diz que há múltiplos fatores por trás do aumento das mortes de migrantes, incluindo pessoas que tentam fugir da Líbia “custe o que custar” por causa da violência que lá sofrem, e também agora cada vez mais da Tunísia, “porque a situação no país está piorando”. Eles atravessam em barcos frágeis, geralmente pagando aos traficantes grandes quantias de dinheiro.
Agora, a UE assinou também um acordo com a TunísiaLink externo, destinado a reduzir a migração irregular. O sociólogo e ex-ministro tunisino Mehdi Mabrouk disse em entrevista à swissinfo que considera que esta não é uma “parceria real”, mas “visa apenas conter os fluxos migratórios e geri-los de uma forma dura e pesada”. Ele também diz que um discurso xenófobo do presidente tunisiano, Kaïs Saïed, em fevereiro, alimentou ataques racistas contra migrantes africanos na Tunísia.
Violação da Convenção sobre Refugiados
O regresso de pessoas a locais onde enfrentam sérias ameaças à sua vida ou liberdade é contrário ao princípio de “não devolução” consagrado na Convenção sobre os Refugiados de 1951, da qual o ACNUR, a agência das Nações Unidas para os refugiados, é guardião. “Ela também reconhece que os refugiados podem realmente ser obrigados a entrar em um país de asilo irregularmente, e não devem ser penalizados por tentar buscar segurança e proteção”, diz Shabia Mantoo, do ACNUR.
Questionada sobre o financiamento europeu à guarda costeira líbia, Mantoo disse apenas que, independentemente de as pessoas que fazem estas viagens serem reconhecidas como refugiadas ou não, elas têm o direito de serem protegidas e avaliadas. “As pessoas que são resgatadas ou interceptadas no mar não devem ser devolvidas a lugares onde possam enfrentar danos ou perigo. Este é um princípio fundamental do direito internacional. As pessoas que são resgatadas ou interceptadas no mar devem ser levadas para locais seguros, e isso é bastante claro.”
A ONU tem se manifestado mais especificamente sobre a Lei de Migração Ilegal do Reino Unido, agora prestes a se tornar lei. Em um comunicado de imprensaLink externo conjunto em 18 de julho, o ACNUR e o Escritório de Direitos Humanos da ONU em Genebra disseram que a nova legislação vai contra as obrigações do Reino Unido sob o direito internacional de direitos humanos e refugiados. Isso “terá consequências profundas para as pessoas que precisam de proteção internacional” e pode abrir um “precedente preocupante”, disseram.
O projeto de lei retira o acesso ao asilo no Reino Unido para qualquer pessoa que chegue irregularmente tendo passado por um país, ainda que brevemente, onde não enfrentou perseguição. A lei também exige sua remoção para outro país e cria novos poderes de detenção.
Engajamento e assessoria jurídica
Mas se o ACNUR acha que um país está violando suas obrigações de prestar abrigo previstas na Convenção sobre os Refugiados, o que ele pode realmente fazer? Mantoo diz que o ACNUR se envolve constantemente com os países e compartilhou suas preocupações com o Reino Unido, bem como propostas para uma “abordagem mais humana e econômica”, e “algumas de nossas recomendações já foram adotadas”. Ela diz que o ACNUR também enfatizou que o Reino Unido deve concluir um novo acordo de cooperação em matéria de asilo com seus vizinhos europeus para substituir o mecanismo de Dublin, que foi abandonado com o Brexit.
O ACNUR também prestou aconselhamento jurídico ao Tribunal de Recursos do Reino Unido sobre a proposta de legislação para enviar requerentes de asilo para o Ruanda, que considera problemáticaLink externo em termos de direito internacional, incluindo a Convenção sobre os Refugiados, embora Mantoo sublinhe que o ACNUR não é parte no caso. A corte de recursos anulou uma decisão anterior e considerou o esquema ilegal. No entanto, o governo do Reino Unido agora parece pronto para contestar o caso novamente na Suprema Corte.
De volta ao Ocean Viking, Claire Juchat, da SOS Méditerranée, diz que sim, é claro que seu trabalho é perigoso. “Mas, como cidadã suíça, eu também tenho a responsabilidade de não deixar as pessoas morrerem na fronteira da Europa. É inaceitável.”
Adaptação: DvSperling
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