Como o medo do comunismo transformou suíços em espiões
Na Suíça, a Guerra Fria encontrava-se presente mais na mente das pessoas do que nas bases militares. O grande terror era o comunismo soviético, justificando a desconfiança de todos aqueles que não se distanciavam o suficiente dele. alimentando a ilusão de que o inimigo podia estar tão próximo como os próprios vizinhos, prestes a espalhar o veneno comunista.
Janeiro de 1957: Martha Farner dirige-se normalmente para sua consulta no dentista, em Schwyz. Ao sentar-se na cadeira, seu dentista começa a gritar: “Espere, espere, antes de servir, você tem que renunciar! “Renunciar a quê?” “Tens de renunciar ao comunismo!” Como um exorcista, ele exigiu de sua paciente a Abrenuntiatio diaboli. Segundo conta ela em suas memórias, os comunistas eram vistos na Suíça como o “diabo na carne” – especialmente depois de 1956.
O linchamento de Thalwil
Em Novembro de 1956, os tanques soviéticos invadiram a Hungria para impedir as incipientes que reformas democráticas que os comunistas húngaros experimentavam. Centenas de milhares fugiram do país – muitos para a Suíça. Os refugiados húngaros foram acolhidos aqui com uma hospitalidade que não se viu nem durante nem depois da Segunda Guerra Mundial. Os húngaros não eram apenas pessoas necessitadas, mas irmãos e irmãs na luta contra o comunismo.
Este artigo é o prelúdio da nossa série “A Suíça na Guerra Fria”. Swissinfo.ch ilumina vários aspectos da Suíça naquela época, que, apesar de declaradamente neutra entre os dois blocos antagônicos liderados por EUA, de um lado, e pela União Soviética (URSS) de outro, alinhava-se explicitamente com o bloco europeu ocidental.
Ao mesmo tempo, no entanto, crescia a fúria contra aqueles que eram suspeitos de ter qualquer espécie de relação com o “comunismo imperialista” da URSS. O partido comunista suíço, oficialmente intitulado “Partido do Trabalho” (Partei der Arbeit, PdA) era chamado insultuosamente como “Partido do Estrangeiro” e seus membros foram declarados inimigos do país. Suas sedes eram atacadas, alguns de seus membros demitidos de seus empregos, outros foram fisicamente agredidos.
Um certo Konrad Farner, marido de Martha Farner e historiador de arte por profissão, foi particularmente visado pela ira popular. O jornal conservador “Neue Zürcher Zeitung” (NZZ) chegou a publicar o endereço completo de Farner, instigando seus leitores a lhe perguntar o que pensava da invasão soviética da Hungria.
Logo em seguida, os Farners começaram a receber chamadas anônimas: “Morra! – “Seria melhor se fosses para a Sibéria”. Poucos dias depois, uma multidão formou-se em frente à sua casa em Thalwil, no cantão de Zurique, gritando: “Enforquem-no!”
A maioria dos lojistas da vila recusava-se a atender a família, os artesãos já não trabalhavam para eles – ou só trabalhavam escondidos. Na imprensa local, foram colocados anúncios pedindo a expulsão da família: “Queremos e podemos limpar nossa comunidade deste coveiro da liberdade, que até agora riu dos democratas inocentes”. Mandar as crianças para a escola tornou-se impensável: A família Farner acabou se mudando de Thalwil. O movimento foi bem sucedido.
Dança tribal
A União Soviética, com a sua política externa agressiva, ofereceu certamente motivos para um ressentimento anticomunista. E o PdA não foi certamente um mestre em distinguir-se do socialismo violento de Josef Stálin – que lhe custou todo a seu capital político após a Segunda Guerra Mundial.
Mas o anticomunismo na Suíça superou a crítica democrática, ostentando um fanatismo digno de seitas. O escritor Friedrich Dürrenmatt chamou o anticomunismo da Guerra Fria de “dança tribal dos suíços”.
A Suíça havia ficado isolada depois de 1945 – a sua neutralidade durante a guerra era bastante suspeita para as potências vitoriosas. Por isso, a Suíça oficial se posicionou assiduamente do lado do “mundo livre”.
E a demagogia contra o comunismo também ofereceu uma oportunidade de não ter de falar sobre o seu próprio papel na Segunda Guerra Mundial. Dürrenmatt acrescenta: “Já que não fomos heróis da guerra, agora pelo menos queremos ser os heróis da Guerra Fria.”
Lavagem cerebral – o medo da guerra psicológica
No final de 1956, os estudantes da campanha “Esquecer Jamais”, fundada por ocasião da repressão húngara, ensinavam como fazer coquetéis molotov. Nos panfletos, distribuídos juntamente com pavios para os molotovs, davam instruções precisas sobre a forma mais eficaz de destruir um tanque russo. Praticavam uma guerra que simplesmente não queriam ver perto.
O comunismo também podia ser pintado como algo satânico que deve ser expulso porque o inimigo comunista nunca se tornou realmente tangível. Embora Moscou e a Sibéria fossem lugares geográficos, o inimigo, como o Belzebu, não era era nada tangível no dia-a-dia das pessoas, mas mesmo assim ainda era considerado onipresente e onipotente.
Afinal, os estrategistas militares suíços concordavam em uníssono que a invasão iminente da União Soviética já havia começado muito antes que qualquer tanque soviético atravessasse a fronteira. Segundo eles, muito antes do primeiro tiro, já havia uma violenta, rasteira e silenciosa guerra psicológica, invisível aos olhos destreinados.
Um poema zombeteiro na revista satírica “Nebelspalter”, em 1958, avisou ameaçadoramente: “Durma bem, suíços! A ditadura vermelha chega ao poder sem luta e silenciosamente de um dia para o outro, e sempre como o golpe de uma minoria.” (“Schlaf, Schweizer nur! Die rote Diktatur kommt kampf- und lautlos über Nacht und stets als Minderheit zur Macht.”)
O cenário mais comumente generalizado era que os russos tinham técnicas sofisticadas à sua disposição para penetrar os cérebros ou as almas das pessoas, a fim de torná-las relutantes e incapazes de resistir.
Em 1956, a revista semanal popular “Schweizer Illustrierte” narrou a história de seis dissidentes russos que tiveram seu caráter completamente destruído por causa de uma droga que lhes tinha sido injetada, acabando por obedecer a uma ordem de se jogarem de uma janela sem hesitação. O artigo conclui: “Onde quer que os russos coloquem suas mãos, não surpreende que isso seja verdade!”
Manter a população desperta – e alerta
Várias organizações, portanto, assumiram a tarefa de salvar a população e não deixa-la “adormecer” por conta da sutil propaganda soviética. Mal terminada a Segunda Guerra Mundial, certos grupúsculos, até então engajados moralmente na luta contra o nazi-fascismo, encontraram um novo campo de atividade no anticomunismo.
O “Serviço Suíço de Esclarecimento” (Schweizerische Aufklärungsdienst, SAD), fundado em 1947 como sucessor privado de organizações de propaganda estatal, desempenhou aqui um papel central. Os membros do SAD estavam preocupados, em todo o país, em esclarecer a população sobre o perigo que o comunismo representava – em conferências e eventos, muitas vezes com financiamento estatal.
No início da década de 1960, o jornalista Jean-Rudolf von Salis escreveu que o país estava sendo tomado por uma obsessiva psicose anticomunista: “Há pessoas que enxergam um ninho de conspiradores bolcheviques numa mera cooperativa de consumidores.” Nesta perspectiva, qualquer voz crítica era denunciada como “desonesta”, prestando-se a minar a estrutura do Estado com estratagemas secretos.
Os pacifistas, por exemplo, eram acusados de querer enfraquecer a capacidade de luta dos militares suíços. Qualquer artigo de jornal poderia enfraquecer a moral na luta contra o mal. Tudo à esquerda do centro era suspeito de minar a força militar. Assim, o anticomunismo foi também um meio útil para marginalizar a crítica ao Estado, ao exército e à pátria.
A perspectiva demonizante sobre o comunismo e sobre tudo o que parecia assemelhar-se a ele acabou tornando os sistemas políticos ocidentais cada vez mais semelhantes aos da Cortina de Ferro num ponto: a vigilância total.
Não foi até o fim da Guerra Fria que o público suíço percebeu o quanto os serviços secretos e a polícia estavam tentando documentar e observar uma suposta infiltração política.
O escândalo de Fichen, em 1989, revelou que o comportamento político de quase 700.000 pessoas foi alvo de estreita vigilância. O foco não foi de modo algum apenas sobre os comunistas, mas sobre todos que ousassem criticar a sociedade majoritária: esquerdistas de todos os matizes, verdes, alternativos, ativistas do Terceiro Mundo, feministas.
Mas mesmo com o fim do bloco de Leste, o anticomunismo não desapareceu totalmente. Organizações como a anticomunista “Pro Libertate” – também fundada em 1957 – tentaram reposicionar-se num mundo supostamente sem divisões.
Em vez de comunismo, falam agora de “correção política”. Em vez de polemizar contra a ameaça da revolução mundial, atacam agora organizações transnacionais como a ONU e a UE. O centro dos medos anticomunistas transferiu-semoveu-se depois de 1989: De Moscovo a Bruxelas.
Adaptação: Eduardo Simantob
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