“Há um abismo entre a Rússia e a Europa na proteção dos direitos humanos”
Se na Suíça a participação direta das pessoas no governo do país é uma tradição de longa data, os russos, pelo contrário, não têm oportunidades parecidas. Em resposta ao autoritarismo, figuras públicas e ativistas criam fundações e organizações sem fins lucrativos com o objetivo de ajudar a sociedade e pessoas específicas em áreas críticas. Uma desses setores, é claro, é o sistema penitenciário, e a ONG Rússia SentadaLink externo (Rus Sitting) é atualmente a organização de direitos humanos mais famosa do país que trabalha na área.
Fundada há mais de 10 anos, a Rússia Sentada é dirigida pela figura pública e ativista Olga Romanova. A ONG ajuda pessoas presas e suas famílias em diferentes estágios – desde o julgamento e a sentença até a adaptação à nova vida após a libertação.
Os últimos três anos foram muito corridos para Romanova: por motivos políticos, ela se mudou da Rússia para Berlim, escreveu um livro e se tornou uma blogueira popular. A Swissinfo.ch encontrou com a fundadora da ONG e conversou sobre as perspectivas da organização, a situação dos prisioneiros na Rússia e na Europa durante a pandemia, o caso Navalny e o que a Suíça poderia fazer para apoiar os direitos humanos no mundo.
swissinfo.ch: Como está a Rússia agora? Sei que você não está mais em Moscou, mas até mesmo na Europa 2020 acabou sendo um ano turbulento.
Olga Romanova: A Rússia Sentada sobreviveu e se desenvolveu muito. A Escola do Defensor Público (um importante projeto da fundação de longo prazo) ainda está funcionando, embora online devido à pandemia. Além disso, criamos um escritório de advocacia na organização e as atividades jurídicas alimentaram muitos outros projetos.
Em geral, “A Rússia Sentada” continua sendo o trabalho da minha vida. Enfrentamos a pandemia, pode-se dizer, preparados: já faz três anos que não moro na Rússia e nós, na verdade, trabalhamos remotamente. Conseguimos criar um canal no YouTube, o My Russian Rights (MYR) Link externohá pouco menos de um ano que já conta com mais de 30 mil subscrições. E também não posso esquecer de mencionar a Fundação “Para sua e nossa liberdade” em Praga que eu também fundei.
swissinfo.ch: Você já se sente confortável na Alemanha?
OR: Quando cheguei a Berlim, primeiro morei em Wilmersdorf, uma área próspera, respeitável, mas entediante no final das contas. Agora eu moro em Kreuzberg, que é interessante, borbulhante, muito bonito e tem uma mistura de culturas. Aqui, é claro, também há pessoas em situação social de vulnerabilidade que ficam aglomeradas ao redor do metrô – pessoas que a polícia não persegue durante uma pandemia, mas pede para a sociedade manter distância.
Ativista de direitos humanos russa, publicitária e blogueira. Fundadora da organização não governamental (ONG) Rússia Sentada, que defende os direitos das pessoas encarceradas e de suas famílias.
Em 2017, deixou a Rússia e foi para Berlim devido à perseguição política: em junho desse ano o escritório de sua organização foi invadido sob acusação de desvio de recursos públicos – embora a Rússia Sentada nunca tenha recebido dinheiro do governo russo.
Depois de deixar a Rússia, aprendi a relaxar e apreciar o domingo. Foi estranho no começo. Nesse dia, nada funciona, as lojas estão fechadas, não dá para passar aspirador e você pensa: “O que fazer?”. Então eu entendi porque existe o domingo: para você, para descansar.
swissinfo.ch: Quais emoções as notícias da Rússia te despertam?
O. R: Quando a história do envenenamento de Navalny veio à tona, para ser honesta, foi assustador, realmente assustador. Havia a sensação de que as autoridades estavam tentando dizer a todos nós: “Sim, isso pode acontecer com todos.”
swissinfo.ch: Se voltarmos às atividades da Rússia Sentada, você poderia nos contar sobre os últimos projetos implementados?
O. R: Recebemos uma subvenção da União Europeia para monitorar a situação dos direitos humanos em locais de detenção. O projeto surgiu há dois anos e já foi concluído. A Rússia Sentada trabalhou junto com o Levada Center, desenvolveu uma metodologia e criou um questionário. Funcionava assim: conversamos com presidiários ou seus familiares e, com base nas perguntas e respostas, captávamos uma imagem de como são as coisas nesta prisão – como funciona o aquecimento, se a presença dos advogados é permitida, se há alguma reclamação ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos e etc.
Além disso, outra pergunta foi adicionada ao questionário no ano passado, justamente sobre a Covid. Queríamos saber quantos presos estão realmente doentes. Porque de acordo com dados oficiais de abril de 2020, eram 3.000 funcionários do sistema carcerário doentes e apenas dois presos com o vírus. É claro que isso não é possível. As autoridades precisam de dados para relatar e nós precisamos entender a escala do problema para saber como lidar com ele.
Fizemos um bom trabalho e um resultado nos surpreendeu. Normalmente, são os presidiários e seus parentes que falam conosco. Mas, neste caso, diversos funcionários do sistema carcerário nos contataram. Eles representaram um terço de todos os entrevistados. Relataram coisas diferentes: como o caso de alguém que ficou três semanas trabalhando além dos próprios turnos ou de trabalhadores que precisaram converter prisões em hospitais, sem receber apoio de médicos. Ou seja, eles se voltaram para nós relatando as situações críticas que enfrentam – e contaram para nós porque não têm esperança e confiança no Estado.
swissinfo.ch: Como você se comunicou com os entrevistados? Online?
O. R.: De maneiras diferentes. Aconteceram conversas ao vivo, com a ajuda de voluntários ou, por exemplo, de médicos que conhecem parentes de pessoas encarceradas. Ou entrevistas com ex-presos que em geral são muito solícitos, basta serem abordados com humanidade. E eles conhecem as necessidades das prisões não por boatos e também enfrentam problemas mesmo depois de cumprir a pena. Existem muitas diferenças no cumprimento de sentenças na Rússia e na Suíça ou Alemanha, mas o principal é a má reabilitação de ex-presos na Federação Russa.
Se na Europa tudo é voltado para devolver a pessoa à sociedade, para que ela tenha um emprego, para que não se torne um marginal, na Rússia é tudo muito mal organizado e a prisão é uma punição. A pessoa é excluída da vida – e frequentemente junto com a família, sofre estigmas.
swissinfo.ch: Como as prisões europeias lidam com a pandemia?
O. R.: Tanto na Suíça como em alguns países da UE, a admissão de novos condenados foi interrompida. Durante a primeira onda, as pessoas ficaram em quarentena e esperaram ser chamadas por detenção. Os tribunais tentaram não prender e sim multar. Até extradições foram paralisadas.
swissinfo.ch: Como a ONG Rússia Sentada está se saindo no aspecto financeiro?
O. R.: Há cada vez menos concessões de verbas institucionais – no momento elas simplesmente não existem. Cerca de três anos atrás chamei atenção para o fato de que programas e financiamentos de projetos relacionados à Rússia estão sendo encerrados na Europa. Eu entendo isso bem: quando as autoridades inventaram a narrativa dos “agentes estrangeiros”, apenas alguns protestaram. Portanto, a lógica das fundações e dos patrocinadores internacionais é clara: se as pessoas não se preocupam com os seus próprios direitos e parecem prontas para suportar o que está por acontecer, então por que a Europa deveria se preocupar com questões ignoradas pelos cidadãos locais?
Mas recebemos doações privadas de diferentes formas. Às vezes não transferem dinheiro, mas enviam pacotes com chá, comida enlatada ou, digamos, calçados. As pessoas ajudam no que podem e sabem que a ajuda enviada irá para as necessidades dos presos.
swissinfo.ch: Quais são as dificuldades que a ONG Rússia Sentada enfrenta na Rússia e na Europa?
O. R.: Um dos principais desafios é o desconhecimento dos direitos dos cidadãos. Como por exemplo: o estado retira uma menina de 14 anos de sua casa e a tranca em um hospital psiquiátrico, com o conhecimento dos pais. Mas acontece que em uma reunião de pais anterior, sua mãe havia ouvido: “Algo está errado com sua filha”, e alguma autoridade havia distribuído um papel que a mãe assinou. E assim a filha foi retirada da família. No final, esse foi um caso com desfecho positivo, porque a menina pode ser resgatada logo e agora está tudo bem – mas foi uma situação muito difícil, pois tudo aconteceu com o consentimento formal dos pais.
Mas na Europa, porém, há dificuldades em explicar a mentalidade por trás do que ocorre na Rússia. Deixe-me explicar com outro exemplo: para procurar criminosos pela Interpol, cada país tem uma cota. Um país não pode declarar mais pessoas na lista de procurados do que o tamanho de sua cota. Bem, a Rússia tem um número muito grande de 160 pessoas procuradas – o dobro da China e dos Estados Unidos juntos. E, dentre os nomes dessa lista, 99% são pessoas da Chechênia.
É muito difícil explicar aos europeus que quase todos os casos são perseguições políticas porque é assim que as autoridades lidam com os seus adversários. Os documentos de extradição são enviados perfeitamente redigidos e esse é um problema de proteção dos direitos humanos locais, pois é impossível provar que o que foi escrito é mentira. Olhando o documento, o europeu entende que a pessoa em questão é terrorista, islamita, enfim, criminosa e deve ser extraditada. Este foi o caso nos últimos anos antes do assassinato de Hangoshvili, dois anos atrás, em Berlim. Depois de descobrir tudo, o Tribunal Constitucional anunciou que os documentos da Chechênia não eram mais aceitos, pois a justiça estava sendo violada lá.
swissinfo.ch: Apesar da pandemia, manifestações contra a polícia ocorreram em vários países europeus no verão e outono de 2020. A polícia é muito criticada, repreendida e se fala muito em “excessos”. O que você acha disso?
O. R.: Quem é da Rússia têm medo da polícia desde sempre. Porque a força policial na Rússia é tamanha que é preferível evitá-la. Certa vez, Darwin fez um experimento: ele pressionou a testa contra um terrário de vidro e quando uma cobra correu em direção à sua cabeça, o cientista se esquivou, dando passos atrás, embora soubesse perfeitamente que havia um vidro forte entre eles. Em Berlim, perguntei a jovens que estudavam para ser policiais como seus colegas os tratavam, eles responderam que era completamente normal. Os policiais daqui são educados e tranquilos e agem de acordo com a lei, embora eu tenha certeza de que há erros, mas não são sistêmicos.
Bem, se falamos sobre a expressão “fuck the police” da juventude – é primeiro uma rebelião dos adolescentes contra seus pais. Aos 30 anos você não se fala mais nisso, soaria estúpido, além disso, com uma idade mais avançada, você tem muito mais contato com a polícia. Ela também ajuda a remover o gato da árvore ou resolve um pequeno conflito se, digamos, uma lavanderia tiver perdido sua camisa.
swissinfo.ch: Comparando brevemente a proteção dos direitos humanos na Rússia e na Europa, o que é comum e o que é diferente?
O. R.: Há, é claro, uma lacuna entre nós. A tarefa da proteção dos direitos humanos na Rússia é explicar no século 21 que a tortura é ruim, que é proibida pela Convenção de Genebra. A ideia de que as pessoas não devem ser torturadas em nenhuma circunstância ainda precisa ser fundamentada e disseminada. Na Rússia, existe uma lei que permite o uso de força física e armas paralisantes se uma pessoa atacar você – e a polícia sempre pode dizer que ela foi atacada. E a mentalidade é tal que as pessoas pensam: “não há fumaça sem fogo”.
Por que nosso sistema legal é tão monstruoso, tão corrupto? Porque a elite pensa que não será afetada. Ele vive de acordo com a fórmula “aos amigos, tudo. Aos inimigos, a lei”.
Nas prisões da Europa há uma mentalidade diferente. Uma vez falei com um oficial de prisão na Alemanha. Eu perguntei se ele ficava nervoso, se gritava com os presos. Ele disse: “Não, nunca. Pelo que? Se eu gritar eles não vão gostar, vão reagir mal e, possivelmente, se comportar de forma inadequada. Tudo isso vai gerar insatisfação, reclamações, fiscalizações e por que eu preciso disso?”. Bem, eu nem sequer perguntei a ele sobre tortura…
swissinfo.ch: Como você acha que a Suíça reagiria apropriadamente em situações como o caso Navalny?
O. R.: A questão é que qualquer reação é importante para a resistência da sociedade civil na Rússia. Precisamos ser ouvidos. Reportagem na mídia suíça? Ótimo. Fórum, workshop, festival com a participação de políticos da oposição russa, ativistas, jornalistas, ativistas de direitos humanos? Sim, isso também é apoio.
As sanções da Suíça contra indivíduos específicos são sensatas. A investigação sobre a origem dos ativos suíços de oficiais russos e oficiais de segurança é excelente.
Ou, por exemplo, uma pessoa que reside na Suíça, que fala russo ou estuda russo, pode escrever uma carta a um prisioneiro político russo na prisão. Isso também é uma grande ajuda, porque uma carta como essa – com um envelope da Suíça – impressionará as autoridades penitenciárias e pode evitar uma tortura. Além do fato de que geralmente é um apoio moral muito bom para uma pessoa na prisão.
Adaptação: Clarissa Levy
Adaptação: Clarissa Levy
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