Leis anti-racismo continuam contestadas
É necessário confrontar sistematicamente a face "escura" da sociedade suíça com o estado de direito e correr, ao mesmo tempo, o risco de sufocar inutilmente a liberdade de expressão? Vinte anos após a adoção das normas penais antirracismo pelo eleitor suíço, a direita conservadora relança o debate.
Durante um festival de iodelei (n.r.: uma forma de canto principalmente conhecido na região dos Alpes), em um bar, ou ainda na página internet de um escritório de arquitetura: informações de conteúdo racista podem aparecer nos locais aparentemente mais inofensivos. Porém logo que a dignidade humana de um indivíduo ou de um grupo é ferida, ou que a linha de incitação ao ódio é ultrapassada, os autores são passíveis de serem processados na justiça.
Mais de 380 processos foram conduzidos desde a entrada em vigor da norma penal antirracista em janeiro de 1995. Em sua grande parte, as penas pronunciadas foram multas simples ou multas com sursis. A maior parte dos condenados foi de pessoas anônimas, mas políticos, mídias, ativistas da extrema direita e funcionários também tiveram de responder por seus atos frente à justiça.
“Negro, negro sujo, filha da puta, idiota” foi o insulto proferido várias vezes e frente a inúmeras testemunhas contra um homem que assistia um festival de iodelei (n.r.: uma forma de canto principalmente conhecido na região dos Alpes) em Interlaken, em 2012.
O criminoso foi reconhecido culpado de violação da norma penal antirracista e condenado a uma multa de 750 francos e uma multa de três mil francos com sursis.
Fonte: resumo da decisão penal na página da Comissão Federal contra o racismo
“Ditadura do politicamente correto”
Como essa legislação resiste à prova do tempo? Segundo o texto da última moção sobre o tema assinada pelo partido União Democrática do Centro (UDC, direita conservadora), ela provocou “problemas jurídicos, abusos e processos absurdos”. Entregue em março de 2014, a intervenção parlamentar visa a revogação da norma penal antirracista, ou seja, o artigo 261bis do Código Penal Suíço.
O deputado federal Oskar Freysinger, já no passado autor de uma moção exigindo a modificação do artigo, estima que a lei seja contra produtiva e que cria uma ditadura do politicamente correto. “A lei é instrumentalizada para fins políticos. Os cidadãos não se sentem mais livres de se expressar. Eles censuram suas opiniões por medo de um processo penal.”
Já do seu lado, a Comissão federal contra o racismo estima que os juízes estão aplicando a lei de forma excessivamente restritiva. No último relatório sobre a Suíça, a Comissão das Nações Unidas pela eliminação da discriminação racial adotou a mesma posição.
Um arquiteto publicou material antissemita na sua página da internet, dentre os quais livros e textos negando o holocausto, propagando estereótipos assim como afirmações difamatórias e discriminatórias em relação a judeus.
A pessoa afirma não ter lido os textos e que desconhecia o seu conteúdo racista. Ele foi condenado a uma multa de nove mil francos com sursis.
Fonte: resumo da decisão penal na página da Comissão Federal contra o racismo
O caso Perinçek
O caso que mais provocou polêmica nos últimos anos na Suíça diz respeito ao nacionalista turco Dogu Perinçek, acusado de ter negado o genocídio armênio de 1915 durante um discurso pronunciado em Lausanne, em 2005.
A norma penal antirracista proíbe especificadamente a negação, a banalização grosseira e a justificação do genocídio ou de outros crimes contra a humanidade. Dogu Perinçek foi considerado culpado e condenado a uma pena de multa, mas entrou com recurso e teve ganho de causa na Corte Europeia dos Direitos Humanos, que reconheceu uma interferência em seu direito à liberdade de expressão.
O caso continua. No início do mês, o tribunal aceitou o recurso da Suíça e o reexaminará. Oskar Freysinger considera que os políticos e os historiadores não deveriam ser penalizados, pouco importando a gravidade ou estupidez das suas formulações. “Ao processá-los nessas circunstâncias, os transformamos em mártires e validamos suas opiniões”, diz.
“É por essa razão que não deveríamos dar a nacionalidade suíça aos muçulmanos”, escreveu o autor de um artigo publicado no jornal de um partido político não especificado. O Tribunal da Turgóvia julgou que o artigo era difamatório para os muçulmanos como grupo.
Ele rejeitou os argumentos da defesa, para quem os muçulmanos não poderiam ser protegidos pela norma penal antirracista já que não representam uma raça, mas sim uma religião. O autor do artigo foi condenado a uma multa de 170 francos e uma multa de 5.400 francos com sursis.
Fonte: resumo da decisão penal na página da Comissão Federal contra o racismo
“Porco estrangeiro”
Enquanto a UDC vê excessos na lei, fomentando uma “cultura de denunciação” e um “Estado dirigido por juízes”, Martine Brunschwig-Graf, presidente da Comissão federal contra o racismo, estima contrariamente que os magistrados têm a tendência de aplicar a lei de forma muito restritiva, privilegiando geralmente a liberdade de expressão.
Ele fornece dois exemplos recentes: o primeiro, em 2007, diz respeito a um policial que tratou um argelino, suspeito de ter cometido um furto no Salão da Relojoaria da Basileia, de “porco estrangeiro” e “sujo solicitante de asilo”. O policial foi inocentado ao entrar com recurso em fevereiro de 2014. O tribunal considerou que os insultos não violavam a norma penal antirracista, pois não eram dirigidos diretamente contra uma etnia ou uma religião específica. A utilização das palavras “porco” e “sujo” seguida de uma menção da nacionalidade de uma pessoa não é considerada uma violação da lei, segundo os magistrados.
O segundo exemplo concerne uma saudação nazista efetuada durante um encontro de membros da extrema-direita na planície do Grütli em 1° de agosto de 2010, feriado nacional da Suíça. O Tribunal Federal, a mais elevada instância jurídica do país, absolveu o acusado maio 2014, argumentando que ele não estava disseminando uma ideologia, mas sim “meramente expressando suas próprias convicções.”
“É um problema que atinge toda a sociedade, não somente a justiça. Esse veredicto dá a impressão que alguns comportamentos ofensivos são permitidos”, julga Martine Brunshwig-Graf.
Por ocasião de uma entrevista radiofônica, o proprietário de um bar de St. Gallen declarou que não admitira nenhum “albanês, iugoslavo ou negro” no seu estabelecimento e que havia solicitado ao seu segurança de aplicar as normas com rigor.
O proprietário do bar foi condenado a uma multa de 500 francos e uma multa de 3.300 francos com sursis.
Fonte: resumo da decisão penal na página da Comissão Federal contra o racismo
Piadas duvidosas ou racistas?
No entanto, algum desconforto é evidente, mesmo dentro das fileiras de militantes antirracistas. Alguns deles acreditam que a utilização intensiva de ações legais sempre que alguém fizer um comentário de mau gosto não é a solução.
Em uma tribuna publicada no site Tageswoche.ch, o antigo presidente da Comissão federal contra o racismo, Georg Kreis (1995-2011), deplorou o processo aberto contra um “humorista”, que havia empregado o estereótipo do “judeu ávido por dinheiro” durante uma entrevista na televisão.
Alexander Tschäppät, prefeito de Berna, está sendo processado por uma piada feita sobre imigrantes italianos “preguiçosos” durante um show humorístico em dezembro de 2013. Um advogado de origem italiano é o autor da queixa penal. Atualmente ela está sendo avaliada pela Procuradoria local.
“Logo que uma norma penal antirracista foi introduzida na Suíça em 1995, ficou claro para os especialistas que as queixas e acusações seriam examinadas com rigor e que apenas as violações claras seriam levadas aos tribunais a fim de não danificar a norma de absolvições em casos questionáveis”, escreveu Kreis.
A nova moção parlamentar da UDC com o objetivo de abolir a norma antirracista menciona o caso particular dos humoristas: “Mesmo eles precisam se conter para evitar processos”. Na resposta escrita à moção, o Conselho Federal (governo federal) reconhece que as médias destacaram o número crescente de queixas penais feitas após apresentações humorísticas. “Mas segundo o conhecimento do governo federal, nenhuma delas teve como resultado uma condenação por discriminação racial”, afirma.
Oitenta e sete países, dentre os quais a Suíça, assinaram a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. O artigo 4 dela estipula:
“Os Estados Partes condenam a propaganda e as organizações que se inspiram em ideias ou teorias fundadas na superioridade de uma raça ou de um grupo de pessoas de certa cor ou de certa origem étnica ou que pretendem justificar ou encorajar qualquer forma de ódio ou de discriminação raciais, obrigam-se a adoptar imediatamente medidas positivas destinadas a eliminar os incitamentos a tal discriminação…”
A Áustria, Bélgica, França, Irlanda, Itália, Japão e a Suíça interpretam o artigo 4 de forma a impedir que ele não viole a liberdade de expressão, de opinião, associação e reunião. Os Estados Unidos não aceitam, entretanto, nenhuma obrigação devido à convenção de restrição dos direitos individuais à liberdade de expressão, associação e expressão contida na constituição do país e outras leis nacionais.
Para proteger os membros da UDC
Foram muito mais a UDC e seus membros que se encontraram nos últimos tempos em evidência por ter enfrentado a lei. Um tribunal de Zurique condenou em maio de 2014 um antigo membro do partido pela publicação de um comentário na rede social Twitter em junho de 2012: “Talvez a gente precise de uma nova Noite dos cristais…desta vez contra as mesquitas.”
Um tribunal julgou que o tweet era ofensivo tanto para muçulmanos como para judeus. A “Noite dos cristais” refere-se a pogroms na Alemanha em novembro de 1938, durante a qual aproximadamente cem pessoas foram assassinadas e empresas e sinagogas atacadas sob o olhar benevolente das autoridades.
Seria o interesse da UDC de revogar a norma penal antirracista unicamente para proteger seus membros e permitir-lhes exprimir livremente suas opiniões contestáveis? Oskar Freysinger contesta. “Quero defender o direito de cada pessoa, seja ela de esquerda ou direita, de exprimir opiniões controversas. Uma democracia deveria ser suficientemente forte para aguentar isso.”
Adaptação: Alexander Thoele
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