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“A liberdade dos suíços inclui o direito de possuir uma arma”

Pessoas fazendo exercícios de tiro
Na Suíça existem 60 mil membros de clubes de tiro. Keystone

A associação Pro Tell, que luta por uma legislação mais liberal para as armas de fogo, atraiu recentemente a atenção da mídia suíça com a breve adesão do recém-eleito conselheiro federal Ignazio Cassis. Aproveitando a onda de publicidade gratuita obtida, a associação prometeu a seus membros lançar, durante uma sessão extraordinária em Berna, um possível referendo contra a lei de armas de fogo da União Europeia.

“Guilherme Tell”, o legendário herói nacional suíço, era o nome que se lia na carteira fictícia de sócio exposta na entrada do Hotel Nacional em Berna. E sem a carteira de sócio, não era possível ter acesso à assembleia extraordinária da Pro Tell, o mais importante grupo de lobby de armas no país.

Quem teve acesso recebeu um maço de documentos, dentre os quais a revista de extrema-direita “Schweizerzeit” e um abridor de garrafas com o emblema do movimento juvenil do Partido Popular Suíço (SVP em alemão, UDC em francês).

Os 255 membros presentes, bem como os membros do diretório, eram majoritariamente homens. Antes do início se escutava o dialeto suíço, francês e o alemão padrão. Mas a diversidade cultural terminava aí.

Um suposto “golpe”

A assembleia começou com o hino nacional. À exceção dos dois membros do diretório, ninguém cantou junto com a melodia, pois o texto do hino só foi projetado na tela tarde demais.

A desorganização é emblemática da atual situação da associação. O lobby suíço pelas armas de fogo encontra-se desde o ano passado engalfinhada em conflitos internos – no outono de 2016 o presidente de longa data da Pro Tell renunciou alegando um golpe. No fim de junho de 2017, tanto o presidente provisório que o sucedeu como toda a diretoria não conseguiram se reeleger.

Hans-Peter Wüthrich, oficial reformado de alta patente do exército suíço e atual presidente, tornou-se membro da Pro Tell naquela ocasião.

A curtíssima adesão de Cassis

Em outubro foi divulgado na imprensa suíça que o parlamentar Ignazio Cassis, recém-eleito como ministro das Relações Exteriores, tinha sido admitido como membro da Pro Tell pouco antes de sua eleição em 20 de setembro de 2017.

Devido às intensas críticas, o político natural do cantão do Ticino revisou sua decisão e anunciou seu imediato desligamento da organização.

A Pro Tell anunciou que o “caso Cassis” lhe trouxe 500 novos afiliados.

Naquele sábado, em Berna, Wüthrich fez alusões a possíveis irregularidades no orçamento de 2016, comentou a saída do diretório precedente e, com palavras mais medidas, mencionou a breve adesão do recém-eleito ministro suíço, Ignazio Cassis, do Partido Liberal.

Com tantas mudanças, a condenação por discriminação racial, em meados de agosto, do vice-presidente da Pro Tell e deputado federal pelo SVP, Jean-Luc Addor, acabou ficando em segundo plano. “Queremos mais disso!”, postou Addor no twitter em seguida a um tiroteio em uma mesquita de St. Gallen.

A despeito de haverem vários bons motivos para uma autocrítica, Wüthrich passou rapidamente pelos itens da agenda, apresentou um novo logotipo, um novo website e um documento contendo novas e ambiciosas diretrizes estratégicas.

“Em nossa luta, e eu falo deliberadamente de luta, não deixaremos jamais o caminho do estado de direito, jamais”, afirma Wüthrich em suas diretrizes.

Um “efeito Cassis”?

Jean-Luc Addor conseguiu montar uma organização de apoio em nível nacional. Para tanto convenceu sessenta parlamentares da Câmara Baixa e do Conselho de Estados (Senado) a participarem de um grupo parlamentar contra o endurecimento do direito às armas. “Berna tem que perceber que estamos aqui, presentes em Berna”, disse Wüthrich.

A Pro Tell tem atualmente em torno de 11 mil membros; são aproximadamente 1.500 membros a mais do que quando ocorreram as mudanças de direção no final de junho. De acordo com o presidente Wüthrich, 500 desses novos membros vieram devido à atenção midiática recebida na ocasião da adesão e quase imediata saída do ministro Cassis. A meta até o fim de 2018 é atingir a marca de 20 mil membros.

Hans-Peter Wüthrich (esq.), presidente da Pro-Tell, e Jean-Luc Addor, vice-presidente.
Hans-Peter Wüthrich (esq.), presidente da Pro-Tell, e Jean-Luc Addor, vice-presidente. protell.ch

Mesmo atingindo essa meta, esse número é apenas uma fração do total de proprietários suíços de armas. O governo federal avalia que o número de armas de fogo em mãos privadas na Suíça chega à cifra de dois milhões.

O instituto de pesquisa Small Arms Survey baseado em Genebra estima que existam 3,4 milhões de rifles e pistolas em circulação no país, sendo a maior parte dessas armas pertencente ao Exército suíço e que são mantidas pelos cidadãos-reservistas após o término do serviço militar obrigatório.

Clubes de tiro na Suíça

Outra parte considerável das armas se deve à popularidade do tiro esportivo na Suíça. A Associação Suíça de Tiro tem mais de 130.000 membros, dos quais mais de 60.000 são atiradores credenciados.

A exigência da União Europeia de que a Suíça limite a posse de armas de fogo levou a uma forte reação do lobby de armas. No final de setembro, o governo federal mandou uma proposta de adoção das diretrizes europeias para apreciação dos cantões, partidos políticos e outras partes interessadas da sociedade. O direito europeu que rege a posse de armas é parte do Acordo de Schengen, do qual a Suíça aderiu.

Fora de Schengen

Se a lei proposta pela Suíça for inaceitável pela União Europeia, isso colocaria em questão a própria participação da Suíça no Acordo de Schengen como um todo. Esse é um tema no topo da agenda do Parlamento, e no topo das pautas da mídia.

Perguntado sobre quantas armas ele possui em sua coleção, um jovem atirador da cidade de Thun teve que consultar o seu smartphone para chegar ao número exato de 136, das quais 26 são pistolas semiautomáticas com pentes de 21 cartuchos que não poderiam mais ser adquiridas caso a Suíça adote as diretrizes da União Europeia. 

A proposta apresentada pelo governo suíço para consulta junto a partidos e organizações sociais prevê exceções para atiradores esportivos, caçadores e colecionadores. Sobre esses pontos, a Pro Tell não se manifesta.

Enquanto algumas vozes tentavam minimizar a forçosa saída do Acordo de Schengen, um membro recebeu aplausos ao propor a saída do Acordo como um reforço para promover o plebiscito. “Se for uma liberalização segundo o modelo americano, meu círculo de pessoas seria contra. Mas se a rejeição ao endurecimento das leis sobre armas levasse a uma saída de Schengen, então seríamos a favor. Schengen acabou sendo dez vezes mais caro do que o prometido. O acordo tem ainda outras desvantagens; dá para se ver em nossas ruas. A saída de Schengen seria uma chance para o nosso país.”

“Meu general!”

Outros ficam indignados ao achar que a lei atual de armas é o oposto de liberal. Para alguns, a versão de 1917 da lei ainda era liberal. Para outros, as leis de 1960 também poderiam ser consideradas como tanto.

O tom patético pairou no ar. Um membro só se referia a Wüthrich como “mon général”. Wüthrich agradeceu a cada voto, até mesmo um com subtexto racista. Com um voto contrário e cinco abstenções, a Assembleia extraordinária decidiu que para qualquer endurecimento da lei de armas seria necessário convocar um referendo. Mesmo que tenham que convoca-lo sozinhos.

Direito às armas como direito fundamental

À maneira do lobby de armas americano, os membros da Pro Tell colocam a posse de armas em pé de igualdade com os direitos fundamentais. Um dos participantes falou da “proteção à propriedade privada que inclui, ocasionalmente, armas”. A Pro Tell não seria um lobby de armas, explicou Wüthrich em seu discurso de abertura, mas sim um lobby pelo direito e pela liberdade de nossos cidadãos e cidadãs.

Em conversas pessoais durante a pausa dos debates, ele foi ainda mais longe e disse: “Isso vem da tradição. A liberdade do suíço comporta o direito de possuir uma arma.”

Também se vê esse argumento nos EUA. A retórica do direito fundamental serve de pano de fundo para a afirmação, repetida inúmeras vezes na Assembleia, de que a Pro Tell não seria uma organização política. Essa afirmação não procede, e não somente pela propaganda do partido SVP distribuída na entrada. À propósito, ao ser questionado, Wüthrich afirmou nada saber sobre a propaganda do SVP.

Radical demais?

A radicalidade na retórica e no conteúdo pode resultar em que, apesar das relações fortalecidas com o parlamento e com o governo, a Pro Tell não consiga afetar de modo significativo à legislação suíça.

Além disso, a associação por um direito de armas liberal talvez tenha mais o que fazer se uma instância judicial superior confirmar a sentença de seu vice-presidente Addor.

A ameaça de referendo tem efeito

Bruxelas decidiu em abril de 2017 pelo endurecimento das diretrizes europeias sobre posse e compra de armas. O motivo foram os atentados terroristas de Paris. As leis mais duras valem também para a Suíça, país membro do Acordo de Schengen.

A Pro Tell luta contra o endurecimento das leis da União Europeia e ameaça convocar um referendo. Como consequência, o governo suíço prevê exceções em sua proposta de adoção das diretrizes da União Europeia. Dentre as exceções, devem constar armas semiautomáticas com pentes de grande capacidade no caso do proprietário ser membro de um clube de tiro.

Antigos membros do exército podem continuar a manter seus rifles de assalto como antes. Eles também não serão obrigados a se tornarem membros de um clube de tiro.

Colecionadores também podem manter suas armas proibidas, conquanto essas sejam registradas junto às autoridades.

As armas de caça permanecem fora do alcance das leis da União Europeia.

Após o fim do processo de consulta, o Parlamento suíço deverá se manifestar.

Caso a solução suíça com suas exceções seja aprovada, resta saber como Bruxelas vai reagir.

Adaptação: Danilo von Sperling

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