“O Brasil tornou-se um lugar perigoso para nós”, dizem ativistas na Suíça
Nas últimas semanas, diversas políticas e ativistas brasileiras - quase todas mulheres - estiveram de passagem pela Suíça em audiência na ONU, em Genebra, assim como em Zurique e no Parlamento, em Berna, denunciando o cerceamento dos direitos humanos no Brasil, e as ameaças às suas próprias vidas e as de seus familiares por conta de seu trabalho.
A deputada estadual (RJ) Mônica Francisco, convidada do festival de documentários Cine Brasil Marginal de Zurique, veio dar o recado de que o “Brasil tornou-se um lugar muito perigoso para nós, defensores dos direitos humanos e pessoas que combatem a violência de estado.” Mônica, que também é pastora evangélica – mas “antifundamentalista”, como faz questão de enfatizar – é uma das quatro ex-assessoras da vereadora Marielle Franco, assassinada em março de 2018, que decidiram se candidatar, com sucesso, nas últimas eleições.
Mônica relatou à swissinfo.ch dados que são de fato preocupantes. Só em 2017, foram 70 ativistas e lideranças indígenas assassinados no Brasil, a grande maioria na região amazônica. Quase todos os crimes e ameaças desse tipo têm como pano de fundo conflitos de terra e meio-ambiente, no campo, e por habitação, nas cidades.
Para além desses conflitos bem definidos, e mal noticiados, o dia-a-dia dos brasileiros e brasileiras é marcado por um recrudescimento das mortes violentas e por armas de fogo, que atingem especialmente a população jovem (15 a 29 anos) e negra, assim como mulheres e comunidade LGBTQI.
Mônica associa esses números a um racismo institucional que permeia a sociedade brasileira, resultado de políticas públicas ancoradas nas próprias instituições que deveriam velar pelo bem comum, mas que “promovem o genocídio da juventude negra e pobre – a probabilidade de um jovem negro ser morto por arma de fogo é quatro vezes maior do que a de um jovem branco”.
Esse quadro de violência no Brasil certamente não é culpa do governo Bolsonaro, que mal completou 100 dias desde a posse, mas a deputada tem plena convicção de que o discurso e os atos do novo governo só tendem a intensificar a violência. “A demonização e criminalização de qualquer pensamento associado à ‘esquerda’ ou como ‘comunista’ cria um clima de terror e de ausência de qualquer normalidade democrática. Quando você ouve do seu presidente que ele pretende ‘varrer do mapa’ todos os seus opositores; quando fica cada vez mais evidente a relação próxima entre o presidente e sua família com o crime organizado, e com os assassinos de Marielle, não é possível tocar o dia-a-dia em segurança”.
E por que então ela vem à Suíça para denunciar isso tudo? “Ora, a nossa mídia no Brasil está emudecida. A Justiça está politizada. Nada dessa violência parece afetar os donos do poder, só nos resta a pressão internacional. Só quando um eurodeputado denunciou o assassinato de Marielle, o mundo ouviu”. Mônica aqui refere-se à condenação do assassinato por um grupo de deputados – não apenas da esquerda – no Parlamento Europeu, que pediu que Bruxelas interrompesse as negociações de livre-comércio com o Mercosul.
Mônica deu ontem uma conferência na Universidade de Zurique, e foi convidada a falar hoje para deputados e senadores no Parlamento federal, em Berna, antes de participar de uma conversa com o público do Cine Brasil Marginal após a exibição do documentário “Auto de Resistência”. Ela segue depois um intenso programa de conferências e debates em Berlim e Paris antes de retornar ao Rio de Janeiro.
Enquanto isso, em Genebra…
Neste ano, o samba enredo vencedor do carnaval mais tradicional do mundo marcou um tom de reivindicações. Na Mangueira, a escola entoava: “Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles e Malês”.
Mas foi nos corredores da ONU, na Suíça, que ecoaram as vozes de mulheres brasileiras que, de ambos os lados do espectro político, tentaram convencer a comunidade internacional de que suas lutas são as justas.
Se a representação política das mulheres deixa a desejar no Brasil, são elas quem tem liderado um movimento de reivindicação – como no caso da Vale, cuja sede internacional encontra-se na Suíça – e de denúncia das violências de estado. A Suíça, e Genebra em particular (por causa da sede europeia da ONU) tornou-se um dos principais destinos desse movimento, junto com Berlim e Paris.
Logo depois da passagem controversa do presidente Jair Bolsonaro pelo Forum Econômico Mundial em Davos, em fevereiro foi a ministra de Direitos Humanos, Damares Alves, que desembarcou em Genebra com um discurso de compromisso com as instituições internacionais. Ela sinalizou que a agenda de direitos humanos era uma prioridade, assim como a proteção de defensores de direitos humanos, indígenas e ainda prometeu lutar contra a violência que atinge as mulheres e meninas do país.
Pelas instituições da ONU, interlocutores admitiram que Damares trouxe a intenção clara de tentar desfazer a imagem deteriorada do governo Bolsonaro. Entre as iniciativas que lançou, a ministra prometeu manter o Brasil no Conselho de Direitos Humanos da ONU e voltar a receber a visita de relatores especiais, com missões para examinar a situação do País. Hoje, 15 relatores diferentes aguardam para realizar suas inspeções no Brasil.
Mas Damares não foi a única a passar por Genebra. A cidade, ao longo de três semanas, viu um desfile de vozes denunciando o atual governo. Mulheres indígenas, mulheres defensoras de direitos humanos e mulheres ameaçadas.
Uma delas foi Mônica Benício, ativista e viúva de Marielle Franco, morta há um ano no Rio de Janeiro. Seu recado não deixou dúvidas. “No Brasil, jagunços tomavam conta de escravos. Homens negros tomavam conta de homens negros. Hoje, temos uma mulher na pasta de direitos humanos e da família, seja la qual for essa família que eles estão tentando nos impor”, criticou.
“Ela (Damares) não me representa e não representa nenhuma mulher que tenha o objetivo de ser livre no Brasil”, afirmou. Os dados apresentados por Mônica à ONU apontam 176 feminicídios só nos dois primeiros meses de 2019.
Citando ainda dados do Instituto Patrícia Galvão, Monica apontou que, no Brasil, “uma mulher é estuprada a cada 11 minutos, uma mulher é assassinada a cada 2 horas, 503 mulheres são vítimas de agressão a cada hora e cinco são espancadas a cada 2 minutos”, completou.
Outra mulher a alertar para a situação brasileira foi Camila Asano, representante da entidade ConectasLink externo. Para ela, que organizou uma série de eventos na ONU, o risco que se corre hoje é de que se concretize uma ofensiva contra as ongs no Brasil.
Élida Lauris, da Terra de Direitos,Link externo acredita que a impunidade sempre existiu no Brasil. A diferença, segundo ela, é que agora há uma “desestruturação dos instrumentos de organização de coletivos”. “Está explicito no Brasil um ambiente de risco de defensores e as mulheres são as mais ameaçadas”, alertou.
Coube a Laura Tresca, representante da entidade Artigo 19Link externo, denunciar a situação dos ataques à imprensa. “Estamos numa situação de violência autorizada”, disse.
Dias depois, foi outra mulher quem admitia a dimensão das ameaças no País. “Estamos acompanhando de perto os acontecimentos recentes no Brasil”, disse Michelle Bachelet, alta comissária da ONU para Direitos Humanos, em um evento com a sociedade civil.
“Também estou preocupada sobre recentes informes sobre ataques contra comunidades indígenas”, afirmou a ex-presidente do Chile. Segundo ela, pelo menos 14 comunidades indígenas foram atacadas desde o começo de 2019 por fazendeiros.
Vítimas de barragens
Foram uma vez mais as mulheres que levaram até a Suíça a denúncia sobre a tragédia de Brumadinho, com o rompimento da barragem. “Viemos dizer que o estado e empresas precisam ser cobrados e punidos pelos crimes cometidos no Brasil. Brumadinho é o resultado do fato de que ninguém foi punido em Mariana”, disse Letícia Oliveira, da coordenação nacional dos Movimento dos Atingidos por Barragens e moradora de Mariana (MG).
Nos encontros realizados na ONU, ela e outros ativistas pediram a colaboração internacional para garantir uma maior pressão sobre as autoridades e empresas. “No caso de Mariana, não temos nenhuma casa construída e poucas indenizações pagas. Isso mostra que nem as empresas e nem o governo conseguem fazer o processo de reparação”, disse Letícia, que levou até a sede da Vale no cantão de Vaud uma queixa.
Uma semana depois, mais um evento sobre as barragens no Brasil trouxe para a Suíça um novo grupo de ativistas. Todas mulheres. Isabel Bento, moradora de Brumadinho, perdeu seu irmão no desastre.
Diante de uma plateia na ONU, ela prometeu que “passaria a vida para conseguir a condenação da Vale”. “Estamos em luto. Mães não receberam seus filhos para dar um enterro digno. Os funcionários da Vale morreram calados porque não podiam falar nada. A Vale matou meu irmão”, disse, aos prantos.
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