“Na Síria, às vezes nos questionamos onde está a humanidade”
Acesso sem condições a todas as zonas em conflito: há mais de cinco anos, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha e as outras organizações humanitárias reclamam esse direito elementar no inferno sírio. No sábado (27.02) entrou em vigor um cessar-fogo entre os diferentes grupos.
Enquanto no início de fevereiro eram suspensas as discussões de Genebra 3 sobre a Síria, as tropas do regime de Damasco, apoiadas pelos bombardeios da aviação russa, faziam uma grande ofensiva para retomar a cidade de Alepo. Os Estados Unidos e a França denunciaram os bombardeios que, segundo eles, visam “quase exclusivamente” os grupos de oposição e os civis, e foram mesmo “em parte” responsáveis pela suspensão das discussões em Genebra.
Ao final de seis dias de discussões onde regime e oposição não se encontraram diretamente, com tergiversações e encontros anulados, o emissário da ONU para a Síria, Staffan de Mistura anunciou uma “pausa” no processo de Genebra 3.
Depois dos fracassos de Genebra 1 e 2, essas discussões, obtidas sob pressão internacional, deveriam levar as partes a discutir, mesmo indiretamente, para lançar um processo político e colocar um fim à guerra que já provocou mais de 260.000 mortes e milhões de refugiados em cinco anos.
Robert Mardini é diretor regional do CICV para o Oriente Próximo e Médio. Na entrevista a seguir, se ele apela evidentemente para uma solução política, há urgência em socorrer as numerosas vítimas da guerra e as populações cercadas.
swissinfo.ch: O conflito sírio já dura quase cinco anos. No terreno, os combates têm tendência a diminuir ou, ao contrário, ganham mais intensidade?
Robert Mardini: O impacto sobre as populações resta devastador. “Catastrófico” é infelizmente uma palavra fraca. Eu acho que hoje é muito difícil encontrar uma família síria que não foi afetada pelo conflito que, lamentavelmente, continua em fase muito ativa, muito intensa, mesmo em escalada nos últimos meses.
A guerra continua a matar, ferir, mutilar, destruir infraestruturas essenciais como o abastecimento de água, os hospitais, escolas e a descolocar pessoas que fogem dos combates pela segunda, terceira, quarta ou quinta vez.
swissinfo.ch: Ultimamente falou-se muito de Madaya, uma das cidades ou zonas cercadas na Síria. O fato de isolar populações seria uma característica desse momento do conflito?
R.M.: Infelizmente, isso sempre existiu e não é próprio da Síria. Em também penso na cidade de Taïz, no Iêmen, que está na mesma situação. Recentemente, o caso de Madaya, de Foua e de Kefraya foram bastante mediatizados, o que funciona como um alarme para a comunidade internacional.
Nossas equipes, com os voluntários do Crescente Vermelho sírio, entraram nessas zonas e o que viram foi simplesmente insuportável: pessoas esqueléticas, esfomeadas, crianças, mulheres e idosos entre a vida e a morte. Além de faltar tudo – eles não tinham visto um pedaço de pão há quatro meses, sem falar de cuidados de saúde totalmente inexistentes – essas pessoas pensavam que o planeta inteiro as tinham abandonadas.
No CICV, somos muito conscientes que alguns caminhões de alimento e material médico, mesmo se é necessário e que permite salvar vidas, isso resta extremamente modesto. É claro que não suficiente de fazê-lo uma vez. Para ter um impacto, devemos fazê-lo de maneira repetida. Ora, tem muita Madaya na Síria, onde os civis continuam a pagar um terrível tributo. Por vezes questionamos onde está a humanidade nisso tudo.
swissinfo.ch: Portanto, o CICV pede o acesso humanitário regular e sem condições a todas as zonas em conflito?
R.M.: O que pedimos é simples, não precisa inventar a roda: enquanto não se encontra uma solução política, o que não deve ser negociável é o respeito ao Direito Internacional Humanitário [DIH].
Vimos infelizmente que é violado por todas as partes nos últimos cinco anos. Pedimos uma ação realmente convergente, sincera é séria, primeiro das partes em conflito, mas também de todos os países que têm influência do que se passa na Síria, com coisas tão simples como “não atirar em ambulância, em hospital, em médicos, em enfermeiras, não bombardear estações de tratamento de água potável, escolas ou postos de saúde”.
swissinfo.ch: Como são as discussões com o grupo Estado Islâmico?
R.M.: Nosso trabalho e de nossos delegados é de manter contato com todas as partes do conflito. Mas hoje não diálogo estruturado com o grupo. Temos uma enorme inquietação quanto às condições humanitárias que ele controla, onde vivem seis milhões de pessoas, entre a Síria e o Iraque.
Com muita dificuldade, chegamos a contribuir a um esforço humanitário nessas zonas, trabalhando com voluntários do Crescente Vermelho sírio e contatos com autoridades locais. Em 2015, pudemos efetuar algumas atividades no setor vital da água nesses territórios, com um bom grau de confiança no impacto de nossas intervenções. Mas é preciso ser humilde, esses resultados são muito modestos em relação às necessidades que avaliamos nessas regiões.
swissinfo.ch: A conferência dos países doadores para a Síria ocorreu quinta-feira em Londres. A crise dos refugiados vai fazer os Estados a cumprir suas promessas financeiras?
R.M.: Primeiro é preciso compreender que, objetivamente, as necessidades humanitárias aumentam a cada ano porque mais infraestruturas são destruídas: há menos água, menos hospitais, postos de saúde, remédios etc.
A economia vai de mal a pior, portanto o poder aquisitivo é afetado, as necessidades por pessoa aumentam e o número de pessoas afetadas continua a aumentar. Então é normal e lógico que as necessidades das organizações humanitárias também aumentam.
Mas, não há somente dinheiro, mesmo se ele é muito importante. Em Londres, tem gente que toma decisões políticas e nossa mensagem lá é que é preciso ser mais ambicioso para encontrar uma solução política ao conflito. Também é de apoiar os países vizinhos da Síria que absorvem milhões de refugiados que são generosamente acolhidos e que são desestabilizadores para eles. São problemas enormes e não é a ajuda humanitária que pode resolver.
Com relação aos migrantes na Europa, mesmo se os números são impressionantes, elas restam anedóticos comparado ao número de pessoas acolhidas pelo Líbano, a Jordânia e a Turquia. A Europa tem meios de acolher as pessoas que fogem dos combates no país deles e oferecer-lhes a proteção que precisam.
É preciso ser muito claro nisso: para um sírio, como para qualquer outo cidadão do mundo, a decisão de deixar seu país e seu domicílio nunca é fácil. Ela é muito dolorosa. As pessoas partem quando não têm mais outra escolha, que a situação se tornou insustentável: violência dos combates, situação econômica impossível, mas também insegurança, sem eletricidade, sem água, sem acesso a cuidados médicos, sem escolas para as crianças. É isso exatamente que faz as pessoas partirem.
Cessar-fogo
As principais cidades da Síria acordaram neste sábado sem o som de bombas, depois da entrada em vigor de um cessar-fogo entre o regime e os rebeldes – informaram militantes e o Observatório Sírio dos Direitos Humanos (OSDH).
Horas depois, porém, obuses caíram na capital, Damasco.
“Um pequeno número de terroristas de Duma e Jobar (setores ao leste de Damasco) disparou vários obuses contra bairros residenciais da capital”, disse à agência oficial de notícias Sana uma fonte militar, que não classificou o episódio como uma violação da trégua.
Uma fonte da segurança informou que cerca de 10 obuses caíram sobre o bairro dos Abásidas, no leste da cidade.
O esperado cessar-fogo entrou em vigor à meia-noite local de sábado (27.02), após um acordo fechado entre Rússia e Estados Unidos com o apoio do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Este acordo afeta apenas as zonas de combate entre as forças do governo, que contam com o suporte da Aviação russa, e os rebeldes sírios. Estão excluídos os grupos Estado Islâmico (EI) e Frente al-Nosra, o braço sírio da Al-Qaeda. Ambos controlam mais de 50% do território.
Neste sábado, o ministro russo das Relações Exteriores, Serguei Lavrov, e o secretário de Estado americano, John Kerry, “saudaram” o cessar-fogo em uma conversa por telefone, anunciou a Chancelaria russa. (Fonte: AFP)
Adaptação: Claudinê Gonçalves
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