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“O pior inimigo do ser humano é seu bolso”

papa francesco
Jorge Mario Bergoglio nasceu numa família de imigrantes italianos. É o primeiro papa argentino. RSI-SWI

O mau uso do dinheiro distancia o ser humano de Deus e o leva a fazer guerras. É o que afirmou o papa Francisco ao ser entrevistado pela rádio pública suíça RSI.

Da guerra na Ucrânia e das guerras em geral à homossexualidade, passando pelo clima e pelos abusos sexuais: esses foram alguns dos temas tratados pelo papa Francisco na entrevista concedida por ocasião do décimo aniversário da sua ascensão ao trono papal.

Foi uma entrevista na qual não faltaram referências à Suíça, um país “com personalidade própria”, mas ao mesmo tempo “universal”. Clique AQUILink externo para ver a entrevista integral.

Inúmeras vezes o pontífice apelou pela paz no mundo. Há muitas guerras. Mas por que é tão difícil compreender o drama da guerra? Caso contrário, não faríamos mais guerras, não é verdade?

Papa Francisco: Par amim a guerra é um crime. É algo que não está certo. Em pouco mais de cem anos tivemos três guerras mundiais: 1914 a 1919, 1939 a 1945 e agora algo que podemos considerar também como uma guerra mundial. Ela começou pontualmente e ninguém mais pode dizer que ela não é global. Afinal, grandes potências estão envolvidas nela. E o campo de batalha é a Ucrânia. O mundo inteiro está lutando por lá.

Isso nos faz pensar na indústria de armamentos, não é? Uma indústria de porte. Um engenheiro me disse uma vez: se as armas não fossem produzidas por um ano, o problema da fome no mundo já estaria resolvido. É um grande mercado. A guerra é travada, armas usadas são vendidas, e novas armas são testadas. Há dois meses se falava de testes com novas armas, drones por exemplo. As guerras são para isso: testar armamentos. Se eles tentassem fazer mais pela humanidade, penso na educação, nutrição e medicamentos, estaríamos numa melhor situação.

Falando da guerra, há pouco o ator Roberto Benigni citou em Sanremo um artigo da Constituição. Ele diz que a Itália repudia a guerra. Benigni afirmou que se todos os países tivessem esse artigo em sua constituição, não haveria mais guerra. Algo difícil de conceber, não?

É difícil, pois há muitos interesses em jogo. O pior inimigo do ser humano são seus bolsos. O diabo entra pelos bolsos. Sempre me impressionou ao lembrar que Jesus dizia não ser possível servir a dois Senhores. “Ou você serve a Deus…”. Eu esperava que ele dissesse “ou sirva ao diabo”, mas ele não diz o diabo. Diz “ou você serve a Deus ou você serve ao dinheiro”. Curioso, não? Jesus demoniza o mau uso do dinheiro. Quando uma pessoa não sabe usar bem o dinheiro para a educação, para a família, para ajudar os outros e o utiliza de forma egoísta, acaba mal, acaba sem Deus, longe de Deus, com um Deus que é o bolso.

O atual conflito está relacionado a essa questão, não?

Sim, sempre há algo para colocar dentro (do bolso).

papa francesco e Vladimir Putin
O papa Francisco atende o presidente russo Vladimir Putin no Vaticano em 4 de julho de 2019. Keystone / Alessandro Di Meo / Pool

Vossa Santidade encontrou Vladimir Putin várias vezes antes do conflito. Se o encontrasse hoje, o que diria?

Eu falaria com ele tão claramente quanto falo em público. Ele é um homem culto. Eu me ofereci para encontrá-lo. No segundo dia da guerra fui à embaixada da Rússia no Vaticano e disse que estaria disposto a ir a Moscou desde que Putin me deixasse uma janela para negociar. Sergei Lavrov (ministro russo das Relações Exteriores) me escreveu dizendo “bem, muito obrigado, mas este não é o momento”.

Sei que Putin escutou esse recado. Ele sabe que estou disponível, mas há interesses imperiais por lá, não só do Império Russo, que tem sido imperial desde o tempo de Pedro II, Catarina II, mas dos impérios de outras partes. Há impérios. E é do princípio do próprio império de colocar as nações em segundo plano.

Qual é a sua relação com o patriarca Kirill, líder da igreja Ortodoxa da Rússia?

Falei com ele ao telefone. Eu tinha planejado um segundo encontro com Kirill um ano atrás. Mas com a guerra suspendemos e adiamos para depois.

Outro dia veio o metropolita Antonij (de Volokolamsk, representante da Igreja Ortodoxa), o segundo de Kirill, um bom rapaz que foi pároco em Roma. Ele trouxe uma carta de Kirill. Nós sempre mantivemos contato com eles, com os patriarcas ortodoxos. Com Bartolomeu, somos irmãos. Um dos bons é Teodoro II (Patriarca greco-ortodoxo de Alexandria e de toda a África), um homem de Deus. Mas eu tenho um bom contato com todos.

Que outras guerras estão mais próximas?

O conflito do Iêmen, que se prolonga há mais de dez anos. A Síria, também há mais de dez anos. Os refugiados rohingyas do Mianmar que estão a sofrer. Por que estes sofrimentos, quando a paz é tão bela e fundamental? As guerras doem. Não é o espírito de Deus que conduz uma guerra. Não acredito em guerras santas.

Embora, no passado, houvesse quem acreditasse nelas…

Sim, mas essa foi uma época diferente na história.

Bento (papa) começou e continuou a lidar com os casos de abusos sexuais cometidos por padres contra menores. Tantos passos foram dados, mas por que o problema ainda permanece?

Somos humanos. Você conhece as estatísticas? Elas são terríveis. Quarenta por cento dos abusos acontecem na família e nos bairros. E isso ocorre até hoje. Depois vem o mundo esportivo, depois as escolas. Três por cento dos crimes são cometidos por padres católicos. Isso é pouco? Não, é demais! Mesmo que fosse apenas um, seria uma brutalidade porque o padre está lá para fazer as pessoas crescerem, para santificar e não para arruinar uma vida com abusos. E é por isso que o papa Bento teve a coragem de dizer: não, prosseguimos.

Não é fácil. Às vezes são feitas falsas acusações e é preciso discernir. Às vezes elas são verdadeiras e você tem de seguir em frente. Nós também tomamos decisões com alguns bispos. Quando um abuso ocorre, investigamos. Desde o escândalo de Boston, onde tudo começou, Igreja avançou. Há três meses, tive uma reunião com pessoas de um grupo que trabalhava no Brasil. Eles disseram: essa taxa chega a 46% dentro de famílias. Hoje, nas famílias e comunidades, ocorre o mesmo. Agora não encobrimos, mas há acusações e misérias humanas, tantas, dos pecados de padres e bispos, mas devemos continuar. Deus é maior do que isso. Deus não nos perdoará se não seguirmos em frente.

Vossa Santidade já recebeu muitas vítimas. O que elas contam?

Eu as escuto. Foi bom uma vez, na Irlanda. Havia seis ou sete adultos, cada um com sua própria história. Eles foram abusados ainda crianças. Eu tive que pedir perdão na homilia do dia seguinte. E disse: por que não fazemos a homilia juntos? Esse encontro foi lindo porque me ajudaram a entender o mistério disso. Eles são bons apesar do sofrimento que carregam consigo.

Em outra ocasião recebi um grupo de ingleses que haviam sido abusados em um colégio interno. Hoje eles já são adultos, mas foram maltratados quando crianças. Naquela época colocava-se tudo embaixo do tapete. É a miséria humana. Mas uma das coisas que eu não consigo entender é a pornografia infantil virtual. Eles filmam tudo ao vivo. Você pode imaginar em que país se faz isso, em que cidade? Ninguém sabe. Os serviços secretos não conseguem descobrir sua origem? De seu telefone celular você pode assistir (os vídeos) e o mal é semeado dentro de você. Você vê como uma criança é abusada, com as coisas mais sujas. Isto é um apelo a todos: quem souber que isso ocorre, denuncie. É importante!

papa francesco e alain Berset
Papa Francisco encontra o presidente da Confederação Suíça, Alain Berset, em visita oficial à Suíça em junho de 2018. © Keystone / Peter Klaunzer

Como Vossa Santidade vê a Suíça?

A Suíça tem sua própria personalidade, mas ela é universal. Quando a Suíça permanece neutra nas guerras, ela não é água destilada ou uma entidade que lava suas mãos, mas sim tem uma vocação de equilíbrio, de unidade. Eu amo os suíços. É curioso: cada cantão tem a sua própria personalidade. Eu vejo isso na Guarda Suíça. Os soldados originários do cantão do Ticino estão mais próximos de nós. Já os de Genebra são mais franceses. Os germanófonos têm outra personalidade, mas são bons. Os suíços têm uma bela humanidade.

A Suíça também foi um terreno fértil para reformas. Lutero e Calvino queriam originalmente reformar a Igreja, purificá-la. Ainda hoje, o protestantismo tem essa vocação no seu DNA. Qual sua opinião?

Acho que a Igreja deve sempre ser reformada. Lembro desse ditado: “Ecclesia sempre reformanda est”. Os santos fazem o mesmo. Lutero e Calvino eram homens de boa vontade. Mas foram maus tempos quando ocorreu a separação das Igrejas. Agora, com o diálogo ecumênico, estamos consertando, como irmãos. Graças a Deus, podemos rezar juntos, fazer caridade juntos, viajar juntos e fazê-los com lentidão.

E depois os teólogos estudam em busca dessa unidade. Há um grande teólogo ortodoxo falecido há alguns dias, Ioannis Zizioulas. Ele apresentou o Laudato sLink externoi’ (em português: ‘Louvado sejas’; uma encíclica do Papa Francisco). Este grande teólogo especializado em escatologia disse: “fazemos o bem, rezamos e vamos juntos, mas deixemos os teólogos estudarem”. Diante da pergunta: quando chegará o momento em que as Igrejas se reunirão? Ele respondeu: ‘Talvez na escatologia’. Ele tinha senso de humor. Mas o importante é caminharmos juntos, como irmãos. Não briguemos, mas façamos o bem juntos e rezemos juntos.

Adaptação: Alexander Thoele

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