O vale que é o cemitério dos esportes radicais
Todos os anos a Suíça recebe milhares de turistas amantes dos esportes radicais. Em especial a região de Lauterbrunnen em Berna hospeda praticantes de paragliding, base jump e paraquedismo. Mas com excessos de tragédias, a área foi apelidada de vale da morte.
Somente entre 2000 e 2020 foram praticamente 60 mortes. O desaparecimento de um brasileiro e a morte de um australiano no último mês aumentaram as estatísticas. A família brasileira está decepcionada que as autoridades suíças falharam em encontrar respostas e questiona a responsabilidade do país em permitir que tragédias se repitam com tanta frequência na região. Outros países proíbem a prática de alguns desses esportes de alto-risco. Seria a tolerância suíça à adrenalina estrangeira uma cruz muito pesada para se carregar?
Os Alpes bernenses é um lugar daqueles típicos de cartão postal, com paisagens de tirar o fôlego o ano inteiro. No verão, há a paz dos pastos verdejantes nos vales, com vaquinhas tilintando seus sinos floridos. No inverno, há a beleza majestosa da neve e das grandes encostas rochosas dos Alpes.
É a típica beleza alpina serena, aquela que atrai a cada ano milhares de turistas estrangeiros à Suíça. Em 2019 foram mais de 11,8 milhões de visitas de estrangeiros, que juntos gastaram, 2,34 bilhões de dólares uma contribuição bastante relevante para a economia local.
Dentre os milhares de viajantes acolhidos há, porém, uma parcela especialmente menos interessada em calma e serenidade: os amantes de esportes de aventura. Aficionados pelo risco, eles optam por modalidades desafiadoras como paraquedismo, base jump, paragliding, escalada, entre outras. A região de LauterbrunnenLink externo em especial é como um farol que atrai os amantes da adrenalina do mundo todo.
Na Suíça toda entre 2000 e 2022 foram registradas 80 mortes ou desaparecimentos de praticantes de esportes de aventura, desses, 60 casos ocorreram em Lauterbrunnen.
Somente na última temporada faleceram um alemão de 48 anos em março, um francês de 34 anos em julho e um australiano de 40 anos em setembro. No final de setembro desapareceu também um brasileiro de 35 anos, Henrique Cortez, que não pôde ser encontrado e está sendo considerado como provavelmente morto.
O que todos tinham em comum era a paixão pelos alpes e pelo base jump, esporte que consiste em pular de grandes alturas como montanhas, pontes, antenas e prédios com equipamento que permite planar até o solo.
A diocese local decidiu construir um memorial às vítimas desse esporte no cemitério, pois proliferavam homenagens espalhadas pelo vale, nos locais dos acidentes. Cruzes, velas e objetos pessoais em lembranças dos mortos, como os capacetes e óculos, estavam manchando a paisagem.
“Isso pode colocar muita pressão em um lugar, por mais bonito que seja”, disse Walter von Allmen, presidente da paróquia à época da inauguração do memorial em maio de 2021 à swissinfo.ch
Apelidada de “Vale da Morte”, a área inaugurou em maio de 2021 um memorial em respeito às vítimas no cemitério local.
Uma cruz muito pesada
Seriam essas lembranças uma verdade inconveniente, de que a tolerância suíça à adrenalina estrangeira é uma cruz muito pesada para se carregar?
Foi exatamente o que a política Margret Kiener Nellen (Partido Socialista – PS) questionou no Parlamento em 2019. Em uma interpelação ao governo federal ela sugeriu a proibição da prática de base jump ou, pelo menos, a regulação por meio de permissões.
Segundo a interpelação apresentada por ela, a cada morte, “a reputação da Suíça e dos Alpes bernenses como destino turístico sofre no mundo todo”.
Na Suíça, o Depto. Federal de Aviação Civil regula todos os esportes aéreos. Base jumping e wingsuit são legalmente considerados formas especiais de paraquedismo. O paraquedismo pode ser praticado com apenas uma licença.
Na prática, porém, o base jump é regulado pelos próprios praticantes através de associações como a SBALink externo (Associação Suíça de Base Jump). Na maioria dos países da União Europeia, por outro lado, cada salto deve ser aprovado.
A organização de turismo da região de Berna não promove ativamente o base jump como opção de lazer e por volta de 2006 uma proibição temporária chegou a ser discutida para poupar os hóspedes e moradores da visão das mortes.
Denise Bringel Cortez, tia do brasileiro recentemente desaparecido, acredita que a proibição seria necessária. Apesar de agradecer às autoridades locais pelos esforços em procurar o sobrinho dela, Bringel Cortez está traumatizada com a Suíça e não guarda bons sentimentos do país.
O brasileiro Henrique Cortez sumiu em 23 de setembro quando estava a pé, indo em direção de um ponto de saída de base jump conhecido como Uelli na área de Stechelberg. Durante a trilha o tempo piorou e nevou. É provável que ele tenha sofrido um acidente. Ele foi visto por dois alpinistas por último, seguindo pelo caminho da cabana Rottal.
Apesar dos esforços, Cortez não pôde ser encontrado e a família segue inconsolável por não ter se quer um corpo para levar de volta para casa. Pai e irmão estiveram no país e retornaram sem respostas, deixando apenas uma amostra de DNA.
“Por que os suíços permitem que os turistas se aventurem em áreas de perigo que nem mesmo eles têm coragem de entrar?”, questionou Bringel Cortez.
Estatísticas
À interpelação de Kiener Nellen, o governo respondeu que não há razão para uma proibição porque “em termos absolutos, o número de pessoas que morrem em acidentes de salto base é baixo em comparação com outras atividades de lazer, como montanhismo”.
Mas o impacto de tragédias nos esportes de aventura de uma maneira geral não deixa de ser relevante à imagem da Suíça.
Segundo informou Karin Zahner, porta-voz da RegaLink externo, o centro nacional de resgate aéreo organizou um total de 14.330 missões no ano passado, isso é um terço a mais que a média dos últimos cinco anos (2017-2021). A Rega atribui isso, entre outras coisas, ao fato de que cada vez mais pessoas estão praticando atividades de lazer nas montanhas o que está demandando uma mobilização maior dos times de resgate para manter a qualidade dos serviços.
“Nos dias em que a Rega espera um aumento no volume de operações, estaciona helicópteros de resgate adicionais no leste da Suíça e nas regiões altas de Berna, e há funcionários adicionais trabalhando no centro de operações”, diz Zahner.
A Polícia Cantonal de Berna também tem aumentado seus esforços: “em geral, pode-se dizer que o número de operações de resgate nas montanhas aumentou constantemente nos últimos anos. Devido à mudança no comportamento de lazer muito mais pessoas estão frequentando as montanhas”, afirmou a corporação.
“Não mantemos estatísticas específicas sobre mortes nas montanhas, razão pela qual não podemos fornecer números e não podemos fazer declarações sobre quantos turistas são afetados”, explicou polícia.
Auto-Regulação
Mas se a prática de esportes nas montanhas tem aumentado como um todo, o que leva a mais acidentes, talvez a má fama do base jump seja desproporcional.
Marcel Geser, presidente da SBA, está empenhado em tornar a prática da modalidade mais segura. Com 530 membros inscritos, a associação advoga pela adoção de protocolos de segurança.
“Seria extremamente difícil proibir o salto de base na Suíça. Você não pode colocar um policial em cada ponto de saída da base e esperar que alguém venha. É muito melhor encontrar soluções e regular o esporte onde for necessário. Em alguns países, o base jumping é ilegal e os base jumpers precisam pular à noite ou fugir dos guardas florestais. Isso torna o esporte muito mais perigoso e teve consequências fatais para alguns saltadores”, diz Geser.
A associação sem fins lucrativos exige que turistas que queiram saltar na região de Lauterbrunnen e Walenstadt comprem um cartão anual de aterrissagem no valor de 40 francos suíços.
“25 francos vão para os agricultores locais para obter permissão para desembarcar em seus campos. 15 francos vão para a SBA. Com o dinheiro que ganhamos com a venda dos cartões de pouso fazemos manutenção nos pontos de saída (para pular com segurança)”, explica Geser.
Pelas regras da associação, além do cartão de aterrissagem é obrigatório registrar contatos de emergência para avisar familiares no caso de um acidente e telefonar para a Air Glaciers avisando do salto.
A Air GlaciersLink externo, é a principal operadora de voos de helicópteros na região e teria o poder político de pressionar por uma proibição, mas prefere não fazer isso.
“Sim, em princípio a companhia aérea poderia proibir o salto. No entanto, desde que as regras acordadas sejam observadas, não vemos necessidade de ação. Além disso, acreditamos que as regras são melhores em termos de segurança. Se os basejumpers simplesmente pulassem “descontroladamente” sem nos relatar nada, acidentes graves provavelmente teriam acontecido.”, disse à Swissinfo Christian Stähli, membro da equipe.
O próprio governo federal, em resposta à interpelação de 2019, citou o bom trabalho de associações como razão para não se proibir o esporte. “Desde que se formaram estruturas associativas (…) tem sido feito um trabalho educativo (…) que causou notavelmente redução de conflitos com moradores e outros usuários do espaço aéreo”.
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