Onda de Revoltas: “o Ocidente não está à altura”
Os países ocidentais não sabem como responder às revoltas populares no mundo árabe, segundo a militante de direitos humanos da Tunísia Souhayr Belhassan.
A Europa, em particular, precisa mudar sua maneira de pensar o mundo árabe, diz Belhassan à swissinfo.ch.
Figura da oposição na Tunísia e primeira mulher presidente da Federação Internacional dos Direitos Humanos (FIDH), Souhayr Belhassan testemunhou a revolução do seu país.
Presente em Genebra para a cerimônia de abertura do Festival de Cinema e Fórum de Direitos Humanos (FIFDH), Belhassan conta à swissinfo.ch porque o Ocidente não está à altura da atual reviravolta no mundo árabe.
swissinfo.ch: Em poucos dias, o rosto de seu país mudou. Quais são as prioridades de hoje na Tunísia?
Souhayr Belhassan: O regime foi completamente descartado. Mas os tentáculos dele continuam permeando todo o sistema. A corrupção continua, a destruição dos arquivos, dos tribunais. Tudo o que poderia ser uma fonte de revelação no futuro está sendo destruído.
Entre as medidas imediatas, devemos julgar os ministros próximos de Ben Ali, inclusive Abdallah Kallal [n.r.: Presidente do Senado no momento da queda de Ben Ali, ministro do Interior, de 1991 e 1995, realizou uma repressão sangrenta, principalmente contra os islamistas]. Por enquanto, eles estão em prisão domiciliar, mas não é o suficiente.
Aderir às convenções internacionais, declarar uma anistia geral, são passos muito importantes, mas devemos também prender os símbolos, caso contrário a opinião não vai aderir a um projeto nacional.
swissinfo.ch: Vimos como as revoltas populares, na década de 1980, foram reprimidas na Argélia. A juventude também havia manifestado, surgiram 40 partidos políticos e uma muitos jornais foram criados, mas ao preço de 200 mil mortos e 20 mil desaparecidos. Que lições podemos tirar com o exemplo da Argélia?
S. B. : O exemplo da Argélia é um espelho de duas faces. Vale tanto para os democratas como para os islamitas. No entanto, hoje não estamos em um contexto argelino na Tunísia ou no Egito. Nós não estamos em 1988, mas em 2011. Passaram 15 anos entre os dois acontecimentos. Os islamitas egípcios e tunisianos não estão no mesmo espírito que os da Argélia na época.
Hoje sabemos como levar em consideração o componente islâmico na recomposição dos espaços nas sociedades egípcias e tunisianas. Devemos deixá-los ocupar o lugar deles, mas nada mais do que isso. Só isso. Não compartilhamos a mesma ideologia, mas hoje todos lutam abertamente. Não são mais uma assombração agitada aos ocidentais ou aos nacionais, dizendo “cuidado, se dermos liberdade os islamitas tomarão o poder”.
swissinfo.ch: Muitas vozes no Ocidente alegam que a atual discrição dos islâmicos é puramente circunstancial. Um discurso ultrapassado, na sua opinião?
S. B. : Não é um discurso ultrapassado, mas sem inteligência ou compreensão do que está acontecendo hoje no sul do Mediterrâneo. Em vez de incentivar as democracias que estão surgindo, a Europa se recolhe sobre si mesma com medo dos islâmicos e dos imigrantes. Se o Norte perseverar no autismo, vendo no mundo árabe-muçulmano só regressão, a reação pode ser muito violenta.
swissinfo.ch: Como o Ocidente pode mudar sua visão do mundo árabe?
S. B. : A Europa deve realizar uma reflexão profunda. Será que ela quer realmente partilhar os valores da democracia e da liberdade ou se contenta simplesmente com os slogans que têm mostrado seus limites na hora das revoluções? Até agora, a Europa cultiva a democracia dentro do seu espaço, mas não em relação às pessoas de fora do espaço Schengen (n.r.: espaço de livre circulação europeu). Ela defende a liberdade de circulação de mercadorias e comércio, não de seres humanos.
Não vamos avançar se a Europa continuar tendo medo dos islâmicos e dos imigrantes, fechando suas portas. Ela tem que romper as amarras do pensamento e mudar a maneira de compreender o mundo árabe.
No entanto, até agora a Europa está sendo parcimoniosa. Quando a Sra. Ashton (representante das Relações Exteriores da UE) veio se reunir com as autoridades egípcias, ela mal falou com a sociedade civil. Precisamos que a Europa considere as sociedades civis como partes interessadas em qualquer parceria, não apenas encobridas pelas autoridades, mas como entidades autônomas.
swissinfo.ch: A nova configuração do mundo árabe está desfazendo todo o sistema de proteção dos países do norte do Mediterrâneo contra a imigração. Esses países terão que repensar totalmente a migração. A Sra. pode dar alguma pista para a reflexão?
S. B. : No momento, é a Tunísia que tem que suportar a migração da Líbia e a Europa continua sendo autista. Ela poderia pelo menos fornecer aviões para o transporte dos milhares de egípcios que chegam à fronteira. Ela poderia fornecer tendas, meios de subsistência.
O Alto Comissariado para os Refugiados reagiu, mas todos os países poderiam participar. Eles poderiam pensar em como repartir os 100 mil refugiados que estão na fronteira da Tunísia, por cotas por exemplo, ao invés de ficar pensando na intervenção militar.
Se poderia também atuar no Níger para evitar que seus mercenários venham para a Líbia, assim como em outros países que fornecem mercenários para o Gaddafi. A reação dos Estados foi forte, mas longe de ser suficiente. Quando a Europa quis proteger suas fronteiras, foi capaz de implantar a FRONTEX (a guarda fronteira europeia). Falta criatividade na apresentação de propostas em caso de emergência, como a Líbia. A comunidade internacional tem reações obsoletas e não está à altura da revolução em curso no mundo árabe.
A 9ª edição do Festival Internacional de Cinema e Fórum Internacional sobre Direitos Humanos será realizada de 4 a13 de março na Maison des Arts Grütliem Genebra.
A noite de abertura, na presença de Micheline Calmy-Rey, presidente, Navy Pillay, Alta Comissária para os Direitos Humanos das Nações Unidas, será dedicada à solidariedade com os povos da Tunísia, Egito e Irã, com a exibição do filme curta metragem L’Accordéon, do cineasta iraniano Jafar Panahi, atualmente em prisão no Irã.
Dez documentários inéditos estão em competição, incluindo dois filmes suíços, Impunity, de Juan José Lozano e Hollman Morris, e Debra Milke, de J.F. e Gesenn Rosset.
O júri internacional é composto pelo escritor espanhol Jorge Semprun (presidente), a atriz e diretora francesa Zabou Breitman, o cineasta turco Hüseyin Karabey, a historiadora e jornalista franco-tunisina Sophie Bessis e Jafar Panahi.
Souhayr Belhassan nasceu em 1943, na Tunísia.
Estudou Direito na Universidade de Túnis, e também participou do Institut d’Etudes Politiques de Paris.
Foi jornalista, correspondente na Tunísia para o semanário Jeune Afrique e Reuters.
Muito envolvida na defesa dos direitos humanos, militante da Liga Tunisina dos Direitos Humanos. Em 2007, foi eleita presidente da Federação Internacional dos Direitos Humanos.
Adaptação: Fernando Hirschy
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