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“Portugal: uma vida que já não existe na Europa”

Eugène Green em um bar de Locarno. swissinfo.ch

Eugène Green concorre em Locarno ao Leopardo de ouro com seu mais recente filme, "A religiosa portuguesa". Em entrevista à swissinfo.ch, o cineasta, dramaturgo e poeta franco-americano fala sobre sua paixão por Portugal, fado e espiritualidade.

Já a cultura americana é rejeitada por ele com toda intensidade. “São bárbaros”, define o autor nascido em Nova York.

O encontro com Eugène Green ocorre em um pequeno café na Piazza Sant’Antonio. Se não fosse a bandeira suíça pendurada em um antigo casarão, qualquer pessoa poderia se acreditar na Itália. As mesas estão dispostas na praça defronte a uma antiga igreja católica. Hoje é dia de mercado. A freguesia conversa tranquilamente com os vendedores. Vez ou outra, toca o sino.

swissinfo.ch: Quando começou seu interesse por Portugal e pela idéia de fazer um filme em português?

Eugène Green: Sempre me interessei por Portugal. Aprendi a ler em português no início dos anos 1970. Eu mesmo não compreendo o porquê, mas tenho uma afinidade eletiva por esse país.

Isso surgiu através de alguma viagem?

Não, de forma alguma. Cada vez que queria viajar, era impedido por alguma razão. Era algo de estranho, um sentimento um pouco misterioso que nutria por Portugal. Quando finalmente pude ir, há apenas seis anos, encontrei na realidade exatamente o que havia imaginado. Hoje conheço um grande número de pessoas por lá, assim como também a literatura portuguesa, sobretudo a poesia.

E seguramente Fernando Pessoa…

Sim, comecei por Pessoa, mas depois vieram autores mais antigos, como Camões ou o padre Antônio Vieira. Depois li autores da época do Fernando Pessoa, como Mário de Sá-Carneiro ou Sophia de Mello Breyner. Li bastante em português a obra do Eça de Queirós. Também sou fascinado pelo mito do “Encoberto”. Cheguei a escrever uma espécie de epopéia chamada “Le Chien de Camões” (n.r.: O cão de Camões) sobre as seis encarnações do Encoberto (n.r.: ligado ao Sebastianismo). É algo de muito vivo. Se você assistir ao meu último filme, verá uma aparição de D. Sebastião.

Você está falando da lenda do desaparecimento D. Sebastião I e sobre a esperança dos portugueses de que seu reaparecimento trará de novo a glória do país?

Sim, é uma espécie de esperança messiânica. D. Sebastião esteve “encoberto”, deve retornar, mas na verdade sempre esteve presente. É uma espécie de noção diferente do presente. Para mim isso é muito importante, pois penso que temos uma noção do presente. O verdadeiro presente inclui tudo o que foi e o que será, ou seja, uma espécie de presente eterno. O mito do “Encoberto” exprime bem essa concepção.

Alguns intelectuais portugueses lamentam a estagnação do país. Como você busca inspiração por lá, nessa terra “melancólica”?

Eu encontro uma vida em Portugal, sobretudo em Lisboa, que já não existe mais na Europa. Lisboa me lembra um pouco Paris ou Roma como elas eram quarenta anos atrás. A melancolia portuguesa me toca, a saudade, mas não considero esse sentimento um lamentar-se pelo passado, mas sim um desejo. E o desejo sempre vai na direção do futuro. A saudade é um pouco como o Encoberto, outra maneira de viver o presente, onde o passado e o futuro estão lá. É uma maneira de viver plenamente. Quando estou em Lisboa, tenho a impressão de viver de outra forma, de uma forma plena, mesmo com essa melancolia e tristeza, sentimentos que já tinha dentro de mim.

Quantas vezes por ano você vai Portugal?

Sempre que posso. Há poucas semanas estive por lá para conhecer o Porto. Depois, na Vila do Conde, participei de um festival de curtas metragens. Outra razão que me leva ao país é meu interesse pelo fado, um estilo musical que descobri e está bastante presente no “A religiosa portuguesa”. Dois grandes fadistas – Camané e Aldina – cantam no meu último filme. Eles virão a Locarno para participar de um concerto em 10 de agosto. Ao mesmo tempo, tenho um projeto de um filme, um documentário com elementos de ficção, sobre o fado. Meu produtor está à procura de financiamento para esse trabalho.

Wim Wenders dirigiu em 1994 “Sob os céus de Lisboa”, no qual revelou ao mundo o grupo português Madre Deus. Você também viu o filme? Por que o fascínio de estrangeiros pela música lusitana?

Não, nunca (risos) vi. Madre Deus é bonito, mas não é fado. O verdadeiro fado não tem nenhuma equivalência. Talvez se aproxime um pouco do Flamenco na Andaluzia. O fado é uma forma de música, cujos textos são muito interessantes: trata-se de uma forma de poesia popular que tudo abrange. Mas muitos grandes poetas já escreveram textos para eles. Duas canções executadas no meu filme são de Fernando Pessoa. Também existem escritores que não são poetas, como Lobo Antunes ou José Saramago, que já escreveram textos para fado. Por um lado, é uma música bastante simples, que reutiliza muitas vezes a mesma melodia. Mas cada vez pode ser outra coisa, pois a música é adaptada ao poema e os cantores e guitarristas improvisam certos elementos. É uma forma de música bastante viva e rica. Muitas canções me tocam a alma e me fazem até chorar (risos).

“A religiosa portuguesa” trata da redescoberta da espiritualidade por parte da protagonista, uma atriz francesa de origem portuguesa. Por que esse elemento como base do filme?

A espiritualidade é algo de muito importante em todos os meus filmes.

Você é católico ou praticante de outra religião?

Não, mas estou aberto a todas as tradições espirituais. Sinto-me bastante europeu e para exprimir a espiritualidade, precisamos de metáforas. Todas as religiões utilizam metáforas para explicar as coisas espirituais que ultrapassam a razão. Na nossa tradição européia, é através das tradições judaico-cristãs que recebemos as metáforas. Existe uma cultura católica que é o coração da civilização européia e, por essa razão, exprimo muitas das minhas idéias através de elementos da cultura católica, sem que as pessoas possam qualificar meus livros ou filmes de obras católicas. Porém, o título “A religiosa portuguesa” me atrapalha bastante.

Não foi escolhido por você?

Sim, e eu o continuo defendendo. Mas ele me atrapalha bastante, pois na França, quando se toca em religião ou no Catolicismo, existe uma espécie de rejeição. Mas o nome é importante: a protagonista principal não é uma religiosa, mas sim uma atriz que está em Lisboa para encenar em um filme sobre um texto francês do século 17 chamado “Lettres Portugaises” (Cartas portuguesas). Seu autor verdadeiro teria sido uma religiosa portuguesa. Ela teria tido uma história de amor com um oficial francês – este a abandona mais tarde. Julie, a atriz, acaba se fascinando por uma verdadeira religiosa portuguesa, que ela encontra todos os dias na capela Nossa Senhora do Monte, na Graça. Ela sempre retorna para rever essa mulher. A cena-chave do filme, que dura aproximadamente 15 minutos, é uma discussão entre a atriz e a religiosa, onde a atriz toma consciência de algumas coisas em relação à sua vida. Todo o filme é construído em jogos de espelhos, algo que me fascina. No final, Julie acaba se tornando a imagem de um personagem de ficção e descobre na discussão com a religiosa que, de certa forma, elas são a mesma pessoa, uma na procura através dos amores pelo mundo e a outra, através de uma vida espiritual.

Nascido nos EUA, como você vê o cinema americano, tão dominante e presente nas telas do mundo?

Para mim isso é um oximoro. Esse cinema não existe.

Nem os filmes de autores consagrados, como Jim Jarmusch ou David Lynch?

Esses são produtos audiovisuais bárbaros e não têm nenhum interesse. Eu não os vejo. Eu só vejo cinema europeu, asiático e da América Latina. Mas não vejo filmes bárbaros!

A grande época do cinema europeu começa no fim da 2° Guerra Mundial e vai até 1980. Lembro de uma vez com o filme “Medéia”, do Pasolini, e que não consegui entrar na primeira sessão. Tive de ficar na fila duas horas para ver a seguinte.

Na época, a juventude européia via esse tipo de cinema, obras que realmente lhe tocavam. Mas hoje em dia, devido à televisão e à influência econômica dos bárbaros, as pessoas acabaram sendo barbarizadas. Elas não têm mais a cultura para apreciar os filmes que são de sua cultura.

Vemos na França as pessoas pedindo pratos refinados com soro de cocaína para acompanhar (Coca-Cola), seja na versão “light” ou até “zero”. Estimo que durante a 2° Guerra Mundial a maior parte dos países da Europa estava ocupada pelo exército alemão, mas pelo menos era algo claro. Havia ocupação com tanques e soldados. Hoje o mundo é ocupado pelos bárbaros, mas isso não se vê. É preciso resistir!

Alexander Thoele, swissinfo.ch

Eugène Green é um cineasta, escritor e dramaturgo francês nascido em 28 de junho de 1947 em Nova Iorque (EUA).

Ele fala pouco sobre sua infância e adolescência. Green chegou à França para estudar e trabalhar como docente em filosofia e pintor. No final dos anos 1970, fundou em Paris o grupo Teatro da Sapiência, cujo objetivo era renovar as tradições teatrais do barroco.

Seu primeiro filme foi dirigido em 2001: “Toutes les nuits”. Desde então já rodou mais cinco películas: “Le nom du feu” (curta) em 2002; “Le Pont des Arts (longa – 2003); “Les signes” (curta – 2006) e “A religiosa portuguesa” (longa – 2009).

Desde 1980, Eugène Green formou atores e cantores em estágios na Accademia Claudio Monteverdi (Veneza), Corso d’Estate di Erice (Sicília), o Centro de Músique Antiga de Genebra, Escola Superiora de Arte Dramática do Conservatório de Genebra o Corso internazionale di Urbino.

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