Reforma da polícia está sendo bloqueada
O pesquisador e consultor da polícia Frédéric Maillard diz que, embora uma melhoria na formação tenha reduzido os incidentes de perfil racial e violência na Suíça, o que acontece nos bastidores é preocupante e as reformas são difíceis de implementar.
Maillard falou com a swissinfo.ch sobre o estado da força policial suíça em meio a protestos antirracistas e apelos à reforma da aplicação da lei em todo o mundo.
swissinfo.ch: Você escreveu em 2015 que o perfil racial e a discriminação eram um problema para a força policial suíça. Ainda é esse o caso? O que os departamentos estão fazendo para resolver o problema? Está sendo suficientemente abordado, na sua opinião?
Frédéric Maillard: A quantidade de violência policial e o perfil racial explícito mudou; há muito menos. Isso porque a formação melhorou muito em todos os âmbitos. Embora a Suíça tenha cerca de 300 forças policiais trabalhando em diferentes níveis, ela tem apenas seis centros de formação, supervisionados por uma única organização. Há uma abordagem unificada para a formação. O artigo 261 do Código Penal suíço, que proíbe a discriminação racial, também contribuiu muito para reduzir o número de incidentes de perfil racial e insultos falados em público.
Mas ainda há um problema com comentários racistas e discriminatórios feitos por alguns policiais no vestiário, em reuniões ou em seus carros-patrulha, e às vezes também enquanto prendem alguém. Parte da força policial é muito insensível a esse respeito. É claro que eles não vão dizer tais insultos em público quando há pessoas assistindo e filmando. Mas recentemente, após a morte de George Floyd nos EUA, ouvi muitos relatos de policiais que me disseram que é horrível o que está acontecendo nas delegacias quando se trata de calúnias racistas. Ainda há policiais que dizem: ‘Posso não conseguir bater em alguém, mas posso insultar a raça deles à porta fechada’. Isso não é verdade, porque o artigo 261 proíbe isso. Mas quando eles estão entre eles, há policiais que violam essa lei.
Por esse motivo, acredito que é necessário dobrar a duração da formação policial dos atuais dois anos para quatro. Isso levaria a educação de um policial ao nível exigido pelos profissionais da saúde ou assistentes sociais. A formação extra introduziria no currículo mais auto-reflexão, treinamento social e comportamental, bem como conhecimento dos nossos sistemas políticos e judiciais.
swissinfo.ch: O que você ouve quando fala com policiais sobre o trabalho deles? Será que eles sentem que podem trabalhar de forma eficaz e justa? Quais são as suas principais preocupações?
F.M.: Um estudo recente da pesquisadora Magdalena Burba – sua tese de doutorado na Universidade de Lausanne – pesquisou 700 policiais na Suíça francófona e mostra que a principal causa da insatisfação da polícia é a rigidez interna de suas organizações. Também descobri no meu trabalho que as frustrações e sentimentos dos policiais por não serem capazes de mudar seu comportamento estão muito ligados a estruturas de gestão isoladas, inflexíveis e hierárquicas. O desenvolvimento profissional dos policiais, suas revisões de desempenho e salários dependem de um rígido conjunto de padrões em relação aos quais são medidos. Assim, eles abandonam as tentativas de mediação de longo prazo ou resolução de conflitos em favor de intervenções diretas, mais enérgicas e mais econômicas, pois estas produzem melhores estatísticas no curto prazo.
swissinfo.ch: Os particulares podem filmar ações policiais na Suíça? E há um amplo uso de bodycams para capturar automaticamente o que a polícia faz nas patrulhas?
F.M: É permitido filmar a polícia. Há quatro anos discutimos a questão, e atualmente não há lei federal sobre o assunto, embora uma possa vir no próximo ano ou dois. Mas os diretores de todas as forças policiais suíças concordam que as filmagens são permitidas. Há, no entanto, duas exceções: as filmagens não podem interferir no trabalho da polícia, e as filmagens não podem ser divulgadas, especialmente se os policiais envolvidos ou o local forem identificáveis. Mas, em geral, os cidadãos têm o direito de filmar a polícia e mostrar as filmagens a um juiz, por exemplo.
Os policiais podem pedir às pessoas que parem de filmar usando o argumento de que isso está impedindo seu trabalho, e isso, é claro, pode ser abusado ou controverso. Tudo se resume à técnica, e é também por isso que eu sinto que dois anos de formação policial não são suficientes.
Há alguns projetos-piloto acontecendo com bodycams, mas eles não são usados sistematicamente. Sou contra seu uso sistemático pelas forças policiais comuns porque tenho medo que isso transforme os policiais em robôs e reduza sua capacidade de agir com discrição e nuance, no plano humano. Esta, acima de tudo, é a habilidade policial que precisamos desenvolver. Além disso, reforçar as camadas de vigilância pode criar uma sensação de desconfiança que pode levá-los a abusar mais de seu poder.
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Números mostram que o racismo também é um problema na Suíça
swissinfo.ch: O que será necessário para mudar atitudes e práticas enraizadas dentro da polícia suíça quando se trata de raça? Incidentes internacionais como o que está acontecendo atualmente nos EUA influenciam as conversas sobre como eles estão fazendo seu trabalho?
F.M: Há cada vez mais policiais jovens, especialmente mulheres, que querem mudar e que estão enfrentando os problemas que existem na força policial. Tive também muitas, muitas mensagens recentes de membros da polícia que querem agir em solidariedade aos manifestantes antirracistas, ajoelhando-se ou usando uma faixa preta enquanto estão em patrulha para mostrar apoio.
Mas a própria força policial é extremamente conservadora e reticente à mudança, de forma semelhante aos militares. Institucionalmente, a reação é que tudo está bem aqui, não há necessidade de reforma e não há os mesmos problemas aqui como em outros lugares.
Trabalho com psicólogos e sociólogos que sentem, como eu, que infelizmente vai ser preciso algum tipo de incidente ou evento sério para que algo mude. Já tivemos situações sérias na Suíça. Duas pessoas de origem africana morreram em incidentes envolvendo policiais em Lausanne, mas as investigações ainda não estão concluídas, então não podemos dizer definitivamente que tenha sido violência policial.
Em geral, os policiais se sentem intocáveis e raramente se questionam ou questionam sua instituição. Eles não são movidos pelo lucro ou sujeitos à livre concorrência do mercado, que é parte de ser uma entidade de serviço público, mas não ajuda quando se busca uma mudança de mentalidade ou de política gerencial. A polícia tem a lei do seu lado, bem como poderes operacionais exclusivos e excepcionais que nenhum outro cidadão ou agente do Estado tem.
É por isso que acredito ser essencial estabelecer poderes compensatórios, como um órgão de revisão independente e externo para monitorar as práticas policiais.
swissinfo.ch: Existe atualmente um órgão desse tipo?
Neste momento, não há nada parecido com isso. É tudo uma questão de supervisão interna. Mesmo assim, das 300 forças policiais que existem na Suíça, apenas três têm algum tipo de órgão de supervisão. Por exemplo, a polícia de Genebra, em uma das regiões mais internacionais do nosso país, tem um órgão de fiscalização. Mas é tudo interno, e eu já formei 3.500 policiais de Genebra e sei que muitos deles eram violentos ou apresentavam problemas.
Certamente há policiais que são muito inovadores, progressistas e que querem mudar. Mas, em geral, os esforços de reforma estão sendo bloqueados.
A Suíça tem cerca de 300 forças policiais separadas nos níveis cantonal, regional, municipal e federal, das quais 80 são de tamanho significativo, de acordo com Maillard. Desta forma, a força policial é mais semelhante ao sistema policial estratificado dos Estados Unidos do que a forças mais unificadas em países como Itália ou França.
A formação para todas as forças policiais suíças é coordenada pelo Instituto de Polícia Suíço em Neuchâtel, que administra quatro centros de formação na Suíça de língua alemã e dois na região de língua francesa.
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