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Um prédio para pessoas que gostam de compartilhar

Dani Wolfinger

Apartamentos e condomínios ecológicos estão em moda na Suíça. Em um complexo habitacional em Zurique, 256 moradores abdicam do carro próprio, limitam seu espaço próprio a 33 metros quadrados e compartilham espaços comuns como cozinha, sala de estar e até banheiro. No Kalkbreite é preciso não apenas ser tolerante, mas também ter uma pegada ecológica de 2000 watts. 

A porta do quarto se abre e mostra tudo que Pasquale Talerico acumulou na vida: uma cama, cadeira, mesa, laptop e alguns poucos objetos pessoais. Ao contrário de estar triste, esse ítalo-suíço de 44 anos não esconde o orgulho de possuir tão pouco. Depois de colocar a água para esquentar na cozinha comunitária, ele abre a porta do quarto vizinho, onde vive a filha de dez anos. Além do beliche de madeira nobre, feito à medida por um marceneiro na Itália, se vê alguns livros e poucos brinquedos espalhados no chão. “Não precisamos mais do que isso”, diz com um sorriso no rosto, enquanto serve o café orgânico em uma taça que também não é sua.

Pasquale não fez o voto da pobreza ou vive em uma comuna de anarquistas. Ele é arquiteto formado e tem um escritório próprio nas imediações. Desde maio de 2014 vive no Kalkbreite, um projeto habitacional construído por iniciativa de uma cooperativa, da qual é membro há muitos anos, e com ajuda do governo municipal. Foi um sonho que se concretizou após mais de uma década de debates (ver quadro abaixo): reunir pessoas como ele, que decidiram viver da forma mais ecológica e racional possível em um centro urbano.

O principal lema da casa é compartilhar, e isso vale até mesmo para a família. “Quando me separei, pensei em me mudar com a minha filha para um apartamento de dois quartos em algum bairro de Zurique. Mas aí me perguntei: quem iria jogar todas as noites banco imobiliário com ela? Não suporto jogos de tabuleiro”, lembra-se. A filha ainda está na escola pela manhã. Quando retorna, come, faz os deveres e depois vai visitar os amigos na casa. “Às vezes é difícil encontrá-la no prédio. Aqui ela ganhou mais de duzentos parceiros de jogo ou melhor,  familiares.”

Região central

O prédio está localizado quase no centro de Zurique, meia hora de caminhada até a estação de trem. Um polígono com arestas de comprimento desigual com até oito andares, lembrando uma obra desconstrutivista pós-moderna. A rua ao lado é movimentada. Várias linhas de bonde e veículos se cruzam nessa importante via. No final da noite, os vagões articulados fazem a curva e estacionam dentro dele. Um milagre arquitetônico? “Aqui funcionava uma garagem da companhia de transportes da cidade. O prédio foi simplesmente construído em cima dela, o que permite a sua utilização até agora”, explica Pasquale. Descemos para a rua e entramos no café Bebek, aberto há pouco tempo no térreo. O espaço é sóbrio e moderno, com uma grande luminária. As janelas internas dão para a garagem, onde se veem os trilhos. Os bondes ainda estão circulando na rua.

O café e restaurante Bebek é um dos 24 comércios abertos dentro do Kalkbreite. No complexo encontram-se também um supermercado orgânico, onde 100 produtos básicos são vendidos a granel como nas vendinhas do passado. Ao lado está o cinema Houdini, com cinco pequenas salas de projeção. Produtos para bebês, uma loja de cupcakes, florista, os escritórios do Greenpeace ou dos Sans-Papiers (grupo de ajuda aos clandestinos) completam a parte comercial. No andar acima foi recém-aberta uma casa de parto. No Kalkbreite, a vida se adapta aos novos tempos: trabalho se mistura com a vida privada, e vice-versa.

Pasquale cumprimenta os funcionários do Bebek e até alguns clientes sentados nas mesas. “Alguns são meus vizinhos no prédio”.  Ele também é vice-coordenador do projeto e, como tal, participou de todos os debates e decisões tomadas na concepção do projeto. Com o braço, convida a subir e conhecer o Kalkbreite por dentro. Um grande portal na lateral do prédio é o principal acesso. Sem portões ou controles, uma escadaria leva até um pátio interno de 2.500 metros quadrados. Em contraste com a rua barulhenta, o visitante encontra nele árvores, um parquinho para crianças, jardins e mesas e cadeiras. “Aqui é o centro de convívio do Kalkbreite e está aberta a toda população”, diz. Apesar de alguns moradores terem tido receio de visitas noturnas de baderneiros, em consenso decidiram não colocar placas ou instalar um portão na entrada. “É um espaço democrático. Tem gente que sobe simplesmente para descansar do burburinho da cidade”, diz e indica um jovem com fones no ouvido e compenetrado na leitura de um livro sentado num banco.

Do pátio interno, o caminho leva até a portaria. Um rapaz de trinta e poucos anos de camiseta estampada saúda com um sonoro alô. “São os nossos ‘deskjockeys’, que não apenas controlam o movimento, mas também coordenam o dia-a-dia aqui no prédio”, diz Pasquale. Uma das tarefas desse grupo é administrar a Pensão Kalkbreit com onze quartos. “Como todos os moradores dispõem de muito pouco espaço, criamos aqui uma pensão para acolher amigos ou até turistas”. Ao lado, em uma espécie de refeitório, pessoas tomam café em uma das várias mesas. “Esse é o salão de festas ou simplesmente café onde os moradores se reúnem para conversar ou jogar uma partida de xadrez.”

Diferentes formas de viver

Espaço é uma questão importante e reduzida no Kalkbreite. Os 256 moradores, que se mudaram para o prédio em agosto, aceitaram o conceito de sustentabilidade: isso significa que cada um dispõe, em média, de 33 metros quadrados de área habitada, 13 a menos do que a média dos suíços. Além disso, se comprometeram no contrato em não possuir ou alugar veículos motorizados. O não respeito a essa cláusula é motivo de rescisão. Em contrapartida, eles dispõem de 300 vagas para bicicletas no subsolo. As máquinas de lavar também são compartilhadas. 

No total, o prédio oferece 55 apartamentos com 97 quartos. A organização deles não é convencional, pois atende os desejos distintos das pessoas de ter menos, ou mais privacidade. Na chamada “grande família”, 50 moradores dividem 22 apartamentos de um a nove quartos. Nessa comuna dentro da comuna, o grupo divide uma grande cozinha equipada. Todas as noites, uma cozinheira contratada prepara o jantar. Os que querem comer como em uma grande família, estão livres de fazê-lo. “Normalmente são trinta pessoas diariamente sentadas à mesa, com muitas crianças também. É um barulhão”, conta o responsável, também morador do Kalkbreite.

Outros apartamentos funcionam como grandes repúblicas. À pedido, paredes foram retiradas e espaços somados, surgindo construções incomuns. Pasquale e sua filha vivem no maior apartamento, com 14 quartos. Nele vivem 12 adultos e quatro crianças. Os perfis são os mais diversos. “Temos um assistente social, um designer, um músico e até um paisagista”, conta. Todos compartilham todas as quatro cozinhas e as salas de estar. Os banheiros também podem ser compartilhados. “O meu é o único com banheira e, por isso, vez ou outra um vizinho pede para usar”, acrescenta. A maior sala de estar tem uma grande mesa e, como decoração, um gigantesco relógio de estação de trem. Os móveis foram trazidos por todos, alguns até de brechós, o que dá uma aparência alegre de república estudantil. Duas mulheres preparam o almoço, enquanto o filho de outra passeia no corredor. Invasão da privacidade? Para Pasquale a pergunta soa estranha. “Quem se sentir invadido pode se retirar para o quarto. Porém, de fato, o relacionamento aqui é mais intenso do que se cada um vivesse no seu próprio apartamento”, admite. Mas ele considera a interação social como o ganho mais importante para quem abdicou de espaço. “Trabalhamos em áreas tão diferentes que é muito interessante discutir e trocar experiências. É como se fosse uma grande família: a gente sempre aprende algo de novo.”

Pequenos luxos

Outra forma nova de organizar a moradia no Kalkbreite foi a criação de três “clusters”. Cada um deles é formado por nove a doze quitinetes, com cozinha e banheiro próprios, dispostos em um andar inteiro. O ponto de convergência em cada um deles é uma grande sala de estar com cozinha. “Aqui os moradores têm um pouco mais de espaço individual, mas também podem interagir nessa sala, se tiverem vontade”, explica Pasquale. As portas de cada quitinete tem uma janela transparente. Todavia, logo depois que foram ocupadas, a maioria dos moradores cobriu-as com alguma coisa diferente, seja panos ou cartazes. “A ideia é dar mais transparência, mas alguns moradores não gostam de sair do chuveiro e passar nu na frente da porta”, comenta. A cooperativa se desafiou a testar novas ideias de convívio, que só no futuro irão mostrar serem bem sucedidas ou não.

Mostrar mais

O exercício de debate é uma constante. Desde que os 256 moradores se mudaram para o prédio, quinze grupos de trabalho já foram formados. “O de jardinagem tem dez pessoas. Elas já plantaram durante todo o verão verduras no teto do prédio”, relata Pasquale. Outro grupo formado é o de ioga, cujos integrantes se encontrar regularmente em um dos quatro boxes, salas vazias que podem ser utilizadas pelos moradores para realizar pequenos projetos ou concretizar ideias próprias. “A minha filha já está se reunindo com outras crianças para criar o clube jovem em uma dessas salas e para isso temos até uma pequena verba de ajuda.”

Porém o luxo não se resume apenas à versatilidade. Sete “salas-flex” foram criadas para funcionar como espaço de reuniões. “Nelas, pequenas empresas ou os autônomos que trabalham no prédio podem convidar clientes ou organizar um seminário”. No lobby de entrada foi montada a biblioteca comunitária com ajuda dos próprios moradores. “Como as pessoas que se mudam para cá têm menos espaço, elas doam suas coleções. Assim, se você quiser algo para ler, só precisa pegar o livro”, diz Pasquale, que também contribuiu com sua própria coleção. Ao lado das estantes e dos sofás, ele mostra uma parede repleta de pequenos cartazes. “São os anúncios dos moradores”. Em um deles está escrito que um carrinho de bebê ficou disponível. Outro é de um morador que oferece discas de lugares para viajar sem gastar muito dinheiro. Outro procura uma prancha de snowboard.

Ao pegar o elevador para subir os oito andares, o ítalo-suíço se desculpa. É preciso justificar os princípios ecológicos. “Discutimos, sim, sobre não ter elevadores, que consomem muita energia. Mas para deficientes físicos não existe outra alternativa”. Já no teto, ele caminha por um corredor até chegar a um pátio externo. No horizonte é possível avistar uma colina de Zurique, o Uetliberg, coberta de matas. Ao percorrer na lateral do prédio, descendo e subindo lances de escadas, com vista para o pátio interno, chegamos a um espaço descoberto com chuveiro. “Essa é a sauna”, apontando para uma porta de vidro. Por dentro, uma sauna de 35 metros quadrados, com janelas dando vista para os Alpes. “Isso não é um luxo?”, pergunta o arquiteto.

Ecologia a preços módicos

Uma das maiores preocupações para os moradores do Kalkbreite foi a de respeitar os preceitos da chamada “sociedade de 2000 watts”. O movimento surgido no final dos anos 1990 por ideia de dois cientistas suíços, defende essa medida de potência contínua por pessoa como o limite aceitável para o meio ambiente. Hoje o consumo médio de cada suíço é de 6300 watts. Segundo o portal na internetLink externo, isso significa um esforço pessoal de reduzir viagens de avião, a utilização de eletrodomésticos devoradores de energia, abdicar do transporte individual, melhorar isolamento da casa ou mesmo só consumir legumes e frutas regionais.

Assim os arquitetos planejaram um prédio com um consumo mínimo de energia, capaz de receber o certificado Minergie-P, o mais exigente da Suíça. No teto foram instalados painéis solares que produzem 20 por centro da energia necessária. O aquecimento integrado no piso dos apartamentos e salas funciona através de um sistema de bombas de calor – elas armazenam alternativamente água fria no inverno ou água quente no verão no lençol freático – que esquenta também a água que sai das torneiras. As janelas têm tripla vedação. Toda a casa dispõe de um sistema de circulação de ar que garante sempre uma temperatura ideal. Mas a principal medida é o próprio morador. “Quem vem morar aqui se dispõe a viver da forma mais ecológica possível”, ressalta Pasquale.

Tanta preocupação com o meio-ambiente tem o seu preço. A construção do prédio custou 63,7 milhões de francos, financiados em grande parte pelo fundo de pensão dos funcionários públicos de Zurique, por se tratar de um terreno cedido pela cidade de Zurique. Outra parte veio dos próprios moradores, reunidos em uma cooperativa. “Cada um pagou uma parte própria que fica depositada na conta da cooperativa”, explica.

Os aluguéis são variados. Segundo a qualidade do acabamento e até proximidade da luz, um quarto simples pode custar entre 570 até 1000 francos. Um apartamento de três quartos vai de 1.500 a 1.700 francos. Com quatro quartos o preço vai de 1.350 a 2.700, todos os preços considerados módicos para o mercado imobiliário de Zurique e também se levando em conta a proximidade do Kalkbreite do centro.

Entre mercado e utopia, moradores como Pasquale não se consideram revolucionários. “Apesar de muitos deles terem tido experiências de viver em comunas ou participar da ocupação de casas nos anos 1980, somos todas pessoas absolutamente normais, que trabalham e têm famílias”, explica antes de se despedir para buscar a filha na escola. “É uma forma moderna de viver de uma sociedade multifacetada, onde as pessoas têm as mais diferentes necessidades”. E corre para pegar o bonde que acaba de parar no ponto. 

História do Kalkbreite

O terreno ocupado pelo complexo habitacional Kalkbreite tem 6.350 metros quadrados. Nele antes se encontrava a garagem de bondes da companhia municipal de transportes de Zurique.

Em 1978 uma iniciativa popular aprovada em plebiscito previa a construção futura de casas populares no terreno.

Em 2006, um grupo de habitantes do bairro e outros interessados participou de um workshop para debater a utilização do terreno. A ideia era debater possibilidades de construir um prédio ecológico, auto administrado, sem carros e com utilização mista entre moradia e comércio.

O grupo fundou uma cooperativa com o mesmo nome para apresentar o projeto. Em 2007 este foi aprovado pelo governo da cidade, que tinha mais outras três propostas em mãos.

O escritório de arquitetura Müller Sigrist foi escolhido em 2009 para realizar o projeto do Kalkbreite.

No início de 2012 começou a construção do prédio. Uma das maiores dificuldades foi manter a garagem de bondes – cuja utilização deveria ser mantida para a companhia de transportes – no projeto arquitetônico.

Desde a primavera de 2013, membros da cooperativa se reuniram para apresentar propostas e ideias de como projetar o prédio e cada uma das habitações.

Entre maio e agosto de 2014 o prédio começou a ser ocupado pelos seus moradores. A inauguração oficial ocorreu em 23 de agosto de 2014.

A cooperativa Kalkbreite venceu a concorrência pública para a construção de um novo complexo habitacional alternativo em um terreno utilizado pela Companhia de Trens da Suíça (SBB, na sigla em alemão). Ele estará pronto para ser habitado até 2020. 

Sites

Cooperativa KalkbreiteLink externo

Sociedade dos 2000 wattsLink externo

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