Moeda plena: o melhor remédio contra as crises financeiras?
Contrariamente à crença popular, atualmente a moeda nacional é emitida basicamente por bancos comerciais, e não pelo banco central. Para muitos, esse fato promove a especulação e as crises financeiras. A iniciativa de referendo "Moeda Plena" visa restaurar a estabilidade do sistema bancário ao reformar radicalmente o sistema monetário. Na opinião do governo e do Parlamento, trata-se de um projeto de altíssimo risco.
Lançada e defendida por economistas, especialistas de finanças e empreendedores, a iniciativa popular de referendo intitulada “Por uma moeda segura contra crises: emissão monetária somente pelo Banco Nacional Suíço! (Iniciativa Moeda Plena)Link externo“, visa criar um sistema monetário mais seguro. Esta iniciativa foi lançada na esteira da grande crise financeira ocorrida em 2008, que também afetou a Suíça. Durante a crise, o governo e o Banco Nacional Suíço (BNSLink externo, o banco central) interviram no mercado para salvar o banco UBS, a maior instituição financeira do país.
Os promotores da iniciativaLink externo fundamentam sua iniciativa na constatação de que o dinheiro hoje é criado apenas marginalmente pelos bancos centrais que emitem as notas e moedas do país, ou seja, a “moeda plena” legalmente garantida como meio de pagamento. Na Suíça, por exemplo, o dinheiro (notas e moedas) em circulação chega a 80 bilhões de francos, o que representa aproximadamente 10% da base monetária total. O restante é emitido pelos bancos comerciais, em geral através da concessão de empréstimos a empresas, particulares ou a outros bancos.
Neste caso, fala-se de “moeda escritural”, uma moeda que existe apenas em registros contábeis. Para conceder um empréstimo, o banco não tem necessidade de fundos próprios no valor do empréstimo, contanto que aquele valor esteja contabilizado em um depósito à vista. Hoje, o dinheiro escritural não é, portanto, um meio de pagamentos legal, mas sim uma promessa de depositar um montante determinado em uma conta. A expansão desta moeda se acelerou nas últimas décadas graças ao avanço da eletrônica que acelerou as transações financeiras e bancárias.
A utilização de moeda escritural contribuiu para o crescimento das atividades bancárias e da economia como um todo, por exemplo, no que tange aos empréstimos para empresas. Ao mesmo tempo, ela também contribuiu para a criação de dívidas, de bolhas especulativas, de insolvências dos próprios bancos e, enfim, para a multiplicação das crises financeiras.
A iniciativa “Moeda Plena” propõe uma reforma global do sistema monetário por intermédio de uma modificação substancial do atual artigo 99 da Constituição suíça. A proposta prevê que a criação de moeda, sejam elas notas, moedas ou moeda escritural, seja uma atribuição exclusiva do governo federal delegada ao BNS. Por sua vez, a moeda escritural se transformaria em meio de pagamento legal, emitido pelo banco central.
Os bancos comerciais não poderão mais emitir moeda escritural, podendo somente realizar empréstimos com dinheiro que foi efetivamente colocado em circulação pelo banco central. No dia em que entrarem em vigor estas novas regras, a moeda escritural emitida pelas instituições financeiras será convertida em moeda plena. Esta conversão será possível via empréstimos concedidos pelo banco central suíço nos valores correspondentes, e que deverão ser pagos pelos bancos em um período de transição considerado “razoável” de entre 15 e 20 anos.
Bilhões a mais para o governo federal e para os cantões
O BNS continuará sendo um banco central independente responsável pela condução de uma política monetária visando o interesse geral do país, pela regulação da base monetária, pelo bom funcionamento das operações de pagamentos, e pela concessão de créditos à economia por intermédio das instituições prestadoras de serviços financeiros. Neste contexto, a definição das taxas de juros não seria mais o principal instrumento de política monetária como se vê atualmente.
Um terço do lucro líquido do BNS continuará a ser remetido ao governo federal e dois terços aos cantões como ocorre atualmente. Contudo, no futuro os lucros de senhoriagem derivados da criação de dinheiro novo (físico ou eletrônico) serão repassados, sem dívidas ou juros, ao governo federal. Para ilustrar, a produção de uma nota de 1.000 francos custa ao BNS apenas alguns centavos de Franco. Tendo em vista o crescimento recente da base monetária, pode-se esperar um repasse anual num montante de entre 5 e 10 bilhões de francos.
Para os promotores da iniciativa, o novo sistema fará do franco suíço a moeda mais segura do mundo e protegerá a Suíça contras várias crises financeiras. Os bancos não poderão mais criar dinheiro “do nada”, o que reduzirá os investimentos arriscados e fortalecerá o mercado suíço ao torna-lo mais fiável e, por extensão, mais competitivo. Como o problema seria resolvido em sua origem, os bancos não mais teriam que se submeter a uma forte regulamentação pelo estado que, por sua vez, não mais teria que intervir para salvá-los.
Também os clientes se beneficiariam com um sistema mais transparente e seguro. Suas contas para transações financeiras estariam 100% cobertas por fundos do BNS. Os bancos teriam que administrar estas contas fora de seu balanço, e não contariam, portanto, nos ativos do banco a serem liquidados em caso de falência. Os riscos de “pânico bancário” e de “corrida aos guichês para saque” seriam igualmente diminuídos.
Os bancos não serão mais privilegiados
O novo regime monetário beneficiaria também ao governo federal, aos cantões e ao público em geral. A distribuição dos substanciais benefícios advindos da criação monetária seria utilizada para reduzir os impostos e a dívida, para financiar infraestruturas públicas e instituições sociais. Segundo os proponentes da iniciativa, o BNS poderia remeter à coletividade cerca de 300 bilhões de Francos advindos do reembolso de empréstimos concedidos aos bancos comerciais para a conversão de moeda escritural em moeda plena.
A reforma beneficiaria dessa maneira à economia real: o dinheiro utilizado para financiar a infraestrutura permitiria empregar várias empresas e criar empregos. Os bancos não poderiam mais emitir seu dinheiro perdendo, assim, as vantagens competitivas injustificadas com relação a outros setores da economia. Hoje, uma grande parte da moeda escritural alimenta a especulação financeira, ao invés de entrar na economia real.
O governo federal reconhece a importância de um mercado financeiro fiável, mas estima que este objetivo pode ser alcançado graças às novas normas internacionais, a começar pelas normas do Comitê de Basileia sobre a supervisão bancáriaLink externo, bem como sobre a capitalização de bancos de relevância sistêmica (chamados “too big to failLink externo“). Segundo o governo, adotar o sistema de moeda plena seria um pulo no escuro, tendo em vista que nenhum país adota este sistema. A implementação desta iniciativa implicaria uma reorganização profunda e sem precedentes do sistema monetário, o que poderia expor a Suíça a riscos e custos potencialmente elevados.
A incerteza jurídica ligada às consequências da reforma poderia minar a credibilidade da política fiscal suíça, que é internacionalmente reconhecida por sua estabilidade. Isso seria uma desvantagem para o mercado suíço em relação a outros concorrentes e comprometeria o futuro de vários bancos e inúmeros postos de trabalho.
Ademais, a reforma limitaria consideravelmente as atividades comerciais dos bancos. A proibição do dinheiro escritural reduziria os recursos disponíveis para a concessão de crédito, uma fonte importante de lucro para os bancos. Para compensar as perdas de rentabilidade, os bancos seriam obrigados a impor custos de gestão e taxas mais elevadas a seus clientes. Abaixa no volume de empréstimos teria igualmente consequências negativas para as empresas e, por consequência, para a economia real.
A independência do BNS em jogo
Ainda de acordo com o governo, a iniciativa reduziria também a independência do BNS. O banco central ficaria exposto a fortes pressões políticas caso fosse obrigado a participar regularmente do financiamento das coletividades através do pagamento de bilhões de Francos ao ano. O BNS poderia ser encorajado a aumentar a base monetária a fim de fornecer mais recursos para o governo federal e para os cantões. Sob o novo regime, o banco central não estaria mais livre para conduzir uma política monetária eficaz com base na taxa de juros para garantir a estabilidade dos preços.
O próprio BNS também se opõe a essa iniciativa. Segundo seu presidente, Thomas Jordan, ao adotar essa reforma, a Suíça teria um sistema financeiro que jamais foi testado antes, e que difere fundamentalmente dos sistemas de todos os outros países. Isso provocaria graves turbulências antes mesmo de sua introdução, sendo que as consequências de longo prazo seriam imprevisíveis.
A iniciativa não convenceu as Câmaras Federais. Todos os partidos se opõem e apenas poucos parlamentares a apoiaram. No Conselho Nacional (Câmara dos Deputados), o texto recebeu 9 votos a favor, 169 contra e 12 abstenções. No Conselho dos Estados (Senado), a iniciativa foi torpedeada com 42 votos contrários, uma abstenção, e um único voto a favor. O comité de parlamentares opostosLink externo à iniciativa reúne representantes dos principais partidos políticos.
Adaptação: Danilo v.Sperling
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