“Ajudamos também por interesse próprio”
A Suíça ajuda os países mais pobres do planeta com bilhões de francos. Ela e outros doadores participam do esforço de alcançar os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) da ONU, um programa que será relançado a partir de 2015. Martin Dahinden, diretor do principal órgão envolvido na Suíça, acredita que muita coisa foi alcançada, mas ainda há grandes desafios pela frente.
É difícil imaginar que a pequena e austera sala no primeiro andar do prédio da Agência Suíça para o Desenvolvimento e Cooperação (DDC, na sigla em francês) no bairro de Ausserholligen, próximo ao centro de Berna, seja ocupada por um funcionário público responsável por um orçamento bilionário: aproximadamente dois bilhões de francos (US$ 2.2 bi), só em 2013.
O diplomata Martin Dahinden dirige a DDC desde 2008 e foi responsável pelas várias mudanças vividas pelo órgão responsável pela ajuda externa da Suíça. Porém no próximo verão ele irá trocar os problemas mundiais para cuidar das relações externas com os Estados Unidos, quando assume o posto de embaixador em Washington, D.C.
swissinfo.ch: Por que a Suíça ajuda outros países?
M.D.: Por duas razões. Em primeiro lugar, a solidariedade com países ou povos que se encontram em difíceis condições de vida. Em segundo, por interesse próprio: queremos que outros países se desenvolvam do ponto de vista social e econômico, seja pelo fato deles serem nossos parceiros econômicos ou países de onde vem a imigração ilegal.
swissinfo.ch: Muitos contribuintes suíços se perguntam: após tantas décadas de ajuda e tanto dinheiro gasto até que ponto os problemas foram solucionados?
M.D.: Em muitos programas são construídas estruturas que, após vários anos, não existem mais. Há muito tempo, ajudamos a construir na Índia uma indústria de processamento de leite. O que hoje sobrou é o know-how, que acabou se disseminado. Mas isso pode ocorrer em outras áreas: talvez você não encontre mais uma estação de trem construída há trinta anos, mas seu funcionamento desencadeou processos que atuam até hoje. Quando construímos uma escola, nosso objetivo não é obrigatoriamente que ela esteja de pé após décadas, mas que as pessoas tenham aprendido algo e possam aplicar o conhecimento adquirido para melhorar suas vidas.
swissinfo.ch: Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) serão acrescidos por metas de desenvolvimento sustentáveis mais amplas a partir de 2015. O que foi alcançado concretamente até agora?
Martin Dahinden: Podemos dizer que foi um grande sucesso. Esses objetivos estavam no centro do programa de combate a pobreza dos países em desenvolvimento, nas estratégias das organizações internacionais e também nas atividades dos países doadores como a Suíça e das atividades das ONGs. O número de pessoas que vivem em absoluta pobreza, um dos principais objetivos, foi reduzido pela metade e isso antes de 2015. Porém agora chegamos a um ponto onde é preciso refletir: como iremos prosseguir no futuro?
swissinfo.ch: Qual o motivo da reorientação?
M.D.: Essa reorientação deve-se ao fato de termos percebido que os ODM são muito limitados em relação às necessidades do futuro. Primeiramente pelo fato de estarem concentrados exclusivamente na redução da pobreza, descartando fatores econômicos e ecológicos que são a base da sustentabilidade. A segunda limitação é de estarem muito focalizados em um prisma norte-sul, o que exige poucas mudanças na atitude dos países ricos.
No que diz respeito ao financiamento, os ODM foram executados até hoje através de ajuda governamental. Já a nova agenda terá uma base mais ampla. Não se trata de reduzir a ajuda ao desenvolvimento, mas sim de descobrir outras fontes de financiamento como o setor privado ou a mobilização de recursos nos próprios países atingidos por esses problemas.
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swissinfo.ch: Os países doadores têm aumentado a ajuda externa. Em 2012, a Suíça gastou 2,7 bilhões de francos, ou 0,45% do PIB em ajuda ao desenvolvimento. Até 2015 essa ajuda deve chegar a 0,5% do PIB. Isso é suficiente?
M.D.: A ONU determinou nos anos 1970 que os países ricos deveriam dar 0,7% do seu PIB para o desenvolvimento. Esse objetivo ainda está válido, sendo que alguns países o alcançaram, sobretudo os escandinavos. A Suíça decidiu aumentar sua ajuda externa para 0,5% até 2015, o que nos possibilita executar programas em alguns setores específicos. Todavia essa é apenas uma parte mínima do que é realmente relevante. As chamadas “remittances”, ou seja, transferências de dinheiro feitas pelos trabalhadores migrantes, correspondem a um número talvez três ou quatro vezes maior do que o gasto em cooperação ao desenvolvimento. Também os investimentos feitos pelo setor privado são muito maiores. A ajuda ao desenvolvimento está voltada às áreas bastantes críticas. Provavelmente no futuro ela estará fortemente concentrada nos países em conflito ou em situação de fragilidade, mais do que naqueles pobres, porém politicamente estáveis. Não é possível desenvolver países apenas com ajuda ao desenvolvimento.
swissinfo.ch: Moçambique é um dos países onde a onde a Suíça possui bastante visibilidade com relação a sua ajuda externa em comparação com outros países doadores. Porém nele praticamente nenhum dos objetivos foi alcançado. Uma grande parte do PIB ainda é coberto por países doadores, apesar dos grandes recursos naturais. Não existiria uma discrepância entre os objetivos e a realidade no terreno?
M.D.: Quando você analisa os programas da Suíça em Moçambique, vê onde estão os problemas. Geralmente nós nos retiramos de países onde a renda média passa a ter nível mediano. Ao mesmo tempo, nosso objetivo é que os países cheguem ao ponto de ter condições de ajudar a si próprios. Nossos programas não oferecem serviços de forma paralela ao Estado como, por exemplo, no setor médico ou de educação. Pelo contrário, o objetivo é apoiar o governo na prestação desses serviços com os seus próprios recursos. Os valores da nossa ajuda são pequenos em comparação ao PIB de Moçambique. Um exemplo dessa política ocorreu no Peru há pouco: ao perceber que o país havia alcançando um patamar de desenvolvimento que não justificava mais a ajuda ao desenvolvimento, passamos a nos limitar à consultoria técnica.
swissinfo.ch: A corrupção é um problema em muitos países na África. Como países doadores como a Suíça podem garantir que o dinheiro seja investido realmente para melhorar a situação das camadas mais desfavorecidas da população?
M.D.: Quanto aos recursos empregados por nós mesmos, foram desenvolvidos sistemas de controle. O problema da corrupção e do emprego incorreto das receitas ocorre em muitos países. Porém não é o papel da Suíça de fazer esse controle, mas sim de todos os doadores em conjunto com os governos locais.
swissinfo.ch: Dentro da nova política de concentrar os esforços nos países em dificuldades, até que ponto é eficaz atuar onde não há mais estruturas de governo e grande instabilidade? Exemplos ocorreram em Ruanda ou no Sudão do Sul…
M.D.: A questão mais importante é saber onde a ajuda é mais necessária e isso ocorre nos lugares em que não houve desenvolvimento, cujas condições são piores. Os exemplos atuais são o Sudão do Sul, a Somália ou o Afeganistão. De fato, os riscos são muito grandes nesses países. Se tivéssemos um programa na Namíbia, ele seria de baixo risco. Porém o Parlamento suíço tomou uma decisão política de atuar onde a situação é mais emergencial, mesmo com o perigo de interrupção de um programa ou outro. A atuação nesses países é justificável, pois neles não existem alternativas. Em países como a Namíbia temos investidores privados, que permitem um desenvolvimento sem a ajuda da cooperação internacional. Eles não existem no Sudão do Sul, na Somália ou no Afeganistão.
swissinfo.ch: Na última coletiva de imprensa da DDC, o senhor declarou que a economia deve ter um papel mais importante na ajuda ao desenvolvimento. Muitos analistas consideram que a China tem feito muito mais ao investir na África do que os países ocidentais…
M.D.: A questão é que não somos investidores privados. Porém quando você analisa a redução da pobreza, vê que ela ocorreu em grande parte através da ação de investidores privados, um processo absolutamente normal. Nesse sentido, nosso papel é apoiar a formação profissional ou, em parte, os países na elaboração de uma legislação apropriada, mas também no microcrédito para a criação de pequenos negócios ou outros programas voltados para a ajuda ao setor privado local. Juntos eles têm efeitos consideráveis de alavancagem.
Martin Dahinden dirige a Agência Suíça para o Desenvolvimento e a Cooperação (DDC) desde 2008.
Nascido em 1955, estudou economia e administração de empresas na Universidade de Zurique. Ao entrar no serviço diplomático em 1987, atuou em Genebra com relação ao Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT), na embaixada em Paris, na embaixada na Nigéria e depois em Nova Iorque na Missão Permanente da Suíça junto à ONU.
Entre 2004 e 2008 foi diretor da Direção de recursos e da rede exterior do Ministério suíço das Relações Exteriores (DFAE, na sigla em francês), depois de ter dirigido o Centro Internacional de Desminagem Humanitária em Genebra (de 2000 a 2004).
(Fonte: DDC)
swissinfo.ch: Não seria melhor ter investimentos diretos da Suíça nesses países? Por exemplo, empresas suíças que produziriam algo na África?
M.D.: As empresas investem em locais onde as condições são ideais para fazê-lo. É uma questão do nível de desenvolvimento. Por exemplo, no sul da China ou na região Bangalore, na Índia. Já encontrar empresas que queiram investir hoje no Afeganistão é algo praticamente impossível.
swissinfo.ch: Porém empresas chinesas constroem ferrovias, portos ou estradas em países da África para facilitar o trabalho de extração das matérias-primas. São atividades que também geram empregos e renda, ou não?
M.D.: Sim, são atividades importantes. Mas a DDC não pode cobrir todas essas atividades. Nós realizamos o financiamento de infraestrutura através das consideráveis contribuições da Suíça ao Banco Mundial, ou seja, a seus braços como a Associação Internacional de Desenvolvimento (AID) e o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD). Não podemos construir nós mesmos trinta quilômetros de estradas em algum país. O que fazemos são programas bilaterais em setores como a saúde ou formação profissional, onde temos um know-how especial.
swissinfo.ch: 2014 é o Ano Internacional da Agricultura Familiar. Qual será o papel da sustentabilidade nos próximos objetivos do milênio? O que a DDC pretende fazer para apoiar o pequeno agricultor nos países pobres?
M.D.: Eu estou convencido que as pequenas empresas familiares na agricultura foram negligenciadas nas ultimas décadas apesar da sua grande importância. Apenas 10% da produção são exportadas nesses países. Obviamente também existem grandes produtores. Por isso é fundamental reforçar a agricultura familiar, dando-lhe acesso a crédito e sementes. Juntamente com grandes empresas do setor de seguro estamos desenvolvendo modelos para garantir as safras. Muitas vezes não se investe nos pequenos produtores, pois fenômenos naturais levam a perdas completas das safras. Fiquei muito feliz com o fato da ONU ter declarado 2014 o Ano Internacional da Agricultura Familiar. São muitos milhões de pessoas ativas nesse setor, levando-se em conta também tudo o que está em volta e não apenas a própria produção: o processamento de alimentos, o armazenamento e todas as atividades ligadas à agricultura.
swissinfo.ch: O objetivo é permitir ao pequeno produtor na África de exportar seus produtos?
M.D.: Eu vejo o acesso dos mercados para eles mais em um contexto local ou regional. Não acredito que faria sentido criar um sistema que permitisse qualquer agricultor de exportar sua produção. Em alguns países já o fizemos e talvez até funcione com alguns produtos. Todavia o mais importante é apoiar uma agricultura capaz de criar empregos.
swissinfo.ch: E concretamente qual é a ajuda dada pela Suíça?
M.D.: Por exemplo, formação profissional e consultoria técnica. Nós apoiamos formas de cooperação: temos grandes programas no setor de armazenamento. Ajudamos na construção de silos, uma atividade onde também são criados muitos empregos para trabalhadores locais. Isso ocorre especialmente na região do Nordeste Africano, onde uma grande parte das safras é perdida devido a problemas de armazenamento.
Ao mesmo tempo, participamos de organizações bilaterais. O maior fundo de investimento nos pequenos agricultores é o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (IFAD), onde o vice-presidente é o embaixador suíço Michel Mordasini, um cargo importante. A DDC também é uma das poucas agências de ajuda ao desenvolvimento no mundo que não abandonaram a agricultura. Uma grande parte delas deixou de fazê-lo nos anos 1990 com a argumentação de que havia excesso de produção, mas essa tendência mudou a partir de 2007, quando a segurança alimentar voltou a ser uma questão importante.
swissinfo.ch: Como a Suíça colabora para alcançar alguns dos objetivos do milênio como a mortalidade infantil, o combate às doenças transmissíveis e a melhoria da saúde materna?
M.D.: A saúde é a condição mais importante para muitas outras coisas. Dela depende fortemente a situação econômica de um país: pessoas doentes não podem trabalhar e crianças doentes não conseguem absorver o que elas aprenderiam na escola. Concentramo-nos claramente em três setores: as doenças transmissíveis como a malária, tuberculose e AIDS; a saúde materna; e em terceiro, o reforço dos sistemas locais de saúde. Isso pelo fato da Suíça ser muito forte nessa área, seja na produção de medicamentos ou pesquisa farmacêutica.
swissinfo.ch: A disseminação do vírus do HIV no continente africano seria um exemplo?
M.D.: Houve, de fato, uma grande redução das novas contaminações. Porém muitas pessoas estão contaminadas, mas elas vivem por mais tempo do que no passado. Programas como os de sensibilização tiveram um grande papel nesse desenvolvimento.
swissinfo.ch: O acesso à água potável ou ao saneamento básico, cuja falta acentua os problemas de saúde, exige grandes investimentos. Como a DDC atua nessa área?
M.D.: Por muito tempo não se considerou a questão da água como um problema, mas houve depois uma mudança da abordagem política. A Suíça junto com outros países conseguiu, dentro do contexto da ONU, incluí-la na agenda. Também discutimos o tema nos últimos anos intensamente no Fórum Econômico Mundial (Davos, Suíça). Somos da opinião de que o problema da água tem de ter um espaço mais importante na futura agenda do desenvolvimento, ou seja, do que teremos após os objetivos do milênio.
Uma das nossas preocupações é exatamente o saneamento básico, que envolve obviamente a ecologia. Nele é necessário fazer um grande esforço, já que se o acesso à água potável melhorou, o tratamento de esgotos ainda é bastante deficitário. E outro problema é o fato de 80% de água ser utilizada na agricultura, sendo que a forma de lidar com ela é muito pouco responsável. Uma grande quantidade de água é desperdiçada. E finalmente, a água também é razão de muitos conflitos. Por isso precisamos tratar do tema, mesmo no futuro.
A história da Agência Suíça de Desenvolvimento e Cooperação (DDC), órgão responsável pela cooperação internacional dentro do Ministério suíço das Relações Exteriores, começou em 1961. Hoje a DDC é responsável pela coordenação geral junto a demais órgãos governamentais da cooperação para o desenvolvimento e a cooperação com os países do Leste europeu, assim como os programas de ajuda humanitária suíços. Ela reúne a ajuda de urgência (o Corpo Suíço de Ajuda Humanitária, que intervém em caso de catástrofes), a ajuda à reconstrução e a cooperação ao desenvolvimento no longo prazo.
Os objetivos são a redução da pobreza, a promoção da autonomia econômica, a melhoria de condições de produção, o apoio a soluções de problemas ambientais e a melhora do acesso à educação e a saúde de base.
O orçamento da DDC para 2012 chegou a 1,84 bilhões de francos (337 milhões para ajuda humanitária, 1,3 bilhões para cooperação ao desenvolvimento, 109 milhões para a cooperação com os países da Europa do leste e da CEI) e 63 milhões da contribuição suíça ao alargamento da União Europeia.
Em 2012 a DDC tinha 1.600 funcionários atuando na Suíça e nas missões no exterior, incluindo também funcionários locais.
A ajuda suíça aos países em desenvolvimento ocorre junto com a Secretaria de Estado para Economia (Seco).
Entre 2012 e 2015, o orçamento para a cooperação internacional (DDC + Seco) da Suíça tem um aumento anual entorno de 8% e deverá chegar, em 2016, a 2,6 bilhões de francos. Para 2015-2016 a previsão de aumento é de 3,5%.
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