Supervisionando a guerra ao terrorismo
O juiz suíço Daniel Kipfer passou três anos supervisionando a principal lista de terrorismo das Nações Unidas, garantindo que o Estado de Direito prevalecesse em um ambiente altamente politizado.
Foi seu último caso que mais incomodou Kipfer. Um político influente de origem árabe foi acusado de apoiar a organização terrorista Al-Qaeda. Com seu nome numa lista de sanções e suas contas bancárias congeladas, ele não podia mais viajar e foi até mesmo classificado como terrorista.
Pouco tempo depois, o homem contatou Kipfer, o ombudsmanLink externo do comitê de sanções da ONU contra o Estado Islâmico e a Al-Qaeda, solicitando a revisão de seu caso para que fosse retirado da lista. O ombudsman é praticamente a única figura a quem as pessoas acusadas podem recorrer quando se encontram em tal situação.
“Desde o início, ficou claro para mim que havia algo errado”, diz Kipfer. As informações à sua disposição eram todas de fontes de serviços de inteligência – sua origem não podia ser verificada e sua qualidade era questionável. Kipfer iniciou uma investigação. Ele viajou para a região e conheceu o homem acusado, falou com funcionários de alto escalão nas esferas militar e política, consultou especialistas na sede da ONU em Nova York e avaliou as informações disponíveis ao público. “A conclusão era clara: não havia nada lá.”
Membro ítalo-egípcio da Irmandade Muçulmana, Youssef Nada acabou na lista de terrorismo da ONU como suposto financiador da Al-Qaeda após o 11 de Setembro. Levou anos para que as sanções contra ele fossem levantadas – embora nenhuma das acusações contra ele tenha sido provada. É possível ler sua história aqui:
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Anos de ira
Juiz e filósofo
Kipfer havia sido presidente do Tribunal Penal Federal da Suíça, em Bellinzona, antes de assumir seu novo cargo em Nova York, em 2018. Para esse juiz e doutor em filosofia, de 61 anos, tratava-se de um passo rumo ao desconhecido. O comitê de sanções não é um tribunal e o ombudsman não é um juiz. O comitê é mais um órgão supervisor, que investiga se uma adição à lista de sanções é justificada em casos específicos.
Não pode ser tomada nenhuma decisão judicial acerca da fundamentação das alegações originais, de modo que também não há possibilidade de exigir reparação. O único ponto em questão é se a pessoa acusada é uma ameaça terrorista e se ainda há motivo, no momento da investigação, para mantê-la na lista.
O caso do político árabe citado inicialmente é uma exceção, destaca Kipfer. Na maioria dos casos, ele lidou com pessoas que realmente apoiavam ou pertenciam a uma organização terrorista. É importante frisar, diz ele, que estar na lista de sanções não é uma punição por um crime, mas sim uma medida preventiva.
“As medidas preventivas devem, por definição, ter uma limitação temporal e devem ser revogadas quando não forem mais necessárias. Elas não são uma sentença”, explica.
Infelizmente, nem todos os membros do comitê de sanções veem as coisas dessa maneira, diz ele. “Para alguns, qualquer um inserido como terrorista na lista deve permanecer nela, porque pode ser um risco no futuro e até mesmo pelo resto de sua vida”.
Para Kipfer, isso seria inaceitável. “Dessa maneira, a acusação de terrorismo pode ser utilizada para justificar qualquer ação do Estado”, afirma.
‘Morte social’
Nas últimas duas décadas, a guerra ao terrorismo teve um enorme impacto no difícil equilíbrio entre as exigências de segurança do Estado e os direitos individuais. A complexidade dessa tensão pode ser vista na evolução da lista de sanções.
Suas raízes estão no processo de internacionalização do terrorismo islâmico nos anos de 1990. Os ataques às embaixadas americanas no Quênia e na Tanzânia em 1998 foram decisivos. Eles trouxeram Osama bin Laden e a Al-Qaeda para o centro das atenções, particularmente dos serviços ocidentais de inteligência. Adotada em 1999, a Resolução 1267 sancionou a liderança afegã do Talibã por oferecer proteção a Bin Laden e outros terroristas.
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Como a ONU tem ajudado a combater o terrorismo desde os ataques de 11 de setembro
Essa lista de sanções sofreu muitas modificações ao longo dos anos, mas continuou a servir de modelo para o que é chamado de “sanções dirigidas”: o estabelecimento de sanções voltadas especificamente para os responsáveis pelo terrorismo, em vez da imposição de embargos que contemplam Estados (e toda sua população).
Essas medidas individualizadas foram vistas como um progresso em comparação com os embargos a Estados. Por outro lado, elas também eram questionáveis, uma vez que os afetados não tinham direito a qualquer revisão judicial. Após o 11 de setembro e o verdadeiro início da guerra ao terrorismo, a lista não tardou a ser consideravelmente ampliada. E pessoas que nitidamente não deveriam estar ali começaram a ter seus nomes inseridos na lista. Suas vidas e carreiras foram destruídas. O antigo representante suíço no Conselho da Europa, Dick Marty, descreveu essa situação como uma “morte social”.
Foi apenas em 2009, com a criação do cargo de ombudsman, que surgiu alguma garantia de um processo justo para as pessoas colocadas na lista. Os dois predecessores de Kipfer lidaram com alguns dos casos mais problemáticos e regulamentaram as atividades do comitê de sanções. Como resultado, houve uma melhora considerável na qualidade e na transparência do processo.
Ainda assim, Kipfer se encontrava num ambiente altamente politizado. Na ONU, o antiterrorismo é objeto de muita preocupação política, e canaliza grandes somas de dinheiro. O ombudsman é apenas uma pequena engrenagem no sistema como um todo. É, portanto, sujeito a pressão. Kipfer acabou atuando como defensor e promotor, juiz e diplomata. Tudo isso ao mesmo tempo, e com uma equipe de somente duas pessoas.
“As disparidades na situação são bastante óbvias”, diz ele. Além disso, o ombudsman não é sequer um funcionário da ONU, tendo apenas um mandato de cinco anos.
Uma posição ambivalente
O cargo de ombudsman teria apenas a função de dar alguma legitimidade a um mecanismo altamente questionável em relação ao Estado de Direito? Kipfer rejeita essa hipótese. Dentro do comitê de sanções, é necessário que todos os 15 membros votem contra a decisão de um ombudsman para anulá-la – é o único procedimento da ONU com tal exigência.
“Até agora, em cerca de uns cem casos, a recomendação do ombudsman sempre foi aceita, embora alguns Estados tenham se oposto firmemente a ela. Isso é um sinal da verdadeira força e autonomia desta instituição”, afirma, acrescentando que as pessoas cujas sanções foram levantadas concordariam.
Kipfer, todavia, admite que há uma ligeira ambivalência. O conceito de um comitê de sanções individuais continua sendo problemático. Além disso, não é possível verificar em tribunal a legitimidade das sanções impostas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. Quando se trata do combate ao terrorismo, a primazia da política sobre os direitos humanos básicos é demasiadamente evidente.
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Ele se pergunta qual poderia ser a alternativa. “Nos primeiros dez anos de sua existência, as pessoas eram inseridas na lista sem haver nenhum mecanismo de controle ou oportunidade de se defenderem. Acredito que a situação atual é definitivamente melhor, mesmo que ainda pudessem – e devessem – ser feitas melhorias na proteção aos direitos humanos básicos”.
O fator humano
O processo de revisão disponível não é um passe livre para as pessoas na lista. Em dois terços dos casos, Kipfer recomendou retirar os nomes da lista. Mas, em outros casos, ele explicitamente não o fez. Surpreendentemente, ele tem sido agradecido por pessoas que ele continuou a classificar como perigosas.
“O ombudsman é um rosto humano num sistema que muitas vezes parece kafkiano”, explica ele. Ser entrevistado, poder apresentar seus próprios argumentos, sentir que está participando de um procedimento de investigação adequado – tudo isso contribui para que uma pessoa aceite a decisão final.
Algumas poucas pessoas insistem em negar o seu passado, diz Kipfer. “Mas muitas simplesmente estão num momento diferente de suas vidas. Elas deixaram essas estruturas para trás, tendo, por vezes, um trabalho normal e uma família.” Nesses casos, ele afirma que não faz sentido manter as sanções, como seria feito com os fanáticos radicalizados e criminosos violentos.
Kipfer afirma que é mais difícil chegar a uma conclusão no caso, por exemplo, de financistas da região do Golfo, investigados devido a fluxos suspeitos de dinheiro. No momento, cerca de 400 pessoas físicas e jurídicas estão na lista de sanções.
Em dezembro de 2021, Kipfer renunciou ao cargo e retornou ao Tribunal Penal Federal Suíço, devido a diversos fatores pessoais e institucionais.
O cargo institucional de ombudsman dentro da ONU lhe parecia problemático. Questões de previdência, seguros e de subordinação ao gabinete do Secretário Geral não foram regulamentadas, pelo menos não o suficiente. E o mandato é concedido apenas uma vez, por um período de cinco anos. Kipfer afirma que há uma necessidade urgente de melhorias, mas que não houve avanços no comitê de sanções e no Conselho de Segurança – “simplesmente não é uma prioridade”. Seu sucessor, que ainda não foi nomeado, herdará estas questões.
Ao longo de seu mandato, muitos encontros marcaram Kipfer. A disparidade das pespectivas sobre terrorismo e antiterrorismo foi impressionante: em praticamente todas as entrevistas, “a guerra no Iraque, ilegal do ponto de vista do direito internacional, era interpretada como um ataque pessoal à própria cultura e religião, que deveria então ser combatida.”
Além disso, os devastadores danos psicológicos em massa produzidos pelas execuções extrajudiciais na guerra de drones foram muito pouco compreendidos no Ocidente, diz ele. “Nunca se deve subestimar como o mundo pode parecer diferente, dependendo de onde estamos olhando”.
Adaptação: Clarice Dominguez
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