No rastro dos caçadores de cristais
Um grupo de arqueólogos pesquisa nos Alpes suíços uma mina única, que foi explorada pela primeira vez por volta de 8.000 a.C. Fragmentos de cristais de rocha oferecem pistas sobre como os caçadores-coletores trabalhavam neste local pré-histórico de extração de minerais, o único conhecido na região. Nossa repórter acompanhou as escavações. O projeto de três anos terminará em dezembro deste ano.
Nossos crampons estalam ruidosamente sobre o que resta da geleira de Brunnifirn, no cantão de Uri, região central da Suíça. Quando fazemos uma pausa, podemos ouvir o gelo derretendo sob nossos pés. No final do verão, a paisagem parece uma tigela cheia de neve velha, cercada por picos nus e irregulares.
Na Idade da Pedra, os caçadores-coletores percorriam os Alpes em busca de cristais. Pode parecer New Age, mas não havia nada de espiritual ou místico em sua missão. Esses artesãos pré-históricos procuravam tesouros brilhantes para transformarem em pontas de flechas, lâminas, perfuradores e outras ferramentas.
O arqueólogo independente Marcel Cornelissen – um homem jovial de 45 anos, apaixonado por esportes de montanha – está há anos seguindo os rastros desses mineiros. Seu trabalho de campo é condicionado pela abertura de breves janelas de tempo, ditadas pela estação do ano, pela cobertura de neve e pelo clima.
A primeira expedição foi realizada em setembro de 2020 e só foi possível graças ao recuo da geleira e a dica de um caçador de cristais, que descobriu o local enquanto procurava minerais. O homem achou pedaços de cristais, dois chifres de cervo e restos de madeira.
Restos de madeira e chifres numa altitude de 2.831 metros: não seria uma altitude inóspita para a maioria das plantas e animais? Arqueólogos como Marcel Cornelissen dependem de dicas da população, especialmente em áreas remotas.
Um dos pedaços de chifre se desintegrou durante o degelo, mas especialistas conseguiram usar radiocarbono para datar o outro fragmento como de 6000 a.C. Trata-se da descoberta mais antiga do tipo a ser preservada no gelo dos Alpes, muito mais antiga que Ötzi, a múmia de um homem que morreu nos Alpes do norte da Itália por volta de 3.200 anos a.C., encontrada em 1991.
As marcas no chifre de cervo sugerem que ele pode ter sido utilizado para extrair o cristal de quartzo. Segundo o instituto de pesquisa Cultures des Alpes, que encomendou o projeto liderado por Cornelissen, este é o único local pré-histórico de extração de cristais de rocha conhecido na região de Gotthard. Outros locais foram descobertos a cerca de 100 quilômetros ao sudoeste, nos vales do Simplon e Binntal, no cantão do Valais.
As escavações
Numa manhã de setembro, Cornelissen se tornou ele mesmo um mineiro. É a terceira vez que ele vai a Brunnifirn em busca de artefatos. Ele espera fazer mais descobertas antes do encerramento do projeto no final de dezembro. Suas pesquisas indicam que a mineração no local data de 8.000 a.C.
“Seria bom encontrar mais algumas peças para realmente ter certeza”, diz ele. “Também espero que no final tenhamos material suficiente para obter uma melhor compreensão de como as pessoas trabalhavam.”
Enquanto isso, seus três colegas estão escavando uma pequena área no topo de uma colina rochosa com vista para a geleira. A área tem de cerca de seis metros quadrados e está livre de neve. O espaço é apertado, então fico fora caminho, empoleirada numa grande pedra cuja parte inferior é coberta por pequenos cristais de quartzo esfumaçados – tão afiados que fazem meus dedos sangrarem, mas tão finos que não sinto dor.
O trabalho inicial de escavação é tudo menos delicado. Para limpar o espaço, Annina Krüttli e os outros arqueólogos jogam rochas e pedregulhos colina abaixo. Suas pás e espátulas cavam ruidosamente, tilintando contra as rochas.
Krüttli faz uma pausa para explicar a estratégia: “o que queremos fazer é chegar à terra, porque no momento estamos apenas vasculhando pilhas de rochas. Poderíamos fazer algumas descobertas verdadeiramente interessantes na superfície, por isso vamos tirar os cinco centímetros de cima e colocar tudo em sacos, que levaremos para baixo quando formos embora.”
Quando a equipe tiver terminado seu trabalho, um helicóptero virá e carregará os cerca de 60 sacos para o vilarejo de Sedrun, onde carros estarão esperando para levá-los adiante. Os robustos sacos plásticos na verdade são sacos de lixo, que parecem muito comuns para conter itens potencialmente valiosos. Mas, como indica Cornelissen, eles são ideais: “isso é o que as pessoas deixaram para trás. É o que elas não queriam, e é isso que estamos levando”.
Esses objetos podem ter sido “lixo” para aqueles engenheiros primitivos, mas há uma certa beleza neles. Cornelissen me mostra um fragmento de cristal que acabara de ser descoberto: vagamente triangular e, segundo o especialista, claramente esculpido por um ser humano.
“Não é uma ferramenta. É lixo, são os restos do processo de produção”, explica. Sua forma é consistente com a de achados similares encontrados em outros locais suíços, que datam de 8.000 anos atrás – quando talvez tenha sido a última vez que alguém os segurou.
“Não havia fazendas, igrejas, nenhum edifício permanente, mas essas pessoas estiveram lá e extraíram o cristal de rocha”, destaca Cornelissen. É bastante impressionante, principalmente quando você compara esses resíduos com o lixo moderno, como embalagens de doces e garrafas plásticas.
O arqueólogo lacra o fragmento de cristal numa bolsa transparente, com uma nota indicando a localização exata do achado. Durante os próximos dois dias, ele fará o mesmo com as melhores descobertas. Os outros artefatos e o solo acabarão nos sacos pretos de lixo, também cuidadosamente etiquetados.
Clima e terreno
O sol está se pondo e a temperatura, caindo: é hora de fazer as malas. Colocamos os crampons nas nossas botas e nos amarramos. A água derretida borbulha sob nossos pés. É um som divertido, mas também um lembrete de como a paisagem está mudando. Entre 1973 e 2010, a geleira de Brunnifirn perdeu quase um quarto de sua superfície, encolhendo de 3,02 km² para 2,31 km²Link externo. Do outro lado da geleira, o jantar e os beliches nos esperam na cabana Cavardiras, a 2.649 metros de altitude.
Os caçadores de cristais também dormiam aqui? Cornelissen acredita que sim, dadas as ferramentas encontradas nas proximidades – ferramentas simples que provavelmente foram feitas no local e usadas por alguns dias.
“Eles não estiveram aqui apenas por uma ou duas horas para pegar alguns cristais. Não, eles provavelmente montaram acampamento, talvez tenham passado a noite consertando equipamentos ou calças e comeram um lanche rápido antes de partir no dia seguinte”, explica o arqueólogo.
Compreender o ciclo sazonal da extração de cristais pode ajudar a esclarecer como os seres humanos se movimentavam pela paisagem na época. Uma viagem para as montanhas pode ter sido parte de uma expedição de caça pelo país. Os cristais de quartzo podem ter tido um certo prestígio, como têm hoje aos olhos dos colecionadores de minerais. Mas ninguém sabe ao certo. Em todo caso, a área é desprovida de sílex, o material tipicamente utilizado na fabricação de ferramentas pré-históricas.
Preciso voltar para casa na manhã seguinte, assim como o arqueólogo Christian Auf der Maur – embora ele quisesse continuar as escavações. Alto e firme, ele se oferece para me acompanhar nessa difícil rota alpina: ela começa com neve, pedras e declives íngremes antes de chegar ao cume e depois desce até uma área verde salpicada de flores alpinas e mirtilos. A caminhada dura várias horas, uma excelente oportunidade para falar sobre as escavações.
Como ele e seus colegas lidam com as limitações impostas as suas pesquisas pelo clima e pelo terreno? Afinal, ainda pode haver artefatos incríveis esperando para serem descobertos alguns centímetros abaixo.
“Essa é a vida do arqueólogo. Quando você escava, quase sempre precisa deixar objetos para trás. Você tem que viver com isso e tentar levar o máximo possível de dados e descobertas para o laboratório”, diz Auf der Maur, que trabalha para o Depto. de Conservação de Monumentos e Arqueologia do Cantão de UriLink externo. A equipe espera ter encontrado os objetos mais importantes da expedição. Antes da conclusão do projeto no fim do ano, os arqueólogos terão tido mais algumas oportunidades de explorar outros locais na região.
Lavagem e classificação
Dois meses depois, Cornelissen me cumprimenta do lado de fora de um armazém no leste da Suíça. Ele trocou seu equipamento de montanha por luvas de borracha e um avental impermeável para que ele e Annina Krüttli pudessem peneirar os 976 quilos de terra, rochas e cristais coletados em Brunnifirn. Agora é hora dar-lhes um banho.
Quando a água jorra e os torrões de terra se dissolvem, as pedras começam a cintilar, da mesma forma que os olhos de Cornelissen ao verem formas promissoras. Depois, é hora da cuidadosa tarefa de classificar manualmente cada peça. Isso significa passar horas agachado sobre uma lona, separando os minerais úmidos, colocando os cristais “bons” em bandejas e esvaziando baldes cheios de lixo.
Krüttli então leva os achados potencialmente valiosos para o armazém e os coloca em prateleiras de secagem, sempre mantendo um registro de onde foram encontrados. A meticulosa documentação feita no local da escavação valeu a pena. Se os achados forem relevantes, essas notas permitirão que locais específicos sejam revisitados para que se encontrem mais vestígios. Mesmo que não tenham sido feitas descobertas individuais incríveis nesta última expedição, o valor arqueológico da coleção é enorme.
“Imagine ter 50 mil desses pequenos fragmentos, todos analisados, você tem os números ao seu lado”, observa Krüttli, enquanto verifica se algumas das bandejas estão suficientemente secas para serem fechadas nos depósitos. “É assim que você consegue deduzir informações sobre fragmentos individuais que podem parecer um pouco insignificantes.” Dados suficientes permitirão que as descobertas sejam colocadas num contexto cultural, histórico e ambiental mais amplo. Cada fragmento é uma peça do quebra-cabeça que liga o passado ao presente.
É essa convicção que dá coragem aos pesquisadores durante as muitas horas de trabalho manual exaustivo que são necessárias para ter uma compreensão mais clara de suas descobertas. Quando a equipe tiver terminado essa tarefa, três dias depois, os 300 quilos de artefatos preservados serão enviados para o porão particular de Cornelissen, nos arredores de Berna.
A inspeção
Em agosto de 2021, Cornelissen me convida para ir à sua casa, onde também estão armazenados artefatos de projetos de pesquisa anteriores. Na frente da sua porta, um par de tamancos de madeira relembra suas raízes holandesas. No interior, caixas plásticas robustas estão cheias de possíveis ligações com nossos ancestrais que perambularam pelos Alpes entre 9.500 e 5.500 a.C.
Cornelissen coloca alguns punhados de quartzos, cristais e granitos sobre a mesa da cozinha. Equipado com uma pinça, uma boa luz, uma lupa e um instrumento de medição, o pesquisador examina os materiais. “Esta é boa: vai na pilha de artefatos. E esta aqui? Provavelmente na pilha do ‘talvez’”, diz ele enquanto vasculha as peças.
Como um joalheiro que avalia uma pedra preciosa, ele examina um fragmento de quartzo do tamanho de um dente. Girando-o sob a luz, ele murmura pensativamente. O arqueólogo acredita que o objeto fazia parte de uma lâmina ou talvez uma ferramenta de perfuração.
O pesquisador mede e etiqueta o objeto antes de selá-lo num saco plástico do tamanho de um palmo e inserir os dados no seu computador. As colunas são preenchidas com notas sobre o material, a forma, as condições e outras características de cada peça. Quanto ao fragmento em questão, Cornelissen irá armazená-lo numa caixa plástica vedada, utilizada normalmente para guardar iscas de pesca.
Ele colocou algumas de suas melhores descobertas em uma folha de papel preto, que destaca os contornos formados por mãos habilidosas há milhares de anos. Ao tentar entender o seu significado, lembro de um comentário feito por Krüttli enquanto lavava pedras do lado de fora do armazém.
“Originalmente, esses cristais deviam ser enormes para que os caçadores-coletores conseguissem fazer ferramentas suficientes. Para que os cristais se formem, leva muito, muito mais tempo do que o período entre a presença desses caçadores-coletores e a nossa chegada”, ressaltou. “Por isso imagino eles sentados atrás de uma rocha rindo de nós, porque chegamos um pouco tarde demais.”
De milênios a meros meses e anos: o trabalho dos arqueólogos no rastro desses caçadores de cristais pré-históricos talvez nunca chegue ao fim. Mas, com seus registros detalhados e artefatos cuidadosamente rotulados, esses especialistas estão abrindo o caminho para futuras pesquisas sobre essa parte da história humana.
O que fazer em caso de descoberta?
À medida que o gelo derrete, vestígios arqueológicos estão sendo encontrados em locais previamente congelados. Eles datam de todas as épocas, desde a Idade da Pedra até o século XX. Esses objetos nos dão uma compreensão fascinante do passado. Aqueles feitos de materiais orgânicos como madeira, couro, peles, tecidos e chifres de animais raramente sobrevivem, exceto no gelo e no permafrost. Mas eles se decompõem rapidamente após o degelo.
Se você encontrar objetos dentro ou ao redor do gelo na Suíça, tire fotos deles e as apresente às autoridades locaisLink externo, que podem enviar arqueólogos para resgatar o material. Indique a localização do achado em um mapa ou anote as coordenadas do local e marque-o. Somente colete itens se houver uma ameaça imediata de destruição ou se o local não puder ser encontrado.
Para mais informações sobre arqueologia glacial e as autoridades locais, visite o siteLink externo.
Edição: Nerys Avery e Sabrina Weiss
Adaptação: Clarice Dominguez
Zélie Schaller
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