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Quando exclusão do mercado de trabalho corrói a alma

Mulher trabalhando em um laboratório
Apesar da profissão e do trabalho contarem muito para o prestígio social na Suíça, é importante valorizar a si mesmo. Keystone

Reflexão na semana do Dia do Trabalho: Aprender a desvincular a identidade profissional da pessoa é essencial para preservação da identidade profissional da pessoa.

“Hoje eu não consigo falar. Quando tento, choro. Estou desmotivada com a dificuldade de conseguir trabalho, tenho pensado em trocar totalmente de área, mas o meu problema básico é a autoconfiança, que está balançada… Eu sei que coloco muita pressão em cima de mim. Eu preciso começar a trabalhar isso internamente, porque está me fazendo muito mal. Já não é fácil conseguir emprego, aprender o idioma, me adaptar, imagina quando vem junto com auto pressão?” O desabafo vem por e-mail de uma brasileira com nível superior e pós-graduação, que vive na Suíça há pouco mais de um ano. Mas poderia se tornar o relato de muitos dos estrangeiros que moram no país e que reclamam das exigências do mercado suíço.

Geralmente essas pessoas tentam encontrar uma vaga por, no mínimo, um ano. Algumas conseguem, outras não. O perfil do público é formado, na maioria das vezes, por mulheres com alta qualificação profissional e que migram devido ao matrimônio. Muitas nem necessitam do dinheiro que o trabalho proporcionaria. O salário do parceiro supre as necessidades. Dessa maneira, a entrada no mercado significa mais uma questão de orgulho pessoal, de inclusão. Como já foi trazido pelo blog em outros artigos, os motivos pela dificuldade do primeiro emprego no país são inúmeros: diferenças no currículo universitário, que gera inadequação às exigências dos empregadores, proficiência do idioma local, preconceito por parte dos contratantes, falta de creche para deixar os filhos etc.

Artigo do blog “Suíça de portas abertas” da jornalista Liliana Tinoco Baeckert.

A pirâmide das necessidades de Maslow (Abraham H. Maslow – psicólogo americano), que representa a hierarquia de necessidades das pessoas, pode ajudar a explicar a questão da autovalorização pelo trabalho. De acordo com a pirâmide, as necessidades começam a ser satisfeitas de baixo para cima, começando então com as fisiológicas (como alimento, água e abrigo), na base. A camada acima é representada pela segurança (corpo, emprego, recursos etc.), seguida pelo sentimento de pertencimento a um grupo (inserção, relacionamento) e após isso a necessidade de estima (realização, conquista, respeito, autoestima). Por último, já no topo, vem a necessidade de auto realização, que poderia ser traduzida por um objetivo maior, “missão”, atingir tudo o que “quer ou que se pode”. “Se olharmos essas necessidades com foco no trabalho vemos que o mesmo pode suprir grande parte ou mesmo todas delas. Isso talvez ajude a explicar nossa identificação com as atividades que realizamos profissionalmente”, explica a aconselhadora psicológica Graziela Birrer, que por atender a uma grande população de migrantes na Suíça, tem experiência no assunto.

Reconhecimento profissional – A saga desses migrantes começa ao buscarem uma oportunidade por anos. Nesse período, diminuem a exigência e expectativa. Muitos já passaram por cargos de chefia em seus países de origem, mas se candidatam a funções bem mais baixas na hierarquia. E ainda assim acumulam incontáveis insucessos na tentativa de abrir portas. Outros optam por mudar de área, algumas se perdem e não sabem mais que direção tomar. Entre todos esses casos, o sentimento presente é o de falta de autoestima. A desesperança se une às inúmeras negativas e acaba por corroer a confiança.

A importância do trabalho – Como o trabalho integra a construção da identidade do adulto, desvincular-se dele fica mais complicado. De acordo com a coordenadora de Especialização da Universidade Federal Fluminense do Rio de Janeiro (UFF), Renata Monteiro, ao longo da história da humanidade, parece ser a transformação em um sujeito-produtivo, em um indivíduo inserido na lógica de produção e contribuição na sociedade. Essa condição configura para o jovem e para a comunidade da qual faz parte o reconhecimento da identidade adulta.

Renata Monteiro explica que na entrada na vida adulta é esperado, tradicionalmente, que o jovem se transforme em sujeito-produtivo. Isso significa para ele encontrar um novo lugar no sistema social e ao mesmo tempo sofrer transformações em sua subjetividade no sentido de tornar-se adulto. O trabalho da professora, embora não seja focado no migrante, ajuda a explicar a dificuldade, já passou muitas dessas pessoas já passaram da juventude, mas precisam reviver essa reentrada no mundo profissional.

Autovalorização – Um dos segredos em lidar com essa fase está na capacidade de desvincular a sua identidade profissional da pessoal. A aconselhadora psicológica Graziela Birrer, que trabalha com inúmeros estrangeiros na Suíça, entende a dificuldade em fazer esse exercício de separação. Ela explica que o ser humano contemporâneo se identifica muito pelo que faz, pela profissão que exerce, mas que a construção da autoestima passa pela experiência de vida e profissional. “Só que nós somos mais que isso. Temos vários papéis na vida”, explica.

No caso dos migrantes, a aconselhadora psicológica, que é brasileira, acredita que essas pessoas tenham ainda mais dificuldade em aceitar a nova realidade, já que a maioria desse grupo tinha uma posição profissional no seu país de origem e tem que reiniciar essa fase que já tinha ficado para trás. “Mudar de país é se reconstruir. Isso significa que não vai haver, em todos os casos, um encaixe de peças de quebra cabeça”, explica.

O psicanalista e colunista do Jornal Folha de S. Paulo, Contardo Calligaris, explica em crônica publicado pelo periódico até onde vai a relação entre trabalho e identidade pessoal. Ele afirma que o emprego pode nos transformar em “sujeitos abstratos, resumidos por nossa função na produção e na circulação de mercadorias e serviços. A consequência é que o desemprego pode nos ameaçar com uma perda radical de identidade.” O parágrafo foi retirado da crônica “Desemprego”, selecionada para integrar o livro Quinta Coluna do mesmo autor.

Mulher
“Só que nós somos mais que isso. Temos vários papéis na vida”, explica Graziela Birrer. swissinfo.ch

Adversidades – O escritor relata que, de acordo com o organizador do livro de Bruce Dohrenwend, Adversity, Stress and Psychopathology (traduzido para português como Adversidade, Estresse e Psicopatologia), a perda do emprego está na lista dos piores fatores adversos, como as catástrofes naturais, a morte de uma pessoa amada, o estupro, a doença grave, a separação ou o divórcio.

De acordo com Calligaris, há algo mais, que talvez faça do desemprego a adversidade mais danosa para nossa saúde mental. “Preste atenção: no balcão de um boteco, como na mesa de um jantar, se seus vizinhos forem desconhecidos, a primeira pergunta não será quem é você? Mas o que você faz na vida? Se eles tiverem uma intenção alegre, talvez tentem primeiro descobrir seu estado civil. Fora isso, o interesse pela sua identidade se apresentará como interesse por seu papel produtivo.”

Embora o exemplo seja usado para pessoas que perderam o emprego em seu próprio país, vale perfeitamente para estrangeiros que não conseguem se estabelecer profissionalmente no exterior. “Pega muito quando retornamos ao nosso país e os amigos nos perguntam: o que você faz agora? Sinto até um gosto amargo na boca”, conta uma entrevistada portuguesa que não quis se identificar.

Bingo. Calligaris e Birrer vão ao âmago da questão. O organizador do livro Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturaisLink externo, Tomaz Tadeu Silva, entretanto, vai mais além. Ele complementa a complexa relação argumentando que “a identidade e a diferença se traduzem, assim, em declarações sobre quem pertence e sobre quem não pertence, sobre quem está incluído e quem está excluído. Afirmar a identidade significa demarcar fronteiras, fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica fora.” Dessa maneira, Tomaz Tadeu Silva consegue traduzir o sentimento de supressão, de cobrança e de deslocamento que o tema traz.

Mudar começa com a aceitação da realidade

“Emigrar significa auto reconstrução. Por isso, sempre digo que às vezes é preciso dar um passo atrás para preparar o terreno e depois reconstruir. Outro ponto importante. Não se compare com outros conterrâneos que estejam em uma posição melhor ou com o que você era no país de origem. Torna-se muito frustrante. Cada um tem sua história, seu próprio caminho.

Acredito que basear sua auto-avaliação somente na performance, no que se tem, no que é mensurável e esquecer o que já se fez, suas características e pontos fortes é extremamente duro com você mesmo. É importante se perguntar: por que o foco nos resultados, acima de tudo? Qual o pior cenário caso demore a encontrar o emprego dos sonhos? Como a pessoa se vê? E o mais importante: como ela acha que o outro a vê?

Eu aconselho um olhar com menos autocrítica, com mais amor e aceitação da realidade. Mudar começa com a aceitação do fato, para que haja clareza do que é possível modificar, inclusive sobre os seus limites e os da situação. Todos querem chegar lá, mas quando se trata de contextos migratórios, é preciso se abrir para outros caminhos. Nem sempre a vaga dos seus sonhos aparece tão rápido, ou nem aparece. Por isso bato na tecla da importância de mudar a rota, se necessário, estudar algo diferente e buscar, dentro do leque de opções que o país oferece, algo que poderia ser interessante.

Outra questão que percebo muito no meu consultório é a alta expectativa trazida por essas pessoas. A vinda para a Suíça é um choque de realidade e a decepção uma quebra na esperança. Dessa maneira, é preciso trabalhar o gerenciamento dessa emoção.

Outro ponto que considero importante nesse contexto é o fato de a Suíça ser um país de profissionais muito qualificados. Se no Brasil ou em Portugal é vantajoso falar inglês com proficiência, aqui a competição se dará com um mercado de inúmeros poliglotas. É uma realidade diferente e o mais inteligente a se fazer é se valorizar e ter jogo de cintura para driblar as adversidades. Eu proponho aos meus clientes um exercício: olhar para o passado, escrever todos os seus sucessos e pensar em como você já venceu tantos obstáculos na vida. A migração é só mais um.

*Depoimento da aconselhadora psicológica Graziela Birrer, que atende em Baden, em Zurique e em Lucerna.

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