Missão: resgatar vítimas do tráfico de seres humanos
Dando continuidade à série de reportagens sobre o tráfico de seres humanos na Suíça, que pretende publicar histórias sobre o assunto ao longo de 2019, swissinfo.ch ouviu o brasileiro Vicente Medeiros, pastor em Zurique, que dirige projeto de resgate de vítimas do crime no país.
Ele e seu parceiro de trabalho no Brasil, Marco Aurélio de Souza, lidam todos os dias diretamente com casos inimagináveis e colecionam horrores.
O Projeto Resgate é uma associação sem fins lucrativos sediada em Zurique que acolhe as vítimas de tráfico resgatadas no continente europeu, oferece esconderijo, tenta conseguir retorno ao Brasil. A associação tem como objetivo a reintegração das vítimas à sociedade. Para isso oferece cursos profissionalizantes, atendimento psicológico, médico e legal. À frente do Projeto na Suíça, Vicente Medeiros é o idealizador e coordena os resgates, busca patrocínio e trabalha em conjunto com o Consulado e uma série de outros órgãos contra o tráfico de seres humanos no país.
Marco Aurélio de Souza toma conta do Programa no Brasil. Sediado em Goiânia, ele recebe as vítimas e coordena a rede de ajuda em território brasileiro. Para falar sobre o submundo do tráfico na Suíça, Vicente Medeiros recebeu a Swissinfo.ch em seu escritório, em Zurique. Marco Aurélio de Souza falou ao telefone, de Goiânia. O relato dos dois responsáveis pelo Projeto conta o muitas vezes inenarrável drama dessas pessoas.
Artigo do blog “Suíça de portas abertas” da jornalista Liliana Tinoco Baeckert.
swissinfo.ch.: Como o Senhor começou o seu trabalho com o Projeto Resgate aqui na Suíça?
Vicente Medeiros: Teve início com um passeio que fiz com a minha esposa em 2004, quando viemos à Suíça comemorar o nosso aniversário de 25 anos de casamento. Como eu sou Pastor da Igreja Batista, é comum que as pessoas venham a mim para falar sobre sua condição e problemas.
Foi nesse momento que inúmeros relatos de trabalho escravo e maus tratos começaram a me intrigar. Numa dessas conversas, fiquei extremamente sensibilizado pela história de uma mulher que reclamava ser obrigada a comer fezes do marido para que ele se excitasse sexualmente. Fiquei tão tocado com aquela situação, que retornei ao Brasil e um mês depois já estava de volta, com o objetivo de investigar melhor tudo que eu havia escutado.
Me instalei em uma salinha anexa a um salão de beleza na cidade e ouvi mais 60 de prostitutas brasileiras. O resumo desse período foi a repetição de casos: não tinham vindo com esse objetivo, mas sim com promessa de trabalho, porém o fim era o trabalho como prostituta.
Com base no que eu ouvi, mapeei os problemas e as necessidades dessas pessoas e escrevi um Projeto. Iniciamos o projeto em 2005.
swissinfo.ch.: Como é o perfil dessas pessoas escravizadas na Suíça?
V.M.: Pelas minhas entrevistas, pude constatar que a maior parte das vítimas na Suíça são mulheres originárias dos estados de Goiás, Pernambuco e Ceará. As goianas, entretanto, são a maioria. Depois descobri que os traficantes as preferem porque são mais dóceis e submissas, o que facilita a exploração.
São, em geral, mulheres jovens com idades entre 28 e 38 anos. A maioria é muito pobre, com pouca instrução, algumas até analfabetas.
swissinfo.ch.: Há quase 12 anos de Projeto, imagino que o Senhor tenha ouvido e presenciado relatos muito tristes…
V.M.: Coleciono histórias horríveis, às vezes inacreditáveis. São casos trágicos de exploração, abuso, escravidão e violência. É impressionante até onde a maldade do ser humano pode ir. Certo dia, chegou até o Projeto uma moça de 18 anos do Recife, que contava ter sido vendida por 300 reais pelo pai a um italiano. Quando chegou aqui, foi obrigada a se prostituir.
Mas não somente as jovens que caem na lábia de pessoas mal-intencionadas. Uma senhora de 64 anos foi resgatada por nós. Ela veio para a Suíça porque queria comprar uma máquina de tricô. Como não tinha dinheiro, acreditou na proposta de trabalhar como babá para ganhar 1 mil francos por mês, o que dá quase 4 mil reais. Morava em um porão frio e trabalhava o dia todo, das cinco da manhã até às 23 horas. Pagava pelo pão que comia; a família mantinha um caderninho com anotações da comida, tudo superfaturado, como é comum nesses casos de escravidão.
Essa senhora ficou doente, com falta de ar e foi jogada na porta do Consulado de Zurique. Ela não sabia onde morava a família para que a denúncia fosse feita. Foi levada por nós de volta ao Brasil, mas acabou morrendo depois porque tinha câncer no pulmão. Uma vez acolhemos uma vez uma mulher que pulou da sacada do terceiro andar em Berna por desespero.
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Tivemos o caso de um rapaz, que veio com a ilusão de trabalhar como professor de capoeira em uma escola. A realidade foi outra. Ele teve que fazer apresentações na rua para arrecadar dinheiro e passava praticamente fome. Quando já não aguentava mais, o chefe perguntou se ele não gostaria de ganhar 200 francos. Essa é geralmente a estratégia; eles deixam a pessoa ir ao fundo do poço, perder a dignidade e apresentam a salvação. Pois bem, para ganhar aquele dinheiro, ele teria que fazer um programa.
Correu e gritou por socorro em português. A sorte dele é que nesse momento passava um rapaz suíço que entendia. Ele levou o capoeirista para o Consulado.
Marco Aurélio: Eu recepcionei uma carioca aqui em Goiânia que foi mantida em cárcere privado com a filha de seis anos em Zurique. A menina ficou com pavor de homem, não queria se aproximar de mim quando fomos buscá-la no aeroporto. Essa moça conheceu um rapaz na praia no Rio, que a convenceu a ir para a Suíça com ele. Ao chegar, ele fechou a mala delas em um quarto, trancava a casa, impedindo-as de sair. Um dia ela conseguiu escapar com a menina pela janela.
swissinfo.ch.: Pelo tipo de crime, acredito que seja muito difícil de identificar. Como fazer então? Como a população pode ajudar e como se prevenir?
M.A.: Eu acredito que, com essa crise econômica do Brasil, a tendência é a situação piorar. Imagina uma garçonete que ganhe mais ou menos 900 reais. Então essa pessoa recebe uma oferta para ganhar 3 mil reais para fazer a mesma coisa na Suíça. Quem, nessa condição, não iria?
O traficante lida com sonhos de pessoas humildes. E eles sabem disso. Essas pessoas são muito vulneráveis porque não têm mais nada a se agarrar.
V.M.: Esse tipo pode vir disfarçado em várias situações. As moças enganadas da novela Salve Jorge da Rede Globo são apenas uma das realidades desse submundo, que traz outras formas menos emblemáticas do crime, mas nem por isso menos cruéis.
Nem sempre a pessoa perde o passaporte ou tem que se prostituir. O simples fato de estar na Suíça, não falar nenhuma palavra do idioma e ser obrigada a se submeter a qualquer situação que não seja de comum acordo já pode incluir a pessoa como vítima desse tipo de crime. Pode acontecer até mesmo com o marido ou parceiro. Tem gente que fica presa dentro de casa, tem mulher que vem para casar e chega ao país e vira escrava do marido.
Aquela conhecida história da amiga da amiga que mora na Suíça e precisa de uma babá para ganhar 3 mil reais por mês pode ser muito perigosa.
Lutar contra o tráfico de seres humanos é como enxugar gelo. Mas algumas coisas podem ser feitas: não sejam ingênuos. Quando a esmola é muito boa o santo desconfia. É importante não acreditar em qualquer oferta, mesmo que seja de um conhecido. Se possível, checar antes. Vá com o endereço do Consulado, não entregue o passaporte para ninguém. O único jeito que temos é atuar na conscientização.
• Dicas da OIKOLink externo para se proteger do tráfico de seres humanos
Em caso de suspeita:
Projeto Resgate na Suíça:+41 44 251 6850
Plantão Consulado do Brasil em Zurique: +41 79 742 5300
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