Os subterrâneos do tráfico de brasileiros na Suíça
30 de julho foi instituído pela Assembleia Geral da ONU como Dia Mundial de Enfrentamento ao Tráfico de PessoasLink externo. Embora ainda seja janeiro, a coluna Longe de CasaLink externo irá trazer, em 2019, uma série de reportagens sobre esse crime, tão cruel e difícil de identificar.
Na segunda coluna de cada mês, em alguns dias 15 de alguns meses desse ano, a Suíça de Portas Abertas irá falar sobre os subterrâneos do tráfico, trará depoimentos de vítimas, diversos exemplos do crime, entrevistas e estatísticas.
O objetivo é alertar potenciais vítimas dos perigos, padecedores do crime e testemunhas. É importante informar que certas situações são inaceitáveis e, o mais importante, existe ajuda.
O comércio de seres humanos não mostra sinais e não tem uma cara. Ao contrário, é multifacetado, subterrâneo e sem endereço. O seu vizinho de porta, em Zurique, pode abrigar, trancafiada e escondida, uma vítima sem que você se dê conta. A clássica mulher coagida a se prostituir é só uma faceta entre outras tantas; ela pode estar na esposa que é obrigada a se submeter a práticas sexuais ou ao trabalho exaustivo.
Artigo do blog “Suíça de portas abertas” da jornalista Liliana Tinoco Baeckert.
Boca a boca – Fruto da propaganda boca a boca, pode se esconder até mesmo na empregada doméstica da sua amiga, que trabalha em regime escravagista, sem direito a folga e com dívida de comida.
Essa é apenas uma entre as inúmeras das situações vividas por mulheres e homens padecedores desse crime na Suíça e que buscaram ajuda no Consulado Brasileiro ou no Projeto Resgate, idealizado por Vicente Medeiros para resgatar e acolher vítimas no país. A Suíça lidera, junto com Portugal, a nação com maior número de brasileiros traficados internacionalmente, de acordo com Relatório Nacional sobre Tráfico de Pessoas de 2013.
Estatística – O Departamento Federal de Estatística Suíça (Bundesamt für Statistik,Link externo em alemão), relata 22 casos de tráfico de seres humanos em 2016. Mas o Pastor Vicente Medeiros é categórico: esse número é somente a ponta de um problema muito maior. “A maioria das vítimas não dá parte. Elas têm medo de vingança, já que a rede de contatos conhece os familiares”, explica.
Livro relata crime na Suíça – A escritora Jannini Rosa mergulhou no mundo do tráfico de seres humanos em 2016, quando escreveu e lançou o livro Lucia Amélia: Confissões de uma guerreira, pela editora Helvetia. A obra conta a história de Lucia Amélia, brasileira que veio para a Suíça com o intuito de trabalhar como dançarina e acabou sendo obrigada a se prostituir.
O Brasil está entre os dez países com mais vítimas do tráfico de pessoas, de acordo com a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Tráfico de Pessoas na Câmara dos Deputados, instaurada em 2013.
Problema mundial – Trata-se de um desafio global. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), esse tipo de crime atinge 124 países e afeta 152 nacionalidades. O relatório Tráfico de Pessoas para a Europa para fins de Exploração Sexual,Link externo divulgado dia 29 de junho de 2016. O documento revelou que só na Europa existem cerca de 140 mil mulheres vítimas do mercado da exploração sexual. Todo ano são feitas 70 mil novas vítimas.
É um negócio que movimenta cifras astronômicas. A ONU estima que essas escravas façam, juntas, cerca de 50 milhões de programas sexuais por ano, a um valor médio de 50 euros cada. No total, isso representa um lucro anual que atinge 2,5 bilhões euros, o equivalente a R$ 5,5 bilhões.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OITLink externo), 44% das vítimas do tráfico são alvos de exploração sexual, 32% são aliciadas para exploração no trabalho e 25% sofrem com a combinação os dois tipos de exploração. Pelo menos metade dessas vítimas de tráfico são menores de 18 anos e as mulheres são o principal alvo.
Transexual explorada pode ser expulsa da Suíça
Era uma tarde quente de sol, como outra qualquer na cidade de Goiânia, Goiás, que a transexual P.B.B.F recebeu um convite que mudaria sua vida. Uma conhecida lhe fez uma proposta indiscutível: trabalhar como prostituta na Espanha e ganhar muito dinheiro e, melhor, em euro. Jovem, com 19 anos, e sofrendo preconceito por parte da família e dos moradores locais, P.B.B.F não teve dúvidas; aceitou de pronto.
Mas o que ela não sabia era que o único detalhe verdadeiro da proposta dizia respeito somente ao país e à função que exerceria. O restante eram só artifícios que a traficante de seres humanos usou para inflar os seus sonhos. A moça, que sonhava em se livrar das surras que tomava, do desprezo da família, da falta de perspectiva e em fazer a cirurgia de mudança de sexo, embarcou para o seu cativeiro achando que viajava para um mundo melhor. “Trabalhar na Europa é o sonho de qualquer travesti brasileiro. Aqui podemos arrumar um marido, ganhar dinheiro e viver com dignidade, sem ter que correr de surra de homofóbico na rua”, conta.
Mas quando chegou, encontrou um clube de prostituição de onde não podia sair. O dinheiro prometido nunca chegava, porque já ao tomar o avião, assumia uma dívida de 15 mil euros, calculada para as despesas de passagem, comida, alojamento.
Ela não apanhou e não teve o passaporte retido, e tampouco foi enganada quanto ao trabalho que iria realizar. Mas passou fome, foi explorada, não recebeu o pagamento e foi mantida em cárcere privado.
P.B.B.F conseguiu fugir com a ajuda de um cliente. Assim veio parar na Suíça. Durante o trajeto, viveu pesadelos, como o de ser parada pelo Polícia na fronteira da França com a Suíça. Foi de novo explorada, tinha que pagar muito caro pela permissão de trabalhar. De Lausanne, foi para Zurique. P.B.B.F conta que a vida de prostituta é muito dura. Ela chegou a ter que pagar 300 francos por dia pelo aluguel de uma janela em Zurique, local onde ela se oferecia aos clientes.
Atualmente P.B.B.F está impossibilitada de trabalhar devido a problemas na cirurgia de mudança de sexo. P.B.B.F explica que, devido a erro médico, passou por quatro cirurgias de seio e cinco de vagina. Ela luta desde 2012 para se manter estável e sadia, mas devido aos problemas enfrentados, entrou em depressão.
Com visto B e vivendo do Serviço Social suíço, a brasileira corre o risco de perder o direito de viver no país por não poder trabalhar. “Eu vivo aqui há mais de dez anos e estou doente. Fui vítima de várias agressões: tráfico, exploração e erros na minha cirurgia. Por isso desenvolvi uma depressão e agora corro o risco de ter que deixar o país que eu amo, mesmo sendo tratada com exclusão. Eu não quero voltar para o Brasil, onde não tenho mais nada, nem amigos, e ainda corro sérios riscos de apanhar”, reclama.
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